Página  >  Edições  >  N.º 158  >  ?A grande maioria não tem outra opção senão exercer uma segunda actividade?

?A grande maioria não tem outra opção senão exercer uma segunda actividade?

Artistas plásticos portugueses acompanham de perto a crise do país

Como (sobre)vivem os artistas plásticos em Portugal? De que forma conseguem adquirir um estatuto que lhes permita viver da sua actividade? A arte não estará transformada num mercado especulativo onde só os mais afortunados triunfam? Estas são algumas das questões que colocamos a António Domingos, pintor, formado em pintura pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, e ex-professor do ensino básico.

Como é ser artista plástico hoje em Portugal? É possível viver exclusivamente do trabalho artístico?

Em Portugal existe um número muito reduzido de artistas plásticos a conseguir viver exclusivamente do seu trabalho. Apenas quem está no circuito há muitos anos e que já adquiriu uma certa cotação no mercado consegue viver exclusivamente do trabalho artístico.
A grande maioria não tem outra opção senão exercer uma segunda actividade, habitualmente ligada à docência. Hoje em dia, porém, mesmo essa opção se torna cada vez mais difícil, dado o decréscimo do número de alunos e, consequentemente, a diminuição do número de vagas a concurso nas escolas para professores da área artística. Daí que as pessoas tenham de arranjar alternativas ao ensino e trabalhar nos mais variados sectores.
Depois, o próprio acentuar da crise económica nos últimos anos faz com que as pessoas tenham menor disponibilidade para investir em bens que, de certo modo, não são considerados de primeira necessidade.

É interessante ter referido a expressão ?bens?? Mais do que uma livre expressão criativa, ter-se-á a arte transformado numa mercadoria?

Eu penso que essa vertente comercial da arte existe praticamente desde sempre, porque um artista que pretende viver do seu trabalho tem de necessariamente vender o que produz. É uma relação de mercado, de oferta e de procura, como qualquer outra actividade.
Claro que quando nos referimos àqueles artistas que são já considerados um valor instituído, cujos trabalhos são vendidos quase por cotação no mercado, com valores previamente estipulados, quem os compra fá-lo muitas vezes na perspectiva de estar a adquirir um valor acrescentado, isto é, no pressuposto de que determinada obra irá valer mais no futuro. É um ciclo vicioso, na medida em que, havendo procura, automaticamente os preços inflacionam.

Mas quem regula, ou fabrica, esse mercado?

O atestado de qualidade de um artista ou de uma determinada obra de arte é conferida pela crítica de arte. Crítica essa que possui diversos graus de prestígio, e que, em função desse prestígio, tem um peso diferente nessa avaliação.
O facto de um crítico estar ou não ligado a organismos de prestígio, como o ministério da cultura, museus ou fundações de renome, determina, por exemplo, que tenha maior influência do que alguém que escreve para um jornal ou uma revista. Também aí existem diferentes graus de importância quando se pronunciam sobre o trabalho dos outros.

Mas quem determina, por exemplo, que um quadro do pintor austríaco Gustav Klimt possa estar avaliado em 180 milhões de dólares? Haverá instituições de tal forma influentes que inflacionam o valor de determinadas obras transformando-as no centro de um jogo especulativo?

Mais uma vez penso que é a lei da oferta e da procura quem estipula esses valores. Uma vez determinado o valor de mercado de um determinado artista ? e o que referiu é sem dúvida uma referência incontornável do mundo da pintura contemporânea ?, existe sempre quem procure adquirir uma obra desse autor, muitas vezes independentemente de gostarem ou não da sua obra ou da relação que tenham com ela, pelo valor acrescentado que ela representa.
Por outro lado, há quem também adquira obras reconhecidas no mercado de arte pelo prestígio social que elas conferem. E essa situação tanto decorre no contexto internacional como a nível nacional, com obras de artistas como Júlio Resende ou Vieira da Silva.

Nesse sentido, até que ponto o mercado não determina, ou pelo menos influencia, a produção dos artistas plásticos?

