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De Macau... "e as foi vender a uma barca"

? tomaram com força da Lorchinha as duas mulheres e as embarcaram na barca tapando-lhes a boca para não se ouvirem os seus gritos? (Ofício do Procurador do Leal Senado de Macau, 1849)

Macau, 1749.
Fevereiro conheceu o desaparecimento de duas mulheres: uma, filha da terra; outra, filha de Timor e da servidão. O abismo social que as separava não impediu que partilhassem a aventura de uma viagem quase sem regresso, deixando-lhes o sabor amargo da traição e da violência.
No centro da história está um chinês de nome Pação, por alguns rotulado de "velhaco" e talvez o autor dum crime que não ficou escondido; para outros, era vítima da intriga das duas mulheres que com ele partiram de livre vontade. De novo se confirma que nem todos os casos que passam pelo banco da justiça, seja qual for a cidade e a época, conhecem a luz da verdade absoluta. Fica apenas, para o futuro, a verdade relativa oferecida pelos diferentes testemunhos. Pação manteve a sua versão: embarcar nunca foi imposto, em nenhum momento. Uma versão narrada aos mandarins que se interessaram pela origem daquelas mulheres e que eles se inclinaram a aceitar porque o tal china tinha levado muitos tratos.
Diferente era a descrição feita pelas duas mulheres, as outras protagonistas desta história: uma, macaense, casada com marido ausente e mãe de três filhos; a outra, timorense, de nome Francisca, uma das muitas cativas que em Macau viviam. Elas afirmavam que ter aceite de boa fé o convite que Pação lhes dirigiu para irem mariscar até à ilha do Bugio, porque o conheciam na cidade como filho da terra. Embarcaram na Praia Grande, numa pequena lorcha, passando a Barra de Macau e saindo mar fora. No entanto, em vez de recolher o marisco do seu sustento, foram transformadas em sustento de quem trafica o corpo e a alma dos que se deixam enredar. Acostaram a uma barca de carvão e Pação subiu a bordo. Pouco tempo depois, três chineses apareceram para as obrigar a com eles seguirem viagem, tapando-lhes a boca para que os seus gritos não fossem ouvidos e, assim, garantir o silêncio aconselhável.
Pação recebeu cinquenta patacas, a medida por ele encontrada como certa para pagar a liberdade das duas mulheres.
A barca de carvão dirigiu-se a Dianbai. As estranhas mulheres, ao desembarcarem, despertaram a atenção dos muitos olhos e ouvidos que policiavam a vila em nome dos mandarins locais. Elas foram de imediato conduzidas a um mandarim? e a outro? e a outro, até chegarem à presença de Zhixian, magistrado do distrito. Uma vez conhecida a sua versão, reforçada pela força do argumento que nada as levaria a abandonar marido, filhos e senhor, foram enviadas de volta à sua cidade de Macau. Mas, depois de ouvida a versão do chinês Pação, as dúvidas ficaram no ar...
Quantas perguntas não podem ser feitas, todas elas sem uma resposta que nos satisfaça?
Os mandarins, desconfiados, inclinaram-se a acreditar em Pação, reclamando o regresso das mulheres, para serem confrontadas com aquele que acusavam de as ter raptado, ou exigindo o seu castigo. Por outro lado, a história contada pelas mulheres teve bom acolhimento junto das autoridades do Leal Senado de Macau e, em particular, do seu procurador.
Esta divergência de opiniões em nada ajuda a clarificar o sentido desta história. Pelo contrário, oferece-lhe o nevoeiro que nasce quando os homens do poder dão sinais de administrar uma justiça pouco cega e nada surda quando se trata de defender aqueles que lhes estão mais próximos.
Macaenses, timorenses, chineses? Os personagens deste episódio são uma pequena amostra da diversidade das gentes que povoavam Macau. A esta diversidade correspondeu sempre uma variedade de histórias sem que ninguém tivesse garantido o exclusivo, nem da benignidade, nem da vilanagem.
Num outro mês de um outro ano da História da cidade, novas vítimas e agressores surgiram, heróis e vilãos que fabricaram os enredos do quotidiano de Macau.


  
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Edição:

N.º 173
Ano 16, Dezembro 2007

Autoria:

Alfredo Gomes Dias
Professor na Escola Superior de Educação de Lisboa
Alfredo Gomes Dias
Professor na Escola Superior de Educação de Lisboa

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