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Luandino Vieira: a crónica e a fábula
Terá sentido recuperar a recensão que, na PÁGINA de Agosto-Setembro de 2003, fizemos sobre as duas últimas obras de Luandino então publicadas em Portugal, depois que aqui se fixou em 1992, procurando a "despreocupação e a preguiça" de que necessitava para "começar qualquer coisa de novo (...) que significasse para a actual literatura angolana o que "Luuanda" significou em 1963 " ? como declarou, em 1982, numa entrevista ao "Jornal de Letras". Centrava-se a recensão nas duas obras que colmatavam um interregno de mais de vinte anos: "Nosso Musseque" e "Kapapa, pássaros e peixes."
Considerávamos nós que, com estes dois trabalhos, Luandino fazia "uma clara afirmação de unidade e coerência com o princípio ? sem apostasias nem cambalhotas" (como se vira noutros confrades), retomando uma "viagem ao passado, que tanto poderia significar, como escreveu Cesare Pavese: 'Nada é mais inabitável do que um lugar onde se foi feliz' como o que escreveu Rui Duarte de Carvalho: 'Um homem não deixa nunca sem mágoa um espaço que inventou, uma nação que urdiu por escolha e amor ao chão."
Hoje, em presença do primeiro volume de um romance que se anuncia como trilogia, "De Rios Velhos e Guerrilheiros - 1.O Livro dos Rios", editado simultaneamente em Luanda e Lisboa, apraz-nos acrescentar àquelas linhas o que já foi dito por outros: o escritor, por mais variados que sejam os temas tratados na sua obra, acaba por escrever um só livro na vida...
No caso de Luandino, aquela ideia de um "livro único" adequa-se a uma obra que se desenvolveu, através de vários tempos e cenários, em coerência com o "leit motiv" que permanece desde o seu primeiro trabalho de vulto, publicado em 1960 pela Casa dos Estudantes do Império: "A Cidade e a Infância": a luta do povo angolano contra a dominação colonial.
De facto, tomando por marcos do percurso literário de Luandino livros emblemáticos como "A Cidade e a Infância"(l960), "Luuanda" (1972), "A Vida Verdadeira de Domingos Xavier"(1974), "No Antigamente, na Vida" (1974) "Nós, os do Makulusu" (1975), entre outros, ou, já no período da sua fixação em Portugal, a partir de 1992, "Kapapa, pássaros e peixes" (1998) e "Nosso Musseque" (2003), quase todos eles escritos, à excepção de "Kapapa", - incluído numa colecção infanto-juvenil da EXPO-98 e que surge recomposto num capítulo do livro em apreço - nos períodos terríveis da sua prisão pela PIDE, nas décadas de 60 e 70, nas cadeias de Luanda e no campo de concentração do Tarrafal, não é difícil verificar que a "viagem" continua em 2006, não se perguntando mais, como o crítico e ensaísta Manuel Ferreira, em 1977, num prefácio à terceira edição de "A Cidade e a Infância": "E agora, Luandino?"
Agora só se espera, confiadamente, pelos dois livros já anunciados do mesmo romance, - "O Livro dos Guerrilheiros" e "Ela e os Velhos" ? sendo o primeiro já suficiente para verificar que Luandino continua fiel ao "leit motiv" de sempre, estilisticamente mais refinado, - "parecendo que aprecia o degustar da linguagem entre o aprumo ático e o caudal barroco", como o analisa a crítica substanciosa de Pires Laranjeira no "JL"? mas talvez não menos instado para servir o conteúdo ( a "mensagem") do que a forma.
Uma significativa "advertência", aliás, é feita claramente no começo do livro: na epígrafe, quando cita palavras da rainha Njinga Mbandi ("In dubio cronichae, pro fabula" ? assim mesmo, em latim!), proferidas a 17 de Dezembro de 1663, dia anterior ao da sua morte, alegadamente na presença de dois reputados historiadores: António de Oliveira Cadornega e Giovanni Antonio Kavazzi di Montecúccolo, o primeiro, um ex-militar português radicado, como comerciante, na vizinha vila de Massangano, o segundo, um padre italiano capuchinho, que foi assistente espiritual da rainha da Matamba, convertida ao catolicismo como D. Ana de Sousa; e na identificação do narrador da estória como negro e guerrilheiro, com o nome de guerra Kene Vua e de civil, Kapapa, que seria o seu para o resto da vida depois da luta, "revoltando" aos mares, rios, peixes e pássaros da mãe-terra.
Aquela "advertência" pode querer dizer várias coisas: que o autor, Luandino, não distinguirá o que é histórico e ficcionado; que o protagonismo dado a um guerrilheiro negro, num contexto de exaltação do povo quimbundo, ora resistente na sua terra de muitos rios, ora vitorioso em muitos recontros nas suas margens, vale como ícone de uma gesta predestinada para vencer o "caminho do homem na morte" (o njila ia diiala mu'alunga) para ali transplantada, ao longo dos séculos de ocupação e conquista, pelos capitães-mores, sempre representados, com horror, como "quinzaris" ou "kingandus" (ferozes e mal cheirosos).
Luandino escreveu um livro que tem como virtual destinatário o povo de uma nação histórica e morfologicamente contextualizada, definida por um determinado espaço, cultura e língua ? a nação quimbunda. O leitor alienígena, incluindo o português, apesar das notas de rodapé e do glossário, precisará de se munir com uma credível História de Angola e um bom dicionário de quimbundo para apreciar razoavelmente a "fábula" e escrutinar a "crónica", assim valorizando a eficácia das abundantes figuras de estilo e da aparente incontinência de evocações e invocações de eventos cumpridos e por cumprir, em acordo com os códigos estéticos, linguísticos e éticos de uma dada identidade nacional.
E precisará mais: de ler a Bíblia e cotejar com o Velho Testamento os paralelismos que Luandino estabelece entre a "genesíaca" terra quimbunda banhada pelos rios que confluem no Kwanza e a Terra Eleita da Babilónia, banhada pelos rios Tigre e Eufrates; e também com o Génesis, os Livros Sapienciais e Proféticos, o encontro entre Deus e Habacuc e a última vontade de Jacob...
Enfim, os limites desta recensão pouco mais permitem do que suscitar a atenção do leitor para um livro de textura densa e "caleidoscópica", que surpreende, seduz e perturba ? e que reafirmará o escritor branco, por acaso oriundo de Portugal, que encarnou, como nenhum outro, o corpo e a alma de um nacionalista negro angolano.

  
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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