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Reprimir ou liberalizar: qual o caminho?

O consumo de drogas ilícitas tem registado um aumento crescente nas sociedades contemporâneas e tornou-se numa das mais rentáveis actividades económicas a nível mundial, mobilizando grandes interesses internacionais tanto ao nível da produção como da comercialização.
Apesar dos esforços desenvolvidos, tanto a nível interno como externo ? as Nações Unidas adoptaram, em 1988, uma convenção contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tal como o Conselho da Europa, em 1991 ?, o facto é que muitos países, sobretudo europeus, questionam cada vez mais a eficácia das estratégias e das políticas adoptadas nos últimos anos e defendem uma mudança de atitude e da moldura legal como forma de tentar debelar este problema.
Neste dossier, a Página traça o actual retrato no mundo e no país, dá a conhecer os argumentos a favor e contra a liberalização do consumo e entrevista o director do Instituto da Droga e da Toxicodependência, João Goulão, que explica a sua posição relativamente à política de discriminalização defendida por Portugal.

TRÁFICO E CONSUMO DE DROGA AUMENTAM A NÍVEL MUNDIAL

De acordo com o mais recente relatório da Organização das Nações Unidas sobre o consumo de drogas no mundo, publicado no final de Junho, cerca de 200 milhões de pessoas, representando cerca de 5% da população mundial com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos, consumiram drogas ilícitas no último ano.
Este número representa um acréscimo de 15 milhões de consumidores relativamente às estimativas do ano anterior, mas ainda assim é muito menor do que a percentagem da população mundial que, de acordo com o mesmo documento, abusa de substâncias psico-activas lícitas, como é o caso do tabaco (30%) e do álcool (50%).
Em relação às drogas ilícitas, a cannabis é a mais consumida, com cerca de 160 milhões de utilizadores, o que representa aproximadamente 4% da população mundial entre os 15 e os 64 anos, e a que maior crescimento tem registado. O número de utilizadores de drogas sintéticas, como as anfetaminas e o ecstasy, calculados respectivamente em 26,2 milhões e 7,9 milhões, decresceu relativamente ao ano passado, em especial no sudeste asiático e na América do Norte.
No que se refere ao consumo de opiáceos, dos quais a heroína é a face mais visível, calcula-se que o número de utilizadores ronde os 15,9 milhões (10,6 são considerados dependentes), tendo havido um ligeiro acréscimo do seu consumo no continente asiático. Também o número de consumidores de cocaína, estimado em 13,7 milhões, aumentou relativamente ao ano passado. As análises estatísticas realizadas pela ONU, em colaboração com os organismos nacionais de cada país, sugerem, aliás, um aumento generalizado do consumo de drogas.
Ainda de acordo com este relatório da ONU, apesar de o número de países que assistiram ao crescimento do consumo de drogas continuar a suplantar aqueles cujo índice diminuiu, a proporção entre os dois tem tido uma evolução favorável a favor dos últimos. Assim, se em 2000 a percentagem do número de países onde o consumo tinha aumentado era de 53%, em 2003 ela tinha diminuído para 44%. Paralelamente, a proporção de países onde o consumo declinou aumentou de 21% em 2000 para 25% em 2003.

Um negócio de milhões

Em 2003, o valor global estimado para o mercado de drogas ilícitas era de 13 mil milhões de dólares no sector de produção, 94 mil milhões no sector intermediário e 322 mil milhões ao nível do sector retalhista, montantes que representam cerca de 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial.
Para se ter um termo de comparação com alguns dos sectores da economia mundial, pode dizer-se que aqueles valores foram equivalentes a 12% das exportações da indústria química, 14% das exportações agrícolas, excedendo mesmo, em termos absolutos, o valor total das exportações agrícolas provenientes da América Latina.
De acordo com as estimativas das Nações Unidas, o maior mercado é o da erva de cannabis, com uma fatia de mercado de aproximadamente 113 mil milhões de dólares, seguida pela cocaína (71 mil milhões de dólares), os opiáceos (65 mil milhões de dólares) e a resina de cannabis (29 mil milhões de dólares). O mercado de drogas sintéticas, como as anfetaminas e o ecstasy, está calculado em 44 mil milhões de dólares.
Apesar de a indústria ilícita de droga operar oficialmente à margem da lei ? as suas ?empresas? não estão presentes no mercado de acções e não têm contabilidade organizada ? sabe-se que o mercado da droga actua, à semelhança dos mercados oficiais, nos mesmos termos de oferta e de procura, e que em muitos países os principais traficantes têm aliados no seio do poder político e financeiro.
De acordo com os organismos internacionais especialistas nesta matéria, calcula-se que o branqueamento de capitais provenientes do negócio da droga envolva em média entre 2 a 5% do PIB mundial, o que, segundo a ONU, representará qualquer coisa como 100 mil milhões de contos anuais, 80% dos quais revertem para os países mais desenvolvidos. No caso de Portugal, este valor está calculado numa verba superior a 100 milhões de contos.

