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A tecnologização dos desejos

"Eu queria ter um notebook cinza. É para pesquisar na Internet e jogar jogos. Eu sempre quis ter um notebook também porque ele é prático, é leve e eu posso levar para onde eu quiser. Ele serve para me divertir, jogar, falar com os meus amigos, etc."(1)

Esse pequeno texto foi produzido por uma menina de dez anos, que freqüentou, em 2006, o ensino fundamental em uma escola da rede pública municipal da cidade de Porto Alegre. Resultou da atividade proposta pela professora para que escrevessem sobre seus desejos e pedidos de Natal.
Nessa mesma escola, outra professora, agora de crianças de seis anos de idade, solicitou que cada aluno desenhasse, em uma cartinha dirigida ao Papai-Noel, o que gostaria de ganhar como presente. Dentre os pedidos surgiram brinquedos acionados por controle remoto, bonecas que falam, cantam e se movimentam, celulares, Nintendos, robôs, rádios portáteis, iPods, televisões de plasma e, em primeiríssimo lugar, os notebooks. Tudo isso para surpresa da professora da turma − composta de crianças muito pobres (a maioria delas vivendo em condições quase miseráveis) − que esperava dos alunos e alunas a expressão de desejos simples como carrinhos, bonecas e bolas.
No entanto, precisamos admitir que mesmo as crianças pobres são crianças de nosso tempo. Um tempo em que a vida se organiza dentro do universo tecnológico, que vem modificando não apenas as formas de pensar, como também sonhos, desejos e significados. As novas tecnologias da comunicação e da informação borraram fronteiras e embaralharam desejos e capacidades. Crianças que sequer dispõem de condições mínimas de saneamento em suas casas conhecem o funcionamento e a finalidade de artefatos sofisticados (como notebooks, celulares digitais e iPods) tanto quanto crianças de condições econômicas privilegiadas, ou tanto quanto adultos. Elas aprendem cedo com a mídia a dominar a "gramática" tecnológica.
Além disso, a infância passa a ser um dos alvos preferenciais dos investimentos de marketing no mercado de tecnologia. Os discursos em circulação vêm recorrentemente narrando a infância como a parcela da população dotada de grande capacidade e facilidade na aquisição de habilidades para o manejo das novas tecnologias. "Superespertinhos", "Infância hi-tech" e "Infância digital" são alguns dos termos utilizados para representar as crianças de hoje. Outro recurso utilizado para representar a infância contemporânea como plenamente imbricada no universo tecnológico e midiático é a crescente associação de imagens de crianças com imagens de computadores, notebooks, vídeo-games, celulares, televisores, etc. Imagens mostrando crianças em seus quartos, na frente do computador e com um televisor ao lado, têm sido freqüentes tanto nas peças publicitárias quanto na programação mais ampla das mídias impressa e eletrônica − novelas, desenhos de animação, seriados e filmes. Além disso, a infância é o alvo preferencial de uma série de invenções tecnológicas e midiáticas. Exemplos disso são os cachorros virtuais (cyber-animal)(2), lançados no Brasil no segundo semestre de 2005, ou o sistema operacional que permite que crianças desde os dois anos de idade possam enviar e-mails e navegar na Web (3). Ou então, o teclado de computador super colorido, chamado Kidsboard, no qual as cores diferenciam a função das teclas(4).
Estamos imersos e capturados por uma sociedade da informação que proclama incessantemente os benefícios das tecnologias, desqualificando formas de vida desconectadas de tal universo. Ao mesmo tempo em que se inscreve a infância nos discursos que celebram as tecnologias, as próprias crianças procuram se instalar e movimentar nesse mundo. Além do fascínio a que estão sujeitas, parece que cada vez mais seus desejos se afinam com aqueles que lhes conferem prestígio por serem amplamente reconhecidos e valorizados nos mais diversos pontos do globo.

  1. Texto original, já incorporando correções da professora.
  2. Nintendog é o game da Nintendo que simula um filhote de cão (você pode inclusive escolher a raça). O modo de simulação é semelhante ao Tamagochi, mas rodado em computador e oferecendo recursos variados como microfone para falar com o filhote (que reconhece a voz do dono) e uma tela interativa que permite acariciar o filhote, arrastá-lo para outros lugares e adestrá-lo por meio de gestos.
  3. Trata-se do Magic Desktop que opera pelo Windows e permite aos pais restringir o acesso a ferramentas e conteúdos da Internet. Envia-se um e-mail para a avó com um clique sobre sua foto. Mensagem de voz de até um minuto (menos de 100 Kb) é gravada e enviada clicando no ícone de um papagaio. (Zero Hora, 13/10/05, p. 2)
  4. A propaganda do referido teclado foi publicada sob o título "Teclados inteligentes", acompanhada de uma imagem do teclado, no jornal Zero Hora de 07/12/05.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Mariangela Momo
Mestranda em Educação na linha de pesquisa Estudos Culturais, tendo como orientadora a Profª. Drª. Marisa Vorraber Costa
Mariangela Momo
Mestranda em Educação na linha de pesquisa Estudos Culturais, tendo como orientadora a Profª. Drª. Marisa Vorraber Costa

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