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Memórias e histórias brasileiras dançadas

Corpos dançantes

Cenas do cotidiano dançante

A leitura de mundo precede a leitura da palavra, já nos disse Paulo Freire e, este texto surge nesta direção, ou pelo menos estamos na fase de leituras de corpos brasileiros  dançantes. Compartilharemos algumas cenas do cotidiano, referências para a nossa reflexão, que nos convidam a um mergulho no que nos contam as danças brasileiras.
Cena 1 ? Numa aula de Cavalo Marinho, dança brasileira cujas origens nos remontam às plantações de cana-de-açúcar, a professora explica  que consiste em movimentos que demandam esforço de pernas e  que o tronco tende, em alguns momentos, a fazer uma insinuação de quem enfia  uma enxada na terra. É uma dança dos plantadores de cana. Para nós, uma dança que anuncia uma memória de trabalho, o labor ancorado ao brincar, o brincar submetendo o trabalho desprazer/rotina, alienação.
Cena 2 ? Num encontro de formação continuada de educadores, em Macapá, no Amazonas, durante uma atividade de roda de apresentações na qual cada participante se apresentaria com um movimento que seria repetido por todos, uma mulher fez um movimento muito bonito. Durante o intervalo, ela explicou que se tratava de um passo de Marabaixo, uma dança da população afro-amapaense. Uma dança em plano médio e de passos miúdos. Segundo informações, a população escravizada dançava, mesmo com os grilhões nos pés que  impediam movimentos largos.  Com o tronco inclinado podiam dançar encobertos pelos canaviais, de uma certa forma, às escondidas.
Mais uma vez a dança conta a história de um povo, de desejo que busca afirmação. O desejo de dançar, de brincar coletivamente, de se alegrar.
Cena 3
? Assistindo um programa de televisão da Comunidade Judaica, uma cantora faz uma analogia entre as músicas e danças judaicas com as danças brasileiras, especificamente, o Maracatu, as Cirandas e o Frevo.
Será que as danças populares brasileiras, as manifestações populares brasileiras nos falam de interculturalidade? De hibridização cultural? De um diálogo entre os povos e populações que constituem nossa brasilidade?
Cena 4 ? Duas brasileiras cariocas foram roubadas num país da Europa. Levaram suas malas e seus passaportes. Ao tomarem as providências legais, foram advertidas que o passaporte brasileiro é muito valorizado no mercado da contravenção pois qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade, etnia ou cor, pode ser aceita como ?brasileira?: brancos, negros, amarelos; hindus, japoneses, chineses, africanos, árabes,europeus, coreanos, judeus, ciganos ...

Sínteses

Juntando estes fragmentos do cotidiano, construímos uma síntese, ainda que  provisória. Provisória porque o cotidiano implica em movimento, transformação, mudanças, mutação constante. Provisória porque síntese é convite a provisoriedade, a critica, é convite a dúvida, a questionamento, é convite à manifestação do inesperado e surpreendente cotidiano.

Norte a Sul do meu Brasil caminha sambando quem não viu?
Benito di Paula

O Corpo carrega memórias, memórias que são reveladas nos passos, comportamentos, nas andanças . Observando o cotidiano e atentando para as cenas destacadas, podemos dizer que a dimensão corporal, para além dos modelos e padrões estéticos hegemônicos, é importante. Sem corpos não somos existentes, vivos, acontecimentos.
Os corpos carregam memórias coletivas, memórias que contam nossa história ao serem reveladas nos genuínos movimentos das nossas danças, das danças brasileiras.Os corpos dos filhos e filhas do Brasil, sejam eles/elas afro-brasileiros/as, indígenas, euro-brasileiros/as, nipo-brasileiros/as... ou de outra das inúmeras ascendências que nos constituem, carregam as marcas da nossa rica diversidade étnico-cultural, da nossa história, carregam memórias que falam da nossa brasilidade, dos encontros, dos confrontos, do contato delas.Somos um povo que caminha sambando, caminha dançando, caminha gingando e este movimento fala de nossa brasilidade, de algo que nos constitui.

E a escola o que tem a ver com isto?

Só nos resta aprender com o que nossos/nossas mestres das danças populares brasileiras nos ensinam de desejo, de resistência cultural, de afirmação de diferenças, de potência de vida, de prazer no fazer, do brincar, do processo de ensinar-aprender, que falam sobre inclusão-exclusão, sobre hibridização, diálogo, intercâmbio cultural, sobre um belo Brasil invisibilizado, sobre uma brasilidade que está inscrita em nossos corpos mas que impiedosamente é tantas vezes impedida de entrar nas escolas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 150
Ano 14, Novembro 2005

Autoria:

Azoilda Loretto da Trindade
Membro do GRUPALFA - pesquisa em alfabetização das classes populares. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Azoilda Loretto da Trindade
Membro do GRUPALFA - pesquisa em alfabetização das classes populares. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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