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As escolas não podem ficar à espera dos decretos para mudar as suas práticas

Foi docente do 1º Ciclo do Ensino Básico até 1995, concluiu o Mestrado em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto em 1998 e trabalha actualmente no seu Projecto de Doutoramento intitulado "O Campo da Formação: Políticas, Contextos, Práticas e Efeitos - Contributos para uma Sociologia da Formação".
De uma forma breve, é este o percurso académico do entrevistado do número de Janeiro de a PÁGINA, Manuel António Ferreira da Silva, actualmente Professor Assistente do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional do Instituto de Psicologia e Educação da Universidade do Minho, onde orienta diversos estágios curriculares no âmbito da Licenciatura em educação, ramo Recursos Humanos e Gestão da Formação.
A sua experiência profissional no campo da formação tem-no levado a participar como formador em diversos cursos, círculos de estudo e projectos no âmbito da formação contínua de professores e da educação de adultos, sendo igualmente Consultor de Formação e avaliador externo dos Planos de Formação dos Centros de Formação de Associação de Escolas de Lousada, Paços de Ferreira e Viana do Castelo.
Participa, desde 1999, no Comité Científico dos Congressos da Galiza e Norte de Portugal de Formação para o Trabalho, o último dos quais teve lugar no Porto em Novembro do ano passado. Autor do livro "Os Directores dos Centros de Formação de Associação de Escolas: A pessoa e a Organização", tem mais de uma dezena de artigos publicados em jornais e revistas científicas, sendo igualmente colaborador regular do jornal A Página da Educação.
Nesta entrevista, Manuel António Ferreira da Silva desmonta o discurso da "Nova Direita" em torno do falhanço da escola pública e afirma a necessidade de as escolas se afirmarem politicamente e de serem elas a despoletar um amplo debate sobre o seu papel e o seu futuro na sociedade portuguesa.

O actual discurso em torno do falhanço da escola pública surge associado ao aparecimento de uma agenda política de carácter neoliberal e neoconservador, aquilo que designa pela ?Nova Direita?. Porquê esta ?

Em primeiro lugar porque interessa dizer que foi a escola pública que falhou. Mas não penso que se possa distinguir entre a escola pública como a má da fita e a escola privada como a boa - eficaz, com bons professores e melhor rendimento; não, ela tem é os alunos que melhor se adaptam ao modo de funcionamento da escola. O denominador comum que leva a que a escola tenha mais ou menos êxito é os alunos e respectivas famílias. Se olharmos atentamente para as ?melhores? escolas públicas do ensino secundário, as que aparecem mais cotadas no ranking de exames do 12º ano, vemos que nelas se produz um profundo processo de selecção social, à imagem do que fazem as escolas privadas. O mesmo se pode afirmar em relação a todas as escolas secundárias.
Mas quando se discute o problema do falhanço da escola pública, é importante dizer que ela entra em crise já nos anos 60, por alegadamente ser reprodutora das desigualdades e por não conseguir cumprir uma das suas promessas fundamentais: a de promover a igualdade e a emancipação social.
Porém, é preciso não esquecer que a escola não existe no vazio, pelo contrário, ela insere-se num contexto social desigual que lhe é prévio, e a escola concebida como um bem é naturalmente percepcionada pelos diferentes actores de acordo com os poderes que já detêm na sociedade, sendo ela própria, de certo modo, resultado das próprias divisões que existem externamente. O objectivo que lhe colocaram de, só por si, ser capaz de transformar uma sociedade desigual numa sociedade igualitária é que estaria, provavelmente, errado.
Nessa sequência, o discurso neoliberal entra bem no ouvido da opinião pública porque se fundamenta no senso comum, nas representações que toda a gente reproduz facilmente. Qualquer um é capaz de dizer que a escola não funciona quando nos relacionamos directamente com ela ou quando temos lá os nossos filhos.

Diz, inclusivamente, que os próprios agentes no interior da escola são capazes de reproduzir esse discurso?

Quando as pessoas são chamadas a vestir a pele de pais ou a falar da escola como um contexto que lhes é exterior, são os primeiros a reproduzir esse discurso.
Evidentemente que a partir do momento em que as forças neoliberais, na tentativa de transformar em mercadoria tudo o que mexe na sociedade (que é, no fundo, aquilo que motiva os agentes económicos), e o reconhecimento de que a educação é também um bem que pode ser transformado em mercadoria, vista como uma vantagem competitiva numa sociedade também ela competitiva, começa-se a olhar para a educação com outros olhos. E este olhar também é produzido a partir do interior da escola, cujos actores são parte constitutiva das novas classes médias, que concebem a educação como uma importante vantagem competitiva.