Correndo o risco de poder especular na resposta que vou dar, acho muito possível que haja esse tipo de influência. Pegando no exemplo concreto de um artista cujos trabalhos se estejam a vender bem ? e esse sucesso está directamente relacionado com quem comercializa os trabalhos, habitualmente a cargo de uma galeria de arte ?, existe sempre a possibilidade de o galerista tentar persuadir o autor a manter a mesma linha de produção, independentemente da vontade deste querer mudar o rumo do seu trabalho.
O mesmo pode acontecer em termos pessoais, isto é, de trabalhar, mesmo que inconscientemente, em função da necessidade de vender ou de procurar agradar aos potenciais compradores, o que também condiciona o trabalho de um autor. Nestes casos, ou se tem um outro emprego que permita dar livre curso à criatividade ou está-se sujeito a todo o tipo de pressões, a começar por aquelas que são levantadas a nível interior.

Como é que um artista, nomeadamente em Portugal, se promove e constrói um percurso? Apenas através das galerias de arte ou é possível construir um percurso através de freelancer?

As galerias de arte não estão acessíveis a qualquer artista que apresente as suas propostas. Partindo da minha própria experiência, sei que as galerias que estão implantadas no mercado têm um determinado lote de artistas com quem trabalham regularmente. Nesse sentido, não se mostram particularmente interessadas em receber novos autores. E tendo de promover regularmente exposições dos artistas que representam, habitualmente chegam ao final da lista e voltam ao primeiro?
As galerias mais recentemente implantadas são aquelas que estarão, à partida, mais receptivas a receber propostas de novos autores.
Para além disso, há sempre a hipótese de recorrer a espaços institucionais públicos ou privados, que são mais acessíveis a propostas de artistas que ainda não tenham nome no mercado e pretendam mostrar o seu trabalho.

Considera a Internet como um veículo válido de promoção da arte ou ela não permite a proximidade exigida à contemplação do objecto artístico?

De facto, a Internet limita-se a oferecer-nos a reprodução de um trabalho, dando-nos apenas uma imagem do que ele representa. Ou já se conhece a obra do autor em questão e essa imagem é suficiente para avaliá-la ou de outra forma penso que dificilmente se comprará pela Internet um quadro que não se possa ver ao vivo. Falando em concreto da pintura, penso que ela pressupõe uma interacção entre o observador e a obra.
No entanto, admito que enquanto veículo de divulgação a Internet possa ter possibilidades interessantes, quanto mais não seja como forma de levar as pessoas a terem curiosidade de conhecer o trabalho em presença.

Partindo da sua experiência de professor no ensino básico, considera que se valoriza suficientemente o ensino artístico na escola?

Do ponto de vista teórico, penso que os programas mostram alguma preocupação no que se refere à importância do contacto e da apreciação da obra de arte e à aquisição de conhecimentos de linguagem visual. De facto, para poder entender aquilo que tenho à minha frente, ou pelo menos favorecer a sua compreensão, eu preciso de dominar de algum modo aquele tipo de linguagem.
A obra de arte deve ter em si uma presença suficiente para comunicar com o espectador, independentemente do seu nível cultural, mas essa comunicação será enriquecida existindo uma bagagem que abra perspectivas para aquilo que se procura descodificar.
Porém, em termos práticos, tenho algumas dúvidas relativamente à possibilidade da implementação dos conteúdos dos programas, já que esta dimensão teórica acaba por ser preterida em favor de actividades mais pragmáticas que esgotam o tempo disponível para a sua concretização.
Além disso, o programa de educação visual e tecnológica não obedece a uma sequência temporal e de conteúdos que permita a todos os professores estarem mais ou menos em sintonia e agirem concertadamente, o que determina a dispersão de meios e de objectivos.
Em resultado disto, passa-se um ano a tentar dar resposta a situações práticas muito concretas, como as efemérides, para mostrar trabalho à comunidade escolar. Claro que nestas actividades há conteúdos que acabam por ser interiorizados pelos alunos, mas elas absorvem a maior parte da actividade de professores e alunos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

António Domingos
Pintor, formado em pintura pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, e ex-professor do ensino básico
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
António Domingos
Pintor, formado em pintura pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, e ex-professor do ensino básico
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo