Página  >  Edições  >  N.º 149  >  Dois em um

Dois em um

Trabalhador­? Estudante

Trabalhar e estudar em simultâneo começa a ser uma prática cada vez mais usual em todos os países da Europa. No ensino superior português cerca de 20 por cento dos alunos são trabalhadores-estudantes. Uma percentagem baixa, lê-se no relatório europeu Eurostudent 2005, que refere a Holanda como o país onde esta prática assume um máximo de 91 por cento de trabalhadores-estudantes. Entre estes dois valores encontram-se países como a Irlanda com 69 por cento de alunos nestas circunstâncias, a Áustria 67 por cento, a Alemanha 66 por cento, a Finlândia 65 por cento, o Reino Unido 58 por cento, a Espanha 49 por cento, a França 47 por cento, a Letónia 44 por cento e a Itália 30 por cento.
Mas perante este fenómeno estarão as universidades e as entidades patronais preparadas para responder às necessidades destes alunos? A PÀGINA da Educação inquiriu vários trabalhadores-estudantes de diferentes estabelecimentos de ensino públicos e privados do Porto e foi à procura de respostas.

Motivações

Os cursos variam, os empregos também e nem sempre os dois estão relacionados [Ver caixa: Relação entre emprego e área de formação]. As motivações não são, contudo, tão diferentes como se poderia esperar.
O desejo de progredir na carreira, obter uma melhor remuneração ou aprender mais leva quem já está empregado a procurar a universidade. O sentido de oportunidade de um emprego que surge enquanto o curso se vai fazendo leva o estudante a entrar antecipadamente no mercado de trabalho. São factores que pesam quando alguém decide acumular duas realidades que a maioria opta por separar: estudar e trabalhar.
Com um curso de estilismo e a trabalhar na área comercial de uma empresa têxtil foi a ?necessidade de adquirir mais conhecimentos? que levou Lúcia Ferreira, 40 anos, a ingressar no curso de Gestão da Faculdade de Economia do Porto (FEP). Frequenta a licenciatura há quatro anos e só não o fez mais cedo por compromissos familiares. ?Tive de esperar que os meus filhos tivessem uma idade compatível com o facto de me ocupar mais a estudar.?
O mesmo aconteceu com Estela Lemos, 27 anos. Foi a prática profissional que despertou em si a necessidade de conhecimentos que completassem a sua primeira licenciatura. Trabalhava há três como enfermeira num hospital do Porto quando percebeu que o conhecimento de questões ligadas aos grupos sociais era ?fundamental? para o seu desempenho. Depois inscreveu-se no curso de Sociologia, na Faculdade de Letras do Porto.
O sentimento de que a ?cultura não ocupa espaço? e o ?desejo de ter uma vida profissional mais gratificante?, foram os motivos que levaram António Pinto de 37 anos a voltar a estudar. Trabalha na área comercial no sector da construção e actualmente frequenta há três anos a licenciatura bietápica de Marketing no Instituto de Contabilidade e Administração do Porto.
Mas há quem faça o percurso inverso. E aproveite uma oportunidade de emprego no decorrer da licenciatura como forma de garantir um lugar no mercado de trabalho. Tal como fizeram Ana Dantas e Raquel Duarte de 23 anos. Há cerca de dois anos trocaram o estudo a ?tempo inteiro?, nos cursos de Geografia da Faculdade de Letras do Porto e de Gestão na FEP, por uma ?oportunidade de trabalho? no ramo da hotelaria e das relações públicas, respectivamente.