O que caracteriza a ?Nova Direita? face à escola?

Antes de mais a vontade em transformar a educação numa mercadoria, isto é, transferi-la para o campo do mercado com base numa política de ?escolha pública?. A partir desta aparente liberdade de escolha, os pais escolheriam as melhores escolas e estaria naturalmente resolvido o processo de selecção. Por outro lado, é evidente o interesse económico nesta área, encarada como mais um sector onde as forças mais poderosas da sociedade podem ir buscar lucro.
Depois, a educação, que tradicionalmente é um serviço prestado pelo Estado, através das escolas e dos professores, sempre esteve ao serviço de alguma ideologia ? seja na Monarquia, na I República, no Estado Novo ou no pós-25 de Abril ? e nunca tiveram voz própria. Nesse sentido, como podemos afirmar que ela está em crise? Apesar disso, não vemos nenhum grito, nenhum sinal, nenhum aviso emergir das escolas enquanto organizações; quanto muito vemos os sindicatos falarem em seu nome?

De que forma podem ganhar essa voz?

Para já, não podem ficar à espera dos decretos ? como muitas vezes os sindicatos reivindicam ? para mudarem as práticas, isso já se provou que não resulta. Na minha opinião, as escolas e os professores têm de começar a reflectir sobre o que se passa no seu interior e a tomar posições públicas, a ter uma voz política sobre a situação que vivem.
O Estado tem desde sempre tentado evitar que as escolas afirmem publicamente o que pensam sobre a educação, facto que ficou evidente de uma forma explícita com a famosa ?Lei da Rolha?, no tempo de Cavaco Silva, mas também de uma forma implícita ao longo dos tempos. Porém, isto não justifica que as escolas tenham vindo a ser geridas ao sabor dos decretos, dos normativos e, sobretudo, das circulares, que é uma coisa absurda.
Aliás, devemo-nos interrogar se as escolas querem realmente ser autónomas, porque se houvesse um sentimento bastante forte nesse sentido estou convencido que elas tomariam esse rumo. Mas dá-me ideia de que existe uma espécie de inércia que as impede de se assumirem como organizações de pleno direito.

A esse propósito, refere num dos artigos que escreveu para a PÁGINA que ?devem ser as escolas a dar o primeiro passo na direcção da transformação dessa situação sob pena de também elas virem a sofrer o peso dos acontecimentos que se adivinham penosos para todos e que não poderão controlar senão forem elas a tomar a iniciativa??

Claro, porque o primeiro alvo da política neoliberal é a autonomia das escolas e a própria autonomia individual (as pessoas falam normalmente de autonomia construindo este conceito em função da sua margem de liberdade pessoal, mas ela não pode ser vista nestes termos e é um tema que tem estado arredado do debate), mas mesmo esta será a primeira a ser sacrificada quando o sistema começar a funcionar em função de exames e de resultados públicos, já que é a publicitação dos resultados que irá determinar o modo de funcionamento das organizações.
Actualmente, no Reino Unido, os professores são pagos de acordo com o rendimento dos seus alunos e esse desempenho é medido através de provas estandardizadas. E a publicitação dos resultados irá fazer com que as pessoas programem o seu trabalho apenas em função deles, e nessa altura a autonomia estará irremediavelmente perdida. No entanto, não se nota por parte das escolas a assumpção da consciência destes perigos ? talvez por a maioria pensar que, apesar de tudo, o exame é a forma mais justa de avaliar...

Competências: um termo técnico ou político?

Nesse contexto, o conceito de ?competência?, que desde o princípio dos anos noventa entrou definitivamente no vocabulário das escolas e do poder político, adquire um significado eminentemente político e não técnico, ao contrário do que se possa pensar?

Sim, embora ele tenha sido apropriado pelas escolas, e inclusivamente por alguns colegas no seio das universidades, com uma dimensão extremamente técnica - as competências transversais, as competências específicas, as competências cognitivas, todo um mundo de competências que foram introduzidas no currículo nacional quase sem se dar por isso.. O termo competência foi quase equiparado, do ponto de vista da operacionalidade técnica do trabalho dos professores, à problemática dos objectivos, que entretanto quase desapareceu.
O meu colega Licínio Lima refere que um dos significados etimológicos da palavra competência é precisamente competição e daí chamar-lhe uma expressão pleonástica. E a competição, como sabemos, implica sempre vencidos e vencedores. Ao transportarmos isso para o contexto educativo, ao mesmo tempo que se critica o falhanço da escola ? e da escola pública em particular, que é isso que interessa às forças de mercado para dar livre curso ao desenvolvimento da escola privada ?, está-se a alimentar aquilo que gerou a insatisfação em relação a ela, que foi a selecção social.

