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Uma iniciativa comunitária ? Cooperativa Educacional "Olga Cossettini"

Um grupo de pais e professores organizou na Província de Córdoba, na Argentina, uma proposta solidária inovadora: «o banco de horas comunitário». Através dele dá-se educação e formação e permite-se reunir as condições para o desenvolvimento de uma cooperativa de ensino.
Desde o início que pais, educadores e professores se associaram para prestar um serviço educativo inovador à comunidade. Cerca de 80 por cento das famílias associadas estão à margem do sistema económico formal. Elas têm vindo a formar uma rede de organizações solidárias sustentadas por um fundo comum baseado no compromisso de trabalho voluntário. Gerem recursos intersectoriais e, através da troca de tempo, criaram uma verdadeira moeda social.
A Página publica neste número, um depoimento recolhido no local por uma das suas colaboradoras, Regina Leite Garcia, professora na Universidade Federal Fluminense e coordenadora do GRUPALFA - grupo de investigação em alfabetização das classes populares.

Somos cerca de quarenta famílias com crianças em idade escolar. Vivemos numa zona semi- rural de Capilla del Monte, província de Córdoba, Argentina.
Quando fizemos uma investigação acerca da oferta educativa da zona, percebemos que não existia nenhuma alternativa, e que as escolas se tinham convertido em recipientes da crise social, reflectindo-se na sua própria crise. Não contam com um corpo docente estável, nem existe formação contínua por falta de oferta e de recursos.
Existe uma certa competição entre as escolas, para conservarem o número de alunos matriculados, não apelando à qualidade pedagógica, mas sim desvalorizando-se umas às outras. Estão superlotadas, o que aumenta os índices de violência entre os alunos e docentes dentro e fora das salas de aula, resultado de uma sociedade competitiva e massificadora, e onde num estrito espaço de ensino aprendizagem se torna impossível vincular a inter-relação e a contenção.
Parece que já não existe diálogo entre docentes e pais, transformando-se este num monólogo que ecoa nos corredores da comunidade educativa, e quando se torna pior transforma-se em violência.
É como se nos tivéssemos deparado com os restos de um naufrágio. Aqui e ali existem partes valiosíssimas, no Ministério, nas escolas, nas famílias, mas essas partes não formam nem correspondem a um todo onde interajam activamente.
Dá a sensação que Ministério se impõe sem moderação. Talvez se trate apenas de uma transição, até que as escolas percebam que o novo modelo da Lei Federal lhes permite uma maior autonomia. Talvez a autonomia não seja possível dentro dos normativos que regem as nomeações dos titulares de cada escola (que não dependem dos directores, senão das listas de graduação e da valorização).
Mas esta transição pode durar muito mais do que os nove anos do ensino básico obrigatório que os nossos filhos têm que cumprir. A isto oferecemos resistência pois não queremos que eles pensem que aprender é uma obrigação, uma negociação imposta por factores que não podemos mudar, que a vida começa no recreio e nas férias ou que são enviados pelos seus pais para esse lugar pressionados pelas circunstâncias, como um perdão ou um castigo.


História institucional

Mas não estávamos sós nesta encruzilhada, encontrámos uma excelente educadora, que tinha dirigido durante oito anos uma experiência inovadora numa escola pública, nos níveis de iniciação, primário, secundário e terciário. Recentemente ela tinha-se mudado para a nossa zona, por se ter aposentado.
Dispôs?se de imediato a dar-nos conta da sua proposta, a pôr-nos em contacto com uma rede de educadores, e a acompanhar-nos nos primeiros passos. Indicou-nos as irmãs Cossettini e a Luís Iglesias como referências pedagógicas e bibliografia obrigatória.
E foi assim que em Agosto de 1997, reunimos cerca de quarenta pessoas para partilhar um vídeo sobre ? A Escola da Senhorita Olga?, e para dar a conhecer a professora Velia Bianco (Veyi) à comunidade educativa de Capilla del Monte. O vídeo serviu de arranque para o diálogo sobre a escola que queremos para os nossos filhos, e combinámos continuar a reunirmo-nos quinzenalmente para vislumbrar a melhor maneira de alcançarmos os nossos objectivos.