Liberalizar ou proibir?

Os custos sociais e económicos decorrentes do consumo de drogas fazem com que este seja um problema de primeira ordem na agenda internacional. E nele se debatem duas grandes posições: os defensores da liberalização e os proibicionistas.
Os primeiros argumentam que o mercado negro das drogas ilícitas propicia a existência de uma economia clandestina e proporciona grandes margens de lucro a quem a comercializa, gerando, por inerência, a prática criminosa por parte de quem a procura.
Através da legalização do comércio e consumo das drogas, os abolicionistas defendem que se diminuiria largamente as margens de lucro dos cartéis de traficantes e se banalizaria o seu consumo em termos simbólicos, levando, em princípio, à sua crescente diminuição; ou seja, o ?fruto proibido? deixaria de ser tão apetecido.
A corrente liberalizadora sustenta, sobretudo, o princípio de que as pessoas devem ter o direito de consumir aquilo que desejarem desde que não prejudiquem terceiros, assumindo esta questão como um problema de liberdade, de responsabilidade individual, sobre a qual o Estado não deveria intervir.
No entanto, nem todos os abolicionistas vêm a questão da liberalização da mesma forma. Assim, enquanto alguns defendem que a liberalização se deveria restringir às chamadas ?drogas leves? (como a erva e a resina de cannabis) ? criticando, neste sentido, a incongruência da legalidade do consumo de drogas lícitas como o tabaco e do álcool ?, outros advogam a liberalização do consumo socialmente integrado, o que pressuporia uma educação para o consumo das drogas, que, em última análise, controlaria o seu abuso.
Por outro lado, os defensores da manutenção da proibição legal, quer do tráfico quer do consumo, tanto de drogas leves como de drogas pesadas, argumentam que a abolição da proibição não diminui a dimensão do problema, alegando a experiência mal sucedida de alguns países europeus como evidência. 
De acordo com esta corrente, estas experiências de liberalização apenas contribuíram para aumentar o tráfico, não tendo conseguido diminuir os lucros ilícitos, acabando por favorecer também o consumo das drogas duras, dando fundamento aos defensores da ?teoria da escalada?, segundo os quais o uso das primeiras conduz, a prazo, à iniciação e abuso das segundas.
Por outro lado, afirmam que não é sustentável a comparação entre as drogas ilícitas e o tabaco e o álcool, já que aquelas se revelam mais tóxicas e acarretam mais efeitos nefastos na saúde individual e pública.
Além disso, afirma-se que é ilegítimo sustentar o fracasso da estratégia proibicionista na medida em que este modelo está longe de estar esgotado, e que a ineficácia da luta contra o crime não é motivo para passar a admiti-lo como norma aceitável.
Assim, concluem, a legalização e liberalização do tráfico não resolveria nenhum dos graves problemas associados à droga, antes os agravaria.