É um conceito que aparece em simultâneo com as políticas assumidamente neoliberais da Nova Direita?

Embora esta problemática das competências seja mais antiga nos países europeus, diria que, entre nós, ela surge a partir de 2001, nomeadamente partindo dos trabalhos de Phillipe Perrenoud.
No entanto, julgo que não se poderá afirmar que em Portugal exista um discurso neoliberal explícito, mas antes tentativas nesse sentido ? entre outras através de uma ideia cara à Nova Direita: ?Menos Estado, melhor Estado? ?, mas sempre em contra ciclo. É precisamente num contexto de contra ciclo que surgem os ?rankings?, por volta do ano 2000, em grande medida em função da pressão de órgãos de comunicação social como o Expresso, o Público e, até certo ponto, do Diário de Notícias, e precisamente no momento em que eles são abandonados em países anglo-saxónicos, como a Irlanda e a Escócia.

Esse conceito aparece em Portugal associado ao executivo socialista e à reorganização curricular do ensino básico. De que forma se prolonga com o executivo PSD/PP?

Prolonga-se em função da inércia, ou seja, mantiveram-se os programas, que estavam aprovados e generalizados, e limitou-se a gerir a situação. Não se acrescentou qualquer medida. Aliás, todas as medidas que o ex-ministro David Justino disse que implementaria enquanto era ministro-sombra não saíram do papel.

Esse conceito de competência é também, na sua opinião, uma forma de transferir a responsabilidade para os indivíduos e não para os efeitos da acção das organizações sobre os indivíduos?

Sim, em primeiro lugar pelo facto de se passar a responsabilidade aos pais através da escolha da escola. Depois, pelo princípio do mérito individual, partindo do princípio que ele é natural e desigualmente distribuído e que, portanto, há que criar as condições para que ele se revele. Mas então qual é o papel da sociedade na construção de novas pessoas e de transformação das próprias sociedades?

É também uma boa forma de justificar problemas sociais como a desigualdade, o desemprego, a própria concentração da riqueza?

Claro, mas se pensarmos desta forma naturalista fica-se descansado, e esse é o grande perigo. E as desigualdades sociais, como se sabe, não são naturais, são construídas.

A Lógica de mercado nas escolas

A PÁGINA entrevistou recentemente Gustavo Fischman, professor da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, que nos deu uma imagem bastante clara da forma como as empresas e a lógica de mercado entram hoje em dia nas escolas daquele país. Acha que as escolas portuguesas podem correr o mesmo risco?

Eu penso que se deve distinguir entre aquilo que é a lógica de mercado aplicada ao funcionamento das escolas e a difusão dos valores do capitalismo, ou seja, da lógica de acumulação incessante de capital ao universo da escola.
A entrada de empresas na escola é inevitável e vamos ter de viver com isso. Não quer dizer que seja um fatalismo, mas teremos de viver com isso de uma forma crítica, desconstruindo essas investidas, o que se torna difícil numa sociedade crescentemente consumista. Referiu-me o exemplo dos Estados Unidos, mas nós por cá ainda não funcionamos de uma forma tão explícita. Há um peso significativo e tradicional de um Estado centralista, que deste ponto de vista funciona como um obstáculo aos interesses do mercado. Para já, aquilo que poderemos vir a assistir é à emergência daquilo que alguns autores designam por ?quase-mercado? que, como a expressão indica, não possui a totalidade das características do mercado, não implicando, por exemplo, a privatização das escolas.
O que considero realmente preocupante é o facto de a lógica de mercado estar a entrar aos poucos, de uma forma quase dissimulada, nas escolas portuguesas, nomeadamente através do exemplo que há pouco referi sobre a lógica de funcionamento das escolas secundárias públicas, que, repito, em nada se distinguem do modo de funcionamento das escolas secundárias privadas.
Isto, porque os professores do ensino público adoptam o mesmo comportamento, eventualmente mais austero, dos colegas do ensino privado - estes últimos, pela lógica das organizações, são obrigados a estar mais disponíveis para apoiar individualmente os alunos, ao passo que nas escolas públicas isso não acontece, os alunos são praticamente deixados à sua sorte e para terem boas notas nos exames têm de ir buscar ajuda fora da escola. Ora isto é uma boa forma de o mercado paralelo das explicações, ou informal, como hoje se diz, florescer.

