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O homem imaginado

Para a Manuela Mendonça, pela coragem

No panorama praticamente desértico que é a edição de cinema em Portugal, o aparecimento simultâneo de dois livros de um mesmo autor é o que se pode chamar um acto de coragem. Foi o que fez a editora Livros Horizonte e o autor João Mário Grilo, integrados na colecção Horizonte do Cinema, que se encontrava há alguns anos moribunda. Homem Imaginado - Cinema, Acção, Pensamento mostra logo no título a sua cumplicidade com Homem Imaginário, de Edgar Morin, um livro importantíssimo na história do cinema, pela sua reflexão teórica e filosófica.
Na "nota liminar" o livro de Grilo mostra logo ao que vem: "Este livro ,(...) é um livro político. Escrito em nome de todos nós, cine-filhos : dos que confiamos ao cinema o melhor das nossas crenças e emoções para dele recebermos, na sala escura, um modo prático de as colocar na vida. É uma dívida imensa que este livro procura, parcialmente, pagar".
Constituído por ensaios, publicados em várias revistas, que abordam temas tão díspares e fascinantes como a supressão de elipses no "Zapruder film"- o filme amador que registou o assassínio de John Kennedy ? tal como foi utilizada por Oliver Stone em "JFK", e o "nascimento de um espectador", que parte do princípio que o homem que viu os primeiros filmes dos irmãos Lumiére e de Meliés não era "como os seus pais".
Mas, para mim, o mais interessante é, sem dúvida, o "Pequeno abecedário para uso do cinema", publicado originalmente na revista francesa Trafic, em 2004. Em "Liberdade":
"Defender, intransigentemente, a liberdade do cinema, como se tem feito em Portugal, desde há trinta anos, é defender, em última instância, a liberdade dos seus espectadores (não só dos presentes, mas sobretudo dos futuros). Garantir que um filme não volte a ser produto de nenhum sistema político nem algo negociado com interesses estranhos ao exclusivo espaço artístico do cinema. O autor é, simplesmente, a referência mais próxima dessa garantia, dessa liberdade... que não é dele, mas dos outros para quem ele filma". E, mais à frente, em "Televisão": "A televisão é o campo de concentração instalado em casa. Um prédio da periferia, um televisor, o cenário está montado. Uma vez, um programador de um canal de televisão explicou-me como podia olhar os telespectadores, vigiando, minuto a minuto, segundo a segundo, os gestos de zapping. Contou-me, também, como certos políticos, eram evitados pela televisão quando as audiências não lhes eram favoráveis. Televisão: vista à distância comandada pelo kapo, o chefe do campo. Razão tinha Resnais quando terminou, com estas palavras o seu terrível "Nuit et Broulliard": "Nove milhões de mortos assolam esta paisagem. Quem de nós vela neste estranho observatório, para nos avisar de novos carrascos? Terão eles um rosto diferente do nosso? Algures, entre, existem, ainda, kapos com sorte, chefes recuperados, delatores desconhecidos. Há, também, os que não acreditavam, ou que acreditavam apenas de vez em quando. E nós, que olhamos sinceramente estas ruínas como se o velho monstro concentracionário estivesse morto, enterrado nestes despojos. Fingimos esperança nesta imagem que se afasta, como se ela nos curasse da peste concentracionária, Fingimos acreditar que tudo isto é coisa de um só tempo e de um só país, e não pensamos em olhar à nossa volta e não ouvimos que se grita sem fim"
O segundo livro é O Cinema da não ilusão - histórias para o cinema português, mas esse ficará para outras núpcias. Como dizia Luís Miguel Oliveira no "Leituras" de 29 de Dezembro passado, "Se acredita no cinema, leia estes livros".


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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