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Conhecer o passado

?a minha visão do ?progresso da ciência? não é positivista, isto é, tal noção não equivale à simples aquisição de mais informação, ou conhecimento, mas muitas vezes, e predominantemente, ao seu descarte, ao seu abandono.

Ao contrário do que a tradição positivista pretendia e pretende, o processo do conhecimento científico dá-se por um encadeado de acumulações e de descartes, isto é, por uma «constante escolha» entre o que é pertinente, pregnante, e o que é mais útil deitar fora, ou abandonar como caminho ou problema sem interesse, enveredando por uma nova senda.
Admito que a ciência, qualquer ciência, tem de ter algo de cumulativo, isto é, de algum modo ?progride? de facto, ajudando-nos na nossa capacidade de entender, de interagir de forma mais eficaz com o mundo. Mas a minha visão do ?progresso da ciência? não é positivista, isto é, tal noção não equivale à simples aquisição de mais informação, ou conhecimento, mas muitas vezes, e predominantemente, ao seu descarte, ao seu abandono.
Esse processo não é fácil, porque implica afrontar categorias do senso-comum tidas como evidentes e portanto indiscutíveis, sobretudo quando elas impregnam o próprio campo científico; são como que axiomas ou postulados de uma ?filosofia espontânea? dos cientistas.
A «estratégia» (reflexividade crítica) da investigação é pois absolutamente fundamental ? não só a escolha inicial do caminho, do enquadramento problemático, como a sua monitorização permanente, para se saber (para se avaliar) se se está a avançar, ou, pelo contrário, a chegar a locais desinteressantes ou mesmo a becos sem saída.
Nesse sentido, e como aliás seria de esperar, a estratégia da aquisição de conhecimentos não difere em nada de fundamental de «outras formas de gestão de valor» que aplicamos à nossa própria vida corrente (gestão do tempo, enfim, gestão dos recursos ao nosso dispor em geral). Daí a centralidade de uma atitude ?epistemológica?, crítica, não como um campo autónomo, mas como algo incorporado e inerente à própria prática da pesquisa.
Em arqueologia, a tradição positivista (a ideia de que os ?dados? falam por si, isto é, de que a gestão do processo de pesquisa se reduziria à observação atenta e ao registo dos seus resultados) ou, no extremo oposto, a importação de teorias muito abrangentes da sociedade e não só (processualismo, estruturalismo, etc., etc.) tem dado resultados nalguns casos úteis, e em geral certamente incontornáveis, mas ainda muito precários (para não dizer, mesmo, em certos aspectos, enganadores).
São sobretudo, hoje,  ?pontos de referência? sem os quais não poderíamos pensar, trabalhar, mas que têm de ser desconstruídos no decurso do próprio processo interpretativo, que é sempre um percurso tensional, em muitos sentidos. Isto é, o sistema de produção de conhecimento constitui (ou devia constituir) um processo negocial, ?político? (no sentido abrangente do termo) que, em sociedades democráticas, inclui reajustamentos constantes, a aceitação de propostas novas, ou seja, a possibilidade de enveredar por articulações inesperadas, casamentos imprevisíveis, inter e transdisciplinaridades jamais praticadas.
Mas, na verdade, o ambiente intelectual em arqueologia é ainda entre nós algo rarefeito, faltando em larga medida massa crítica e debate qualificado. No limite, assiste-se ainda hoje, com frequência, quer a dogmatismos (ou pensas de acordo com estas ideias ou és excluído ? estratégia do terror), ou a relativismos (pensa como quiseres, qualquer novidade vale tanto como a anterior ? estratégia da irresponsabilidade hedonista). O efeito é o da ausência de um verdadeiro «debate livre» sobre as diferentes maneiras ? que as há, por certo, sendo o pluralismo um valor democrático inalienável ? de fazer arqueologia, de construir narrativas, interpretações, visões, e, se quisermos mesmo, simulações experimentais (que os nossos concidadãos nos pedem) sobre o nosso passado. É para isso que, em última análise, existimos socialmente, como arqueólogos.
E a liberdade a que acima me referi é, aqui como sempre, um domínio de negociação, em que à partida ninguém se sente constrangido por regras externas àquelas que delimitam o próprio campo de jogo ? ela diferencia-se abissalmente do dogmatismo, do autoritarismo (mesmo que de aparência ?tolerante? ou paternalista) e dos seus contrários, o laxismo e a demagogia.
Temos de ultrapassar esses escolhos à criação livre ? sempre necessariamente comunitária, pois ninguém produz nada em isolamento - juntar ?teoria? e ?prática?, reflectir sobre (e a partir de) a sua íntima conjugação, explicitar a cada momento as nossas escolhas, e esclarecer que o passado nem é incognoscível (seria uma contradição nos termos, uma vez que ele é uma criação nossa, presente) nem é uma banalidade de ?puzzle? que se vá construindo por adição paciente, como quem faz tricot.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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