Interesses antagónicos

Entre duas realidades, por vezes, com interesses antagónicos, um trabalhador-estudante enfrenta dificuldades quer no local de trabalho quer no de estudo.
Apesar de no local onde trabalha actualmente nunca ter tido problemas pelo facto de estar a estudar, as coisas nem sempre foram fáceis. Num outro hospital da cidade do Porto, onde trabalhava, Estela Lemos viu ser-lhe recusado o reconhecimento do estatuto de trabalhador-estudante. ?A justificação que me deram foi que o serviço não me podia dispensar?, recorda a enfermeira.
Quando decidiu ?voltar a estudar?, Margarida Rego, 35 anos, enfrentou várias dificuldades no seu antigo emprego. Ao ponto de nunca pedir dias de dispensa para a estudar ou fazer os exames. ?Tive que procurar outro emprego que me permitisse estudar.? Actualmente trabalha numa empresa de mediação imobiliária e não tem problemas. Faltam-lhe três anos para ter a licenciatura em Economia na FEP, mas a sua previsão é de a acabar em cinco.
Gilberto Fonte, 24 anos, trabalha num hipermercado e frequenta o curso de geografia da Faculdade de Letras do Porto. A entidade patronal, refere, ?reage relativamente bem? aos pedidos de dispensa para a realização de exames. Em função da duração do horário de trabalho e mediante a necessidade comprovada do escolar, o trabalhor-estudante tem direito a uma dispensa semanal entre quatro a seis horas. Sem que essa dispensa seja objecto de qualquer diminuição do rendimento ou regalias. Ainda assim, confessa não se sentir ?muito confortável? quando tem de a pedir. ?Sei que para o trabalho que executo menos uma pessoa faz muita diferença?, explica.
Talvez ?por falta de conhecimento da entidade patronal ou sentido de oportunidade?, Cármen Silva, 20 anos, diz não ter muita tolerância de horários, nem em relação aos pedidos de dias de dispensa determinados por lei. Em relação aos exames, o trabalhador-estudante pode usufruir de uma dispensa de dois dias por cada prova escrita e oral, a cada disciplina, num total de quatro dias. Outra situação prevista é a possibilidade de obter uma licença sem vencimento num máximo de seis dias por ano, mas neste caso o pedido terá de ser feito com um mês de antecedência.
A trabalhar como operadora de caixa, Cármen Silva confessa também ter ?receio? em pedir dispensa para estudar ou fazer exames: ?Nos tempos que correm, os empregos não são para toda a vida e existe sempre o risco de ser despedida?, conclui.
António Pinto conhece bem este sentimento. O desemprego é um fantasma que o assombra. A empresa de construção onde trabalha como comercial reage ?muito mal? a qualquer solicitação de dispensa prevista no estatuto de trabalhador-estudante: ?Estão-me sempre a cobrar o tempo ou com horas extras ou com acumulação de tarefas?.
Situação diferente vive Lúcia Ferreira. Enquanto comercial, o tempo de trabalho é gerido por si. ?Quando posso fico um dia completo em casa a estudar nas vésperas dos exames?.O facto de a empresa têxtil onde trabalha ser francesa é para Lúcia um factor que pesa na boa tolerância que têm para com o seu estatuto de trabalhadora-estudante. ?Contudo ? frisa ? não proporciono nenhuma situação de incumprimento por esse motivo e muito frequentemente tenho vindo trabalhar durante os fins-de-semana.?
Não é de estranhar, por tudo isto, que a ?falta de tempo para estudar? seja a apontada como a maior condicionante do desempenho académico pela maioria dos inquiridos. Ainda que não seja a única.

Universidades com horários ?VIP?s?

Mesmo quando a empresa não coloca obstáculos à frequência académica, da parte do trabalhador há um esforço contínuo para minorar o impacto da sua condição de estudante. Uma dualidade que encontra outras barreiras do lado das universidades.
À cabeça da lista vem a inexistência de cursos em regime nocturno. E a impossibilidade de assistir às aulas. Que o diga Cristina Silva, 24 anos, a trabalhar na área da gestão. Depois de ter tirado a licenciatura em Economia na FEP resolveu voltar à instituição para cursar Gestão. A realidade que encontrou era bem diferente da que conhecia. Até 2003 a faculdade tinha aulas em horário nocturno, entretanto deixou de ter. ?Não frequento qualquer aula?, frisa aluna. ?E pago três vezes mais propinas do que pagava na minha anterior licenciatura!? Pagar mais por menos serviços é para Cristina Silva algo ?inadmissível?.
A falta de estruturas de apoio a funcionar com horários adaptados a quem só pode ir à faculdade depois de sair do emprego é outra das dificuldades apontadas. O funcionamento de secretarias e bibliotecas no que apelida de ?horários vip?s?, das 9h às 17h é, para Estela Lemos, um inconveniente que poderia ser minorado.
Com a secretaria aberta até às 20h, apenas uma vez por semana, e os serviços de informática e de reprografia a fecharem todos os dias às 20h, Cristina Silva congratula-se apenas de poder usar a biblioteca da sua faculdade, pois fecha diariamente às 21h30.
O acesso ao material de estudo, incluindo fotocópias, poderia ser facilitado com o recurso à sua publicação nos sítios da Internet das respectivas faculdades. Mas este ?é um método ainda não aplicado na maior parte das disciplinas?, lamenta Susana Portas, 22 anos, estudante de Psicologia, na Universidade Lusíada. Por outro lado, critica Cármen Silva, ?a informação fornecida pela Internet é insuficiente, o que obriga o trabalhador a deslocar-se da zona da sua residência ou emprego para a faculdade em busca de informações, datas, notas, etc.?
?O esclarecimento de dúvidas via e-mail?, seria, para Raquel Duarte, uma grande ajuda para diminuir as dificuldades que os trabalhadores estudantes têm quando necessitam de algum ?apoio? por parte dos professores. Até porque, os horários de atendimento a alunos nem sempre são compatíveis com os de quem trabalha.
Tantas incompatibilidades levam Cristina Silva a uma só conclusão: ?A principal dificuldade é não sentir que faço parte da instituição que estou a frequentar?. Depois há um outro sentimento partilhado por todos os trabalhadores-estudantes. ?O cansaço ? remata Ana Dantas ? é o nosso pior inimigo?.