Os docentes interessados em participar, entregaram os seus currículos e formaram um grupo de estudo tendo como base o material que Veyi recomendava.
Os pais comprometeram-se a procurar um local apropriado para iniciar as aulas em Março de 1998. Por sua vez nós iniciamos o contacto com as escolas que Veyi nos tinha apontado como escolas de referência. Começámos por investigar as leis provinciais para abrir uma escola e o tipo de organização legal de acordo com o que nos propúnhamos.
Em primeiro lugar, tivemos que optar entre Associação Civil sem fins lucrativos ou Cooperativa. Ao ser um empreendimento colectivo devíamos encontrar uma forma legal que legitimasse o grupo como sendo o dono, para que o esforço partilhado se capitalizasse equitativamente.
Influenciados pela história do cooperativismo e por diferentes assessores, incluindo Veyi, identificámo-nos com a figura da Cooperativa. Uma Associação Civil é uma organização de apoio, enquanto que uma Cooperativa de Serviços é uma organização de Base. A diferença está em que uma se ocupa em ajudar outros, enquanto que a outra se ocupa em oferecer serviços aos seus próprios associados (como sucede com as mutuais). A nossa cooperativa presta serviços aos seus sócios e à comunidade.
A Inspectora Geral da província de Córdoba, Liliana Amuchástegui é quem pode dar fé das nossas actividades, pois visitou-nos durante o decurso destes três anos fundadores, e conhece a proposta e o trabalho realizado na sala de aula.
Contamos com o apoio do município de Capilla del Monte e trabalhamos em colaboração. Monsenhor Luís Donato foi nosso protector. Também contámos, em várias ocasiões, com a visita do Licenciado António Cicioni, Director do projecto de Escolas Experimentais da Província de San Luís, e presidente da Fundação CIPPEC.

 O compromisso dos pais

Tendo começado com quatro grupos e organizado a escola por áreas, os custos mínimos operativos aproximariam a quota aos 80 dólares e a proposta educativa em Capilla e dos outros estabelecimentos não superava os 35 dólares (primária). Para além desta comparação, na nossa comunidade educativa eram poucos os que podiam assumir essa quota.
A proposta que surgiu do grupo para resolver essa diferença foi engendrar negócios. Ou seja, que não podendo sós, íamos tentar juntos. Não é a mesma coisa a sinergia de uma só família e a de um grupo de famílias. A principal condição está no facto de que o grupo assuma totalmente esta decisão, porque não é suficiente só o esforço de alguns, e gera muitos conflitos devido ao inevitável confronto de esforços e atitudes. A Cooperativa, actualmente, não recebe apoio económico do governo provincial nem municipal.

Em simultâneo com a configuração do corpo docente assim ficou a sua organização geral:

O Conselho de Administração da Cooperativa
A Comissão de Gestão de Recursos
O Banco de Horas
A Assembleia mensal de pais e docentes
Oficinas de educação não formal. Cursos de habilitação docente com créditos do DNeP da Província de Córdoba.
O Conselho de Administração da Cooperativa reúne-se quinzenalmente e é formado por pais e docentes. Tem a seu cargo a responsabilidade de articular as relações, legalizar as actividades, administrar os recursos, executar as decisões tomadas na Assembleia de sócios.
O Conselho promove também as relações interinstitucionais gerando e fazendo parte de uma rede dentro do próprio ambiente educativo e cooperativo a nível nacional e internacional. Avaliza os projectos propensos ao desenvolvimento de fundos que comprometem a cooperativa com entidades governamentais, sejam elas provinciais, nacionais ou em associação com escolas públicas da zona ou empresas particulares.
A Comissão Gestora de Recursos é formada integralmente por pais. Reúne-se uma vez por semana. Tem por finalidade desenvolver projectos viáveis para a criação de recursos que sustentem as actividades da Cooperativa. Os projectos são apresentados por escrito e distinguem-se entre os de curto, médio e largo prazo, assim como aqueles que contêm actividades pedagógicas para desenvolver com os alunos. (lombricompuesto(1), oficina de carpintaria, horta, cestaria, pastelaria, etc.).
O Banco de Horas é um sistema de compensação de esforços e uma forma de capitalizar e potenciar os recursos humanos da comunidade educativa. A Cooperativa propõe actividades que são necessárias para sustentar a escola, como seja  a sua manutenção, construção, gerador de eventos, confecção de material didáctico, etc. Cada família tem uma caderneta de trabalho comunitário, na qual registam as horas dedicadas a essas actividades, num valor equivalente a 3 dólares a hora.
A Cooperativa por sua vez através de uma campanha de desenvolvimento de fundos obtém donativos de objectos e matéria-prima que forma parte de uma provedoria. Actualmente contamos com madeiras provenientes de embalagens. As famílias podem adquirir as madeiras, ou o que tenhamos na provedoria, com as horas trabalhadas. Essas horas também são valores negociáveis dentro da comunidade educativa, ou seja, os pais e os docentes podem trocar particularmente, produtos e serviços, usando como pagamento as horas registadas nas suas cadernetas. Uma vez por mês realizamos uma feira onde os participantes fazem um intercâmbio de produtos diferentes.

