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O bairro das princesas e dos príncipes

Existem leituras muito diferentes sobre o bairro social que insere a escola onde trabalho e o grupo de alunos com quem convivo diariamente.
Para a hierarquia trata-se de um bairro que justifica a criação de um território de intervenção prioritária. Prioritária no sentido de proteger os bons cidadãos contra os maus que não são cidadãos.
Para a imprensa, que empolga notícias e factos, trata-se de um bairro perigoso e violento, habitado por criminosos e potenciais criminosos. Por arrastamento, rotula a escola como perigosa.
Para a população residente adulta é um bairro propício a pequenos desacatos entre alguns habitantes e os agentes da autoridade.
Para um sociólogo trata-se de um gueto provocado pela desastrosa política de habitação social.
Para as crianças com quem trabalho é um bairro de príncipes e princesas.
Centro-me nesta última visão, por ela contrastar com os outros olhares.
Desde que o computador ligado a Internet foi retirado da sala, por uma razão que nunca nos foi claramente explicada, conseguimos quatro velhas máquinas mais duas velhas impressoras. O canto de informática da sala passou a ser um canto de produção de escrita. De textos e de estudos.
Primeiro os textos: no primeiro período deste ano lectivo, as 18 crianças de 6 e 7 anos produziram aí 293 textos. Quase 5 textos por dia, quase 12 textos por aluno. Destes textos, perto da metade começam com "Era uma vez uma princesa". Dependendo da autora ? porque é a ala feminina que produz estes textos de encanto ? a princesa recebe o nome de uma amiga da turma ou o seu próprio nome. Invariavelmente as princesas encontram príncipes, bem perto de casa, com os nomes de rapazes da turma ou de uma telenovela. Os príncipes levam as princesas para as suas casas, e, ocasionalmente, para os seus castelos. As casas são pequenas e cor-de-rosa. Como a maioria das casas do bairro. Talvez o empreiteiro fosse também um príncipe.
Os príncipes e as princesas têm uma descendência que poderá tranquilizar quem considera que nascem poucas crianças. Reproduzem os hábitos do bairro e é raro o casal de príncipes que não tem muitos filhos.
Cada dia, os autores apresentam a produção do dia anterior aos colegas. As perguntas que seguem à leitura servem para se certificar dos nomes dos protagonistas. É importante também inteirar-se de pormenores das roupas vestidas pelos casais que emergem da proza. Os comentários mostram um profundo conhecimento do que as lojas do centro comercial perto do bairro têm para vender.
Os príncipes e as princesas têm outra característica: são pobres. As princesas fazem papas com cereais e água ou leite, os príncipes pegam no cavalo para irem às compras nos mini-mercados com nomes iguais aos existentes no bairro.
As princesas relatadas são felizes. Os príncipes pacíficos: nem matam um dragão.
Produzem também estudos. As princesas e os príncipes da turma escrevem, lêem e discutem ideias. Confrontam com textos distantes, de outros autores, que são de fantasia: Bratz, Winx, Which. Consideram que os seus nobres são reais, os outros são imaginações.
A turma visitou o seu próprio bairro, inquirindo pais, mães e familiares e entrevistando comerciantes. Analisou o bom e o mau que existe no bairro e publicou o que descobriu. As crianças convidaram para a exposição que fizeram o poder, a hierarquia local e a comunidade. Relataram e propuseram como melhorar alguns aspectos do bairro.
A comunidade olhou e ouviu atentamente o que eles tinham para dizer.
Os decisores, mais uma vez, não apareceram.
Existem muitos olhares sobre o bairro social onde se situa a escola.
Os olhares de quem não vive lá e decide, sem ouvir a próxima geração.
Os olhares de quem nasceu lá, propõe e provavelmente será excluído de qualquer tomada de decisão.
Os olhares de quem analisa, raramente ouvido.
E existe também o olhar lúcido destas crianças que trabalham e decidem em conjunto a gestão do trabalho na sala, os projectos que abraçam. Elas analisam as recolhas que fazem e contam o que descobriram. Aprendem a tomar decisões em função do que produzem individualmente e colectivamente. Insistem em ser ouvidas por adultos e por isso também sabem ouvir.
Por terem nascido onde nasceram, recebem dos que afirmam falar por elas olhares de desconfiança.
Sabem que ser democrata é muito mais do que representar o outro.
Príncipes e princesas. Do bairro.

Nota:
Pascal Paulus publicou na Profedições o livro: «A escola faz-se com pessoas», ver: http://www.profedicoes.pt/livraria

Pascal Paulus


  
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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