Experiência profissional antes do Ensino Superior

Os estudantes com alguma experiência laboral antes do ingresso no ensino superior são uma minoria, no panorama total mas há algumas excepções. O caso da Alemanha, onde 64 por cento dos estudantes passou pelo mercado de trabalho antes do curso superior é paradigmático. Uma das razões para esta elevada percentagem está uma tendência dos estudantes alemães em adoptar uma estratégia dupla de estudar e trabalhar em simultâneo para aumentar as hipóteses de emprego num mercado de trabalho em constante mudança. Além disso, a reforçar esta prática está o facto de todas as experiências laborais ? independentemente da sua duração ? ocorridas entre o fim da escolaridade secundária e o ingresso no ensino superior serem contabilizadas a quando a matrícula. Entre os países estudados encontramos uma percentagem consideravelmente mais baixa: Letónia (45%), Finlândia (42%), França (35%) e Irlanda (33%), Itália (22%), Portugal (19%) Áustria (16%). Os dados são do Eurostudent 2005, um relatório da Comissão Europeia dá conta das condições sociais e económicas dos estudantes europeus. No que toca aos restantes países, Espanha, Holanda e Reino Unido, o estudo refere a inexistência de dados nesta matéria.
Importa ainda referir que o estudante que antes de ingressar no ensino superior possui já uma experiência profissional tende a manter-se no mercado de trabalho, segundo o mesmo relatório.

Relação entre emprego e área de formação

A relação entre o emprego do estudante e a área de formação é fraca na maioria dos países cobertos pelo relatório. O caso francês é o mais sintomático: 95 por cento dos trabalhadores-estudantes afirma que o seu emprego ?nada tem a ver com o curso? contra 5 por cento que garante haver uma completa relação entre o trabalho desenvolvido e a área de formação frequentada. Na Holanda para igual pergunta as respostas dividem-se em 65 por cento dos estudantes a dizer que o emprego não está relacionado com a formação e 35 por cento a responder que está completamente. Na Irlanda os valores são de 53 por cento e 17 por cento, Espanha 55 por cento e 17 por cento, Portugal 27 por cento e 23 por cento.A percentagem de estudantes com empregos ?completamente relacionados com o curso? é apenas superior na Finlândia 33 por cento contra 28 por cento e na Letónia 43 por cento e 13 por cento.

Estudante a ?tempo parcial? e a ?tempo inteiro?

O conceito de estudos formais a tempo parcial só existe no Reino Unido, Irlanda e Holanda. No entanto, mesmo nestes países estes estudantes representam uma minoria, respectivamente 36 por cento, 21 por cento e 14 por cento. Apesar de a Itália também reconhecer este conceito formalmente o número de frequentadores não chega a ser significativo.
Oficialmente não há regime de estudos a tempo parcial em Espanha, Áustria, Alemanha, Finlândia, mas existem programas específicos para alunos trabalhadores ou com compromissos familiares nos três primeiros que faz com que em Espanha se contabilizem informalmente cerca de 10 por cento de alunos nestas condições, na Áustria 3 por cento, na Letónia 9 por cento e zero por cento na Alemanha, França, Itália e Portugal.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo