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Afirmar a profissão docente: encruzilhadas e desafios
O Presidente da República aprovou, como se esperava, o novo Estatuto da Carreira Docente (ECD) e não deve tardar muito para suceder o mesmo ao anteprojecto da avaliação de desempenho dos professores. Se as aulas de substituição já incomodam gente que chegue, o projecto da «Escola a Tempo Inteiro» não deixa de incomodar gente de mais. Os tempos mínimos de leccionação no 1º CEB são o melhor exemplo de que, para o Ministério da Educação, há emendas que são piores do que os respectivos sonetos. A anunciada reforma do Secundário, porque não deixa de ser mais um acto falhado, não passa, por isso, de mais uma oportunidade perdida.
A lista dos acontecimentos que explica o desânimo e a descrença que se sentem, hoje, na voz e nos gestos dos professores não acaba aqui, sendo suficientemente longa e fastidiosa para continuar a ser citada. De resto não é essa lista que importa identificar, mas as consequências da mesma do ponto de vista da afirmação educativa e social desses professores, de forma a que estes possam encontrar as respostas mais adequadas para enfrentarem o estado de depressão profissional em que, actualmente, se encontram.
Hoje, então, torna-se necessário distinguir, do ponto de vista do processo de afirmação profissional dos professores, o que diz respeito à acção sindical docente propriamente dita do que tem a ver com as modalidades de gestão administrativa e pedagógica das escolas ou com as intervenções de carácter curricular e pedagógico que aqueles possam protagonizar.
No primeiro caso, afirma-se como prioritário demonstrar, por exemplo, como o novo ECD não só não cumpre as finalidades que justificam a sua existência, enquanto instrumento de transformação e mudança educativa, como vai contribuir para que nas escolas se verifique um conjunto de ocorrências problemáticas inéditas, capazes de afectar negativamente quer o clima de trabalho e a vida nessas escolas, quer a possibilidade de gerar um clima de cooperação congruente com a natureza e a grandeza dos desafios que, actualmente, se colocam às organizações escolares. Trata-se de uma luta difícil, quanto mais não seja porque será longa, marcada por contradições várias e exigente em termos da coragem cívica e da inteligência estratégica de que temos que dar provas. Neste âmbito importa, igualmente, denunciar o absurdo do programa da «Escola a Tempo Inteiro», conferindo visibilidade à falta de qualidade educativa do projecto, a qual é consequência directa das orientações de política educativa do Ministério da Educação. É, finalmente, neste nível de acção que a reivindicação da autonomia das escolas continua a constituir uma necessidade imperiosa.
No segundo caso, exige-se, como consequência da mesma coragem e da mesma inteligência atrás referidas, que se promovam actuações lúcidas, as quais possam conduzir, pelo menos, a minimizar os estragos de uma política educativa subordinada a razões de carácter economicista e a uma agenda de inspiração neo-liberal. É assim que se entende a transparência como condição fundamental que possa justificar a implementação de modalidades e de dispositivos de gestão dos agrupamentos de escolas, em função dos quais seja possível evitar o nepotismo e a burocracia, para que assim se afirmem e se definam procedimentos susceptíveis de respeitar as representações e as intervenções de cada professor, no âmbito do conjunto de compromissos profissionais que estes colectivamente terão que assumir. Compromissos estes que não poderão ser estranhos a nenhum desses professores, bem como ao modo como estes são estimulados a avaliar os problemas, os recursos ou os projectos, de forma a agir em conformidade.
Eis-nos, então, perante um desafio exigente que se coloca a todos os que dirigem os agrupamentos de escolas, já que estes são obrigados quer à adopção de uma postura estratégica lúcida e consequente, quer à assunção de uma atitude perseverante, quanto mais não seja porque muitas das propostas e dos projectos que se animam nem sempre são compreendidos, de imediato, quanto às vantagens que comportam. Neste âmbito, importa compreender, por exemplo, que a disciplinarização do 1º CEB é consequência mais das orientações dos agrupamentos do que propriamente do despacho do Secretário de Estado, ainda que este despacho não passe de uma tentativa desajeitada para responder a problemas que implicam outros tipos de soluções. Do mesmo modo, importa valorizar, também, as medidas que podem contribuir para que a institucionalização escolar das crianças seja o menos penosa possível, tal como se pode esperar que uma abordagem distinta e singular das soluções encontradas para colmatar o absentismo docente possa e deva ser considerada. É neste âmbito que se terá que valorizar, como motivo de reflexão, todo o conjunto de intervenções que tem os professores como actores primeiros e directos, nomeadamente as propostas de acção que ocorrem nos domínios curricular e pedagógico, as quais terão que ser congruentes com os propósitos e os valores que caracterizam a vida em sociedades que se afirmam como democráticas.
Em suma, o maior problema da actual política educativa, no que ao estatuto dos professores diz respeito, tem a ver com o processo de funcionarização da classe docente. Seria um erro responder a uma tal ofensiva, através de uma estratégia de pendor corporativista, o que significa que não se pode abordar aquele processo como se só a actual equipa ministerial fosse a única responsável pela degradação do estatuto profissional dos professores. Há também obstáculos que dizem respeito às representações e idiossincrasias que estes perfilham, bem como às modalidades de acção profissional que estes activam, sendo necessário, por isso, diferenciar estrategicamente os percursos a trilhar no âmbito de um processo de afirmação que, como nos dois últimos anos se comprovou, é uma tarefa que nunca poderá ser entendida nem como exterior ao modo como se exerce a profissão docente, nem como uma tarefa que outros, só por si, poderão impedir. Isto não significa que possamos branquear todas as iniciativas do Ministério da Educação que têm vindo a contribuir para a proletarização do trabalho dos professores, mas tão somente admitir que aquele processo de afirmação profissional é bem mais complexo e exigente, obrigando, também, a que os professores possam realizar um exercício de auto-interpelação quanto às responsabilidades e aos compromissos que lhes dizem respeito.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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