Que significa ser sócio fundador ?

Significa ser dono de um sonho. Que está tudo por fazer. Que é o momento de investir dinheiro, esforços, ideias, contactos, força, tempo. Que a nossa opinião tem valor. Que não somos um cliente. Que o futuro é hoje. Que não sou o único dono. Que não há descanso. Que o mais importante passa por nós. Que não é o mesmo, que não é fácil nem difícil, basta estarmos de acordo e cumprirmos. Significa que sentimos que se algo está a faltar somos chamados a alcança-lo.
A parte mais atractiva do projecto foi não contarmos com nenhum capital inicial. Absolutamente nenhum. O nosso capital foi o desejo imenso, a urgência de projectar até onde fosse possível o compromisso e a capacidade de trabalharmos juntos, nesta acção difícil que arriscadamente iniciámos. O nosso sonho deu-nos asas e lançámo-nos sem rede. Recebemos como contávamos o nosso primeiro donativo (100 dólares) que nos ajudou a  começar. Reformámos uma oficina e a  garagem da casa de uma das docentes e em Março de 1998 dê-mos inicio ao projecto.

Enquadramento Pedagógico

De que proposta inovadora se está a falar se temos como referência a Olga Cossettini? Inovar, sem bases e sem orientação, é improvisar. Das irmãs Cossettini e de Luís Iglesias recebemos os princípios que nos nutrem e inspiram, sem nos limitarmos, sem copiar o formato.
?Ensinar a fazer bem um mapa, um desenho, é secundário. O fundamental é desenvolver a consciência social da criança, destruir preconceitos, combater o egoísmo. A indiferença cívica é intolerável. È imperdoável viver de costas voltadas para os problemas, temos que estudá-los, senti-los, compreendê-los e resolvê-los. Enquanto não existir uma corrente de solidariedade é inútil ensaiar métodos, só nos faz perder tempo. Ninguém é feliz se o vizinho não o é.
Não se pode ser feliz com o coração cheio de egoísmo, por isso devemos incutir hábitos de participação nos alunos e nas crianças. Mas para o podermos fazer necessitamos de ter valor para isso, porque é necessário ter uma vida activa para o fazer.
O aluno deve aprender através de uma vida activa de cooperação, de ajuda mútua, de companheirismo, de responsabilidade. È por essa via que ele aprende a ser um cidadão capaz de uma democracia.? ( Olga Cossettini).
Tendo em conta os estádios psicológicos que a criança atravessa, e para fazer a correspondência com os níveis do conhecimento, tomámos como modelo teórico os estudos da Epistemologia genética de Jean Piaget.
Outro pilar pedagógico é a experiência levada a cabo no nosso país por Olga e Letícia Cossettini, e por Luís F. Iglesias. Deles pusemos em prática a ? vivificação dos conteúdos? no processo de ensino/aprendizagem como apoio principal da prática docente, que levam a uma ?apropriação? do conhecimento através da investigação e aplicação, ou seja, a integração dos conteúdos, tendo em conta as sugestões e as propostas dos alunos, quando estas apontam para a resolução de problemas concretos, abordando-os por caminhos da heurística.
Em geral, a metodologia do ensino/aprendizagem que a escola se propõe aplicar é a que deriva dos princípios da Escola Activa; do Construtivismo; e concretamente da experiência pedagógica levada a cabo na ?Escola Serena? de Olga Cossettini.
 ? A escola conta em geral com os meios que permitem a realização dos valores: chamamos-lhe o contexto natural, bairro, lugar, sítio, mundo ou meio social onde se realizam as normas de conduta ou valores éticos. A escola tem a obrigação de contar, fundamentalmente, com estes dois meios para poder cumprir com a sua finalidade educadora. Em cada um deles, contexto natural e meio social, a sua acção aumentará na criança o máximo da sua auto-expressão criativa, em contacto com mundos que lhe permitirão por sua vez adquirir o conhecimento e a experiência para a sua vida futura? (Escola Viva).