Uma solução a meio termo

Em termos internacionais, as opiniões dividem-se entre a posição europeia e a política norte-americana de combate repressivo ao narcotráfico. Apesar dos argumentos contra e a favor serem igualmente legítimos, o facto é que a realidade demonstra que as políticas repressivas e proibicionistas já mostraram não produzir efeitos práticos na resolução deste problema.
Aliás, segundo o Relatório Anual sobre a Evolução do Fenómeno da Droga na União Europeia de 2004, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, o consumo problemático de droga é menor na Alemanha e na Holanda, este último país conhecido pela sua política liberalizadora, com dois a três indivíduos em cada mil, com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos, a demonstrarem ter consumos problemáticos, ao contrário da Itália, do Luxemburgo, de Portugal e do Reino Unido, com cinco a oito em cada mil indivíduos afectados.
Actualmente, calcula-se que existam em Portugal cerca de 50 mil consumidores de drogas ilícitas pesadas, o que coloca o nosso país na linha da frente deste problema na Europa. O primeiro rastreio nacional sobre a utilização de drogas, realizado em 2001, mostrou que 7,8% dos inquiridos entre os 15 e os 64 anos tinha, pelo menos uma vez na vida, consumido uma droga ilícita. A mais referida foi a cannabis (7,6% consumia-a regularmente), ao passo que as restantes drogas (cocaína, heroína, ecstasy, anfetaminas e LSD) eram consumidas regularmente por menos de 1% da população. A proporção de homens que referiram o consumo deste tipo de substância pelo menos uma vez na vida é mais elevado do que as mulheres (11.5% / 3.9% para cannabis; 1.2% / 0.2% para heroína e 1.5% / 0.3% para cocaína).
Apesar destes números, Portugal desde sempre optou sempre por uma política proibicionista e repressiva relativamente aos consumidores. No entanto, em meados da década de 90, começou a questionar-se se esta seria de facto a política mais adequada, já que se tornou relativamente consensual que a política de repressão e de proibição utilizada no combate ao tráfico de droga obtinha resultados apenas ao nível da apreensão de estupefacientes. A droga, essa, continuava, e continua, a ser vendida e consumida, acarretando enormes custos sociais e económicos.
Em 1996, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, num relatório-parecer sobre ?Liberalização da droga e despenalização do seu consumo?, entendia que as medidas legais de liberalização da droga, quer total quer parcial, poderiam ?conduzir a consequências eticamente gravosas, quer do ponto de vista da pessoa, singularmente tomada, quer do ponto de vista da sociedade e do Estado?.   
No entanto, o parecer ressalvava que as ?medidas legais tendentes a descriminalizar o consumo seriam ?admissíveis do ponto de vista ético? se tais medidas garantissem a ?aceitação e procura de tratamento e recuperação por parte dos toxicodependentes?.
Em Julho de 2001, o governo socialista aprovou legislação que foi ao encontro das políticas discriminalizadoras seguidas em países como a Holanda, a Espanha ou, mais recentemente, o Reino Unido. A principal novidade nesta nova estratégia de luta contra a droga baseou-se precisamente no esforço de alterar a tradicional política reactiva e dogmática no sentido de uma abordagem fundada na informação e na prevenção.
Apesar de manter o estatuto ilegal de todas as drogas, previsto nas convenções das Nações Unidas, esta política passou a não condenar judicialmente a posse de pequenas doses de drogas para consumo individual, encarando os consumidores como indivíduos a necessitar de tratamento e não como criminosos de delito comum ?atribuindo-lhes penas administrativas ou multas -, acentuando, ao mesmo tempo, a proibição e repressão do tráfico.
A moldura penal para o tráfico de droga em Portugal prevê penas de prisão que podem ir de um a doze anos de cadeia, havendo, no entanto, diferentes critérios consoante a natureza da substância em causa. Nos casos em que o toxicodependente vende droga para financiar o seu próprio consumo a pena é reduzida.  
Para avaliar individualmente cada situação foram criadas Comissões para a Dissuasão do Uso de Drogas a nível local, compostas por um advogado, um médico e um assistente social, que encaminham os prevaricadores para tratamento.
O presidente do Instituto da Droga e Toxicodependência, João Goulão (ver entrevista na página 38), refere que a politica que tem vindo a ser seguida neste domínio é um ?passo importante na intervenção dissuasora?, mas que ?não responde ao problema na sua globalidade?.
Apesar de tudo, recusa uma visão catastrofista da política de discriminalização, nomeadamente a hipótese de transformação de Portugal num ?paraíso das drogas?, já que, explica, ?o lapso de tempo decorrido permite-nos afirmar que tal não se verifica?.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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