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Rosa

Era uma especialista em todas as coisas e em nada. Estudara Filosofia, matéria antiga e fadada para tudo e nada. Não sabia nada e ao mesmo tempo parecia que sabia muito. Era a velha história de Sócrates: sabia que não sabia. Com o tempo, a idade, as vivências, foi-se apercebendo do valor tão relativérrimo de todas as coisas. Cheirava o ozono das chuvas como as crianças, catalogava frutos pelos aromas, cores, sabores; não entendia nada de Botânica. Lembrava-se de ter lido que uma vez, Enrico Fermi  respondeu a um aluno que o interrogava sobre os nomes das partículas sub atómicas que se pretendesse decorar nomes tinha sido Botânico. Que esperar da vida? Nada? Isso é pouco demais, explicava ela às suas sonolentas audiências. Esperar muito também não. Tudo é, no fundo, feito à nossa minúscula medida. Renovamos as nossas opiniões. Passamos num souk e vemos moscas em cima da carne. É assim. Também as antigas rendas portuguesas são assim, coisas antigas, já não se fazem: são como as construções que encontramos em certas cidades portuguesas (em certas, na maioria dos casos já não). O centro das cidades foi um lugar aprazível, já não é, mas foi, ainda há poucos anos. De Inverno tinha os seus encantos, no Verão era povoado de risos, cor, namorados, festas. Aqui um grupo de amigos, além alguém que bebia devagar numa tasca. Tudo muda, até as mudanças, dizia a professora. Coisas velhas não enchem barriga. Os sonolentos acabavam por se adaptar a esta professora. Alguns mais, outros menos. Muitos deixavam a crença em Deus. A Filosofia tem destas coisas. As coisas valem para nós, dizia ela. Nós valemos para tão poucas pessoas que isso, esse valor, é um hino aos que nos conhecem, acompanham e admiram durante um piscar de olhos, um esvoaçar de gaivota, repentinamente entrada num salão de baile, pela janela. ?Mas isso, que raio, professora! Isso, a gaivota no salão, aqui na Régua?? «Isso é muito menos improvável que estarmos aqui e no entanto estamos. Também nunca ouvi falar em tal coisa, uma gaivota entrar num salão com baile, aqui, tão longe da costa, mas olhem, mesmo assim é mais fácil que estarmos nós, digo nós, estarmos aqui, porém estamos. O sentido de tudo é como esse esvoaçar. Parece improvável encontrá-lo. Passem bem: se puder vou emigrar.»


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real
Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real

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