Características gerais da escola

Educação para a arte: É o eixo condutor da nossa proposta educativa, já que desencadeia o processo educativo, veículo para a aquisição do conhecimento, e a culminação de um processo onde a expressividade e a criatividade da criança se manifestam.
Escola pequena: Permite dar resposta ao ritmo de trabalho tanto do grupo como individualmente. Criar vínculos sólidos entre as crianças, e entre eles e os professores. Fomentar a solidariedade e a cooperação entre todos os elementos integrantes da escola.
Conquista da autodisciplina: Num clima harmonioso e consensual. A Escola Serena.
Escola sem anos de escolaridade: No início os grupos formam-se de acordo com as idades. Mas estes grupos não são fechados nem estanques, já que, segundo o nível de conhecimento, os alunos podem passar de um nível a outro.
O uso dos espaços: Todos os espaços da escola são utilizados por todos os grupos de acordo com a actividade que se desenvolve. È frequente trabalhar-se ao ar livre, no jardim que rodeia a escola.
Na escola só existe pessoal docente: Todas as tarefas com os alunos são realizadas pelos docentes, sejam as administrativas ou as de limpeza e manutenção. Em alguns casos contam com a colaboração dos pais.
O material da sala de aula: Todo o material utilizado pelos alunos é proporcionado pela escola. Os livros de leitura são feitos pelos docentes e pelos pais. Não se utilizam manuais, senão apenas no que diz respeito às obras que contêm os guiões.
Professora da disciplina e não de ano: Tem carácter rotativo tendo em conta a sua disciplina.
Excursões e visitas: Fazem parte do trabalho quotidiano saídas para o bairro com objectivos pré-definidos, que terminam com a elaboração de um trabalho na sala de aula. Conversa-se com os vizinhos que nos recebem em suas casas, permitindo às crianças trocar perguntas e ideias, num diálogo fresco, libertando-as do ensino feito só através dos livros e fechados entre as quatro paredes da sala.
Recebemos visitas: Convidamos pessoas que vêm à escola partilhar as suas experiências e conhecimentos através de conversas, actividades e oficinas.
Acampamentos: Estas saídas mais prolongadas contribuem para um conhecimento mais profundo do meio natural, consciencializando-os para o seu cuidado e conservação. Também aprofunda o aprender a estar juntos.
Reuniões: Um espaço em que todos partilham a merenda, canções, poesias, anedotas, bailes. Servem também como alternativa de organização no espaço e no tempo.
Assembleia de alunos: No último dia de cada semana realiza-se a Assembleia de estudantes. Existem três envelopes e em cada um diz: ?eu proponho?, ou ?eu mudaria?, ou ?eu felicito?, nos quais os alunos escrevem o que mais os inquietou durante a semana. Na assembleia os assuntos são debatidos e resolvidos por consenso e votação.
Cooperativismo: São os princípios do corporativismo que tomamos como valores humanos para a convivência participativa e democrática e onde o saber é um bem para partilhar com o outro.
O nosso objectivo é construir uma escola sem complicações nem artifícios, libertando a espontaneidade e a energia da criança.

Depoimento: Um colectivo de cooperantes da Cooperativa Olga Cossettini.
Recolha para a Página: Regina Leite Garcia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro
Tradução: Jeannette Ferreira

Nota: 1) Estrume orgânico produzido através do desenvolvimento de lombrigas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Cooperativa Olga Cossettini

Cooperativa Olga Cossettini

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