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O exército da sombra
Quando os críticos acusaram Jean-Pierre Melville de fazer as personagens deste seu filme idênticas às de um filme de gangsters, ele não tomou isso como um cumprimento. "Absolutamente idiota", disse. Tinha razão, num certo sentido. Os críticos não diziam isto como um cumprimento, mas porque resistia? Os filmes de Melville mais conhecidos - "Le Doulos"(1962), "Le Samourai"(1967), "Le Cercle Rouge"(1970), por exemplo - são filmes de gangsters, versões de filmes americanos transferidos para França. Porque não filmá-los como tal? Bem, o filme de que estamos a falar não é nenhum dos que referimos antes, e não é um filme de gangsters. "L?Armée des Ombres"(1969), a obra-prima de Melville sobre a Resistência, é sobretudo uma questão de estilo, de maneiras de representar, de maneiras de representar e falar, e acima de tudo, de não falar. Mas também é aquilo a que poderemos chamar uma questão de moral: como parecer certo quando não está, como tomar decisões feias mas necessárias, como viver com as lições dadas pelo nosso próprio medo.
Este filme só foi estreado em 2006 nos "States", mas foi considerado por vários críticos como o melhor filme do ano.
Conta as aventuras de um grupo de Resistentes de 1942 a 1943, incluindo uma visita ao quartel-general dos Franceses Livres em Londres - completada com uma visão de De Gaulle - e parece à primeira vista uma sequência de ilustrações da vida do movimento. Um homem é preso, planeia a fuga, mas é transferido para Paris antes de a conseguir. Em Paris mata um alemão e consegue fugir, voltando ao seu trabalho na clandestinidade. Juntamente com os seus camaradas, executa um traidor em Marselha e secretamente transporta um dos seus dirigentes para Inglaterra. Um membro do seu grupo é preso pela Gestapo em Lyon, há uma tentativa para o libertar...mas falha. A personagem principal é capturada e vai ser fuzilada, mas consegue ser libertada pelos seus camaradas no último minuto. Um outro traidor é executado, e o filme termina com uma informação detalhada, com letras brancas num écran negro, da morte das personagens principais, pouco depois do que acabamos de ver. Outras três morreram durante o filme.
Mas como provavelmente perceberam deste rápido e "chato" resumo, o filme não é uma sequência de ilustrações. Não é um retrato do trabalho da Resistência, mas dos resistentes.
Numa cena particularmente cruel, ele e dois parceiros apercebem-se que não podem abater um traidor da forma como planeavam, pois a casa vizinha não estava desocupada como pensavam, e decidiram, depois de grande discussão, estrangulá-lo. Tiveram esta discussão na presença do próprio traidor, um jovem de ar inocente, que assiste espantado a tudo isto, sem se aperceber da sua morte eminente. Um dos colegas de Gerbier não consegue ir para a frente com aquilo, "porque nunca o tinha feito", diz. "Moi non plus," responde Gerbier. O que interessa não é o que se sente mas a necessidade de acção. É por isso que Melville, como disse numa entrevista, não nos dá muitos pormenores do que o jovem fez e porquê. Mais do que o julgamento de acções individuais, o que lhe interessa são as consequências da traição, os pontos fracos do movimento,.
Mais tarde, quando prestes a ser fuzilado, Gerbier. "Vou morrer, e não tenho medo. É impossível não ter medo quando vamos morrer. Sou muito limitado, muito animal para acreditar nisso. Mas se não acreditar até ao último momento, até ao fim, nunca morrerei. Que descoberta!" Mas nessa altura o oficial da Gestapo, num momento de sadismo, dá àquele grupo de homens uma última hipótese. Se começarem a correr, e conseguirem chegar ao muro do pátio da prisão ...serão mortos da próxima vez. Gerbier jura para si próprio que não correrá como os outros, mas acaba por ver-se a correr. E é por correr que os seus camaradas o vão conseguir salvar.
Mathilde, magnificamente ? é a palavra - interpretada por Simone Signoret, é uma organizadora brilhante que consegue salvar Gerbier de uma morte certa. Mas tem uma falha: não é o seu amor pela filha de 17 anos, mas a falta de vontade de se separar da fotografia da rapariga, como sabe que devia fazer e diz que vai fazer, mas permitindo que a Gestapo saiba os nomes da sua gente para salvar a filha. Gerbier decide que tem de ser morta para evitar mais delações. Todavia, os seus subordinados recusam-se, devido a uma compreensível lealdade depois de tudo o ela tinha feito. O chefe de toda resistência, Luc Jardie, um filósofo tornado activista, explica-lhes que Mathilde na realidade quer ser morta. Os subordinados ficam convencidos. Numa cena indescritível, os quatro homens, num carro, encontram-se com Mathilde numa rua de Paris. Ela vê-os e percebe o que vai acontecer. Enquanto ela cai, o carro afasta-se, e a câmara com ele. As paredes das casas parecem fugir, como se nós fugíssemos também desta execução.
Com tudo isto, parece estranho que Melville chame ao filme "um sonho retrospectivo, uma peregrinação nostálgica", do qual "extraiu todo o realismo". Disse ainda mais curiosamente que "não tinha intenções de fazer um filme sobre a Resistência". O que Melville parece dizer é que um filme feito em 1969 sobre acontecimentos de 1942-43 tem de ser nostálgico, e que mesmo "bad old times" se tornam "good old times" quando são nossos. É esta a força da citação de George Courteline que abre o filme: « Mauvais souvenirs soyez pourtant les bienvenus...vous êtes ma jeunesse lointaine."
De facto o filme refina e complica este lema consideravelmente, desde a sua brilhante abertura. Vemos o Arco do Triunfo a partir dos Campos Elísios. Ruas vazias, à volta do Arco. Depois ouvimos uma marcha militar e pés batendo no chão, esperamos uma parada militar passando por ele ou à sua volta. Enquanto esperamos por isto aparece a parada vinda da esquerda que se dirige a nós. Alemães, claro, e continuam a aproximar-se, como o comboio a chegar no famoso filme dos irmãos Lumière. Param de repente à nossa frente. Pareciam esmagar-se contra a própria câmara. Estes são claramente os "bad guys", e é isso que a imagem nos mostra. Mas não são más recordações. São belíssimas, são memória do tempo em que os inimigos eram sem dúvida aqueles. E mesmo o horror da execução de Mathilde não é simplesmente uma má recordação. È uma marca de um confronto diferente, de decisões impossíveis. Neste sentido, o filme é um sonho e uma peregrinação, mas duas coisas diferentes dos "old times". Era um mundo simples, onde sabíamos onde estávamos. E o outro um mundo de custos morais excessivos, que esperamos nunca ter de pagar.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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