A proposta de nomeação de gestores profissionais na direcção das escolas não é um passo claro no sentido da abertura da escola às lógicas de mercado?

Essa é uma das tais medidas que a Lei de Bases da Educação, a ser aprovada, iria implementar. Mas não estou convencido que baste a nomeação de um gestor profissional para abrir as portas ao mercado na educação, tem de haver outros mecanismos.

Vê vantagens na introdução da figura do gestor nas escolas?

Não vejo nenhuma vantagem. Não é pelo facto de se introduzir um gestor que se transforma uma gestão burocrática e pesada numa gestão flexível e adequada às situações, que uma organização tradicionalmente sem capacidade para produzir políticas educativas próprias a vai adquirir. O grande problema continuará a ser a ausência de autonomia das escolas, reforçada agora com a generalização dos exames a todos os níveis de ensino. O gestor profissional apenas vai reforçar o nível de controlo no interior das escolas.

Como vê a entrada das autarquias e das associações de pais na gestão das escolas?

Essa é a grande questão, porque, se repararmos atentamente, a autonomia ? uma bandeira que a esquerda usou quando foi aprovada a Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986 ? estava em sintonia com o movimento descentralizador que se preparava, surgindo a par do Projecto Educativo, um dos elementos estruturantes e a face visível da autonomia das escolas.
Só que a autonomia é também um dos ingredientes do neoliberalismo, porque não é possível as políticas neoliberais concretizarem-se sem descentralização. Ela é efectivamente necessária para as escolas, mas o que significa ser autónomo? Este debate não está feito. Daí que esta resistência surda que as escolas fazem à assunção da autonomia seja de certo modo positiva porque implica um retardamento da entrada, que pode ser avassaladora, do mercado na educação.

Que linhas de orientação se devem estabelecer para debater os termos dessa autonomia?

Na minha opinião devia criar-se um movimento de debate em torno das escolas e da educação centrado na própria escola. Hoje fala-se muito em ?Estados Gerais?, em ?Novas Fronteiras?, mas ninguém fala em criar um movimento de debate e de reflexão sobre como a escola pode evoluir. Um debate sem um tempo definido, à imagem daquilo que se fez em 1988 com a reforma educativa, que procurasse inventariar as melhores formas de responder a este desafio. Este debate não está feito e era importante criar as condições para que ele pudesse ter lugar. O processo legislativo viria depois, com tempo.
Resta saber se as escolas têm coragem de o assumir e apropriarem-se dele, não estarem à espera que sejam outros a fazê-lo por ela. Os sindicatos de professores, enquanto porta-vozes mais visíveis do sentir das escolas, poderiam constituir umas boas alavancas para este debate, que envolvesse também as associações de pais, os alunos e a sociedade civil.

 Neste contexto, com vai ser o futuro próximo da educação em Portugal? Há processos adquiridos que muito dificilmente voltarão atrás?

Nada é irreversível neste processo. Será irreversível se, de um momento para o outro, se escancararem as portas à mercantilização da educação. É que mesmo reconhecendo, daqui a uns anos, que esse não foi o melhor caminho, haverá custos irremediáveis para várias gerações. O que é preocupante é esta inércia, esta expectativa em que as organizações escolares permanentemente se encontram.
Nesse sentido, considero-me bastante pessimista em relação à actual situação. Não vejo nada nas escolas que tenha consistência, dá-me ideia que tudo ocorre de uma forma rotineira, sem grande reflexão daquilo que se está a desenvolver.
Ainda não consegui perceber como é que países que estavam situados próximos de nós, como o caso da Irlanda, da Espanha e da Finlândia, resolveram grande parte dos problemas na área da educação com as ajudas estruturais vindas da União Europeia, e são hoje países de ponta, e nós não conseguimos mudar seja o que for. Interrogo-me como gastamos pelo menos 500 milhões de contos, desde 1993, em formação contínua e não se tenha mudado nada nas escolas por essa via. Há aqui qualquer coisa que não bate certo e que importa estudar...

O que não bate certo?

Certamente que existem inúmeros factores que importa inventariar para se poder avançar com políticas mais adequadas. Mas a incapacidade das escolas, enquanto organizações específicas, para conduzirem este processo de debate e, consequentemente, as principais responsabilidades políticas no campo, parece-me constituir um dos principais problemas. Daí a minha sugestão para este debate alargado, para tomarmos consciência dos diferentes problemas que tocam a educação e contribuirmos assim para a ultrapassagem da inércia e da falta de autonomia que tem caracterizado este sector, contribuindo assim para a afirmação do campo educativo.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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