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?A Escola Reclamada?

O dilema consiste na consciência de que o próprio projecto educativo é uma proposta do ?Nós? para os ?Eles?, e de que todos os projectos partem, de uma forma ou de outra, da assunção optimista de que as suas premissas são justas e os seus fins desejáveis

A recomposição do contrato social moderno e as formas emergentes de cidadania, a que nos temos vindo a referir como ?cidadania reclamada?*, colocam subtis dilemas a todos aqueles que estão envolvidos, aos diversos níveis, na gestão política da educação, sobretudo da educação pública. Principalmente para aqueles que vêm na educação uma forma privilegiada de mecanismo emancipatório, isto é, para aqueles que vêm nos sistemas educativos instrumentos que podem contribuir para a autonomia dos indivíduos e dos grupos.
O dilema consiste na consciência de que o próprio projecto educativo é uma proposta do ?Nós? para os ?Eles?, e de que todos os projectos partem, de uma forma ou de outra, da assunção optimista de que as suas premissas são justas e os seus fins desejáveis. Quando os ?Eles? resistem ao projecto, não por dificuldades de teor pedagógico, mas por opção (?nós não queremos a ?vossa? educação!?), os políticos e os educadores ? principalmente os mais generosos ? ficam cada vez com mais frequência esmagados sob o peso dessa resistência que é, portanto, uma recusa.  É o caso da resistência que a etnia cigana tem desenvolvido em relação à escola portuguesa. A não ser a preço de considerar que se trata de uma incapacidade ?genética? da comunidade cigana em aceder aos códigos da escola pública, essa resistência pode ser lida como uma forma de recusa dos projectos educativos que para as crianças e jovens ciganos têm vindo a ser desenhados.
Ainda hoje, os pressupostos políticos que fundamentam a manutenção e o investimento na instituição escolar assentam na crença de que a educação escolar pode corrigir os handicaps sociais e culturais que, à partida, manietam o desenvolvimento dos indivíduos e dos grupos. A escola como meritocracia constitui talvez a mais importante política redistributiva da sociedade democrática. Mas como política redistributiva, há já algum tempo que parece ter ficado enleada nas suas próprias malhas e ter estancado o seu desenvolvimento. A sua renovação depende da sua capacidade de descentração, da sua assunção de lógicas de desenvolvimento que não sejam restritas à lógica da cidadania atribuída, isto é, à lógica política que faz depender directamente o exercício de direitos e de deveres dos indivíduos e dos grupos à configuração nacional da sua cidadania. Por outras palavras, a educação escolar é um direito/dever que é atribuído aos indivíduos nascidos num dado território (sempre nacional), direito/dever esse que é garantido, implementado e inspeccionado pelo estado, tudo se passando como se fosse este o desenhador do projecto e os cidadãos aqueles para quem o projecto educativo é desenhado. Ora, a educação escolar tem que ser colocada nos guiões dos actores sociais e culturais e não o contrário. Isto significa que a escola, ela própria, também tem que se tornar "reclamada" e não simplesmente "atribuída".
A ?arrogância? desta reclamação desafia mesmo os mais generosos dos pedagogos, para não falar nos menos generosos decisores, pois acaba por pôr a descoberto uma correlata arrogância, a de quem se arroga o saber qual o projecto educacional que convém a pessoas de outras culturas, com outros estilos de vida ou com outro ideal de humanidade.
Ao ser reclamada pelas diferentes ?diferenças??, a escola também se pluraliza e diferencia. Esta diversificação, contudo, longe de pôr necessariamente em causa o carácter público da instituição escolar, até o pode aprofundar, no sentido de que a tradicional influência (desde a Revolução Francesa) do domínio económico sobre a escola (através da origem social dos indivíduos) é, pelos menos em parte, reconfigurado pela colocação da questão dos direitos culturais dos indivíduos e grupos. Como podem o estado e as suas instituições interiorizar (e aproveitar) esta nova situação da ?escola reclamada?? Trataremos deste assunto na nossa próxima colaboração cujo título desde já adiantamos: ?o estado em rede?.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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