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Carta de um asilo de velhos

O nosso asilo parece hoje um verdadeiro enxame a zumbir. Quando me trouxeram cá para baixo, reparei que, pendurado na parede da nossa sala de jantar, havia um número novo do jornal «Luz». E imaginam quem era o alvo do ataque? O nosso camarada Glus. Quase que fiquei sem fôlego, porque o cama­rada Glus, apesar das suas setenta primave­ras, tem-nos governado durante os últimos cinco anos com mão de ferro. Foi ele que, pelo aniversário da Revolução, lançou o slo­gan que cada um de nós, devia comprometer-se a morrer prematuramente, antes de chegar ao nosso número. Digna-se, porém, aceitar um prato de papas, caso alguém lho ofereça às escondidas. Diz-se que ele é capaz de tudo por um prato de papas.
Em 1952, durante uma reunião solene e comemorativa, o nosso colega Pyz, que é surdo que nem uma porta, gritou cheio de boa fé «Deus abençoe o nosso Czar Nicolau». Glus apressou-se a tirar certas conclu­sões deste incidente. O que aconteceu ao certo não o sabemos nós, mas apareceram dois desconhecidos que selaram a dentadura de Pyz, deixada numa mesa de cabeceira pelo camarada Glus. Do que aconteceu a Pyz nada soubemos até hoje. O selo ainda continua na dentadura.
Todos os que têm um passado temem Glus. O velho Pac-Pacynski, por exemplo, fe­rido pelos partidários, ao responder ao ques­tionário teve de escrever que fora o coronel Beck o agressor, dada a oposição de Pac­-Pacynski ao regime anterior à guerra. O nosso colega Kaczka, denunciado por Glus numa reunião como praticante de ginástica sueca, teve um esgotamento e pintou a barba de vermelho vivo. Há ainda o caso da nossa colega Noga. Se bem se lembram, ela sempre usou tranças. De súbito, o camarada Glus descobriu que as tranças eram uma maneira de troçar dos chineses, melhor, do Povo Chi­nês. Noga reabilitou-se aos olhos do nosso secretário quando bordou um estandarte com um slogan para o Primeiro de Maio.
A minha experiência tem sido bastante variada. Como sabia tocar balalaica, o cama­rada Glus elegeu-me presidente do nosso cír­culo de Mitshurin. Não foi mau de todo, por­que me deixou fora do jogo, mas em certa ocasião, por altura de uma inspecção, tive de engolir um quilo de grãos de chumbo, só para provar que tínhamos conseguido cultivar determinada espécie de arandos em terrenos secos e artificiais.
Todos nos lembramos do dia em que Maria Etual teve a infelicidade de deixar cair da carteira a caixa de pó de arroz. Pois bem, Maria Etual tem aproximadamente a idade do camarada Glus e, consequentemente, merece ser tratada com certa indulgência. Mas o camarada Glus decidiu que seria esta a oca­sião propícia para nos pôr no nosso lugar. O resultado foi que nos tornámos todos sus­peitos de tendências pró-Gomulka; e, quanto a Maria Etual, uma vez ultrapassada a crise, começou a escrever poemas em louvor dos pequenos proprietários. Devo ter um poema algures, visto o camarada Glus nos ter obri­gado a decorá-lo. Onde estará? Ah! ei-lo:

Escuta pequeno proprietário o que te vou dizer
Duro é o teu destino quanto pode ser
Não tendo já com que semear o pão
Terás de colher e apresentar o grão

É um belo poema, não é?
Podia contar-lhes muitas outras histórias do camarada Glus. Uma vez, houve uma ter­rível tempestade, e o nosso colega Tran começou a fazer troça, afirmando que assis­tira a uma muito pior em 1880. O camarada Glus acusou-o logo de ser um descontente, de ter ficado apegado aos velhos tempos. Devo informar que Glus está a padecer do fígado, referindo-se invariavelmente ao facto como «umas das malditas heranças do capitalismo». Noutra ocasião, obrigou-nos a assinar uma petição às autoridades para que a nossa instituição mudasse o nome de «Asilo de Velhos» para «O LAR-Volga para Velhos».
Agora que têm uma ideia da personalidade do camarada Glus, podem compreender por­que o tememos e o que significou para nós ter visto os seus métodos atacados esta ma­nhã. Juntámo-nos à volta do «Luz», para verificar com os nossos próprios olhos. De facto, ao fundo da página, no canto esquerdo, via-se um parágrafo referente ao facto do camarada Glus ressonar durante a noite. Sim, era o que lá dizia... Como os tempos mu­daram.

(Nota aos Pensamentos de ouro: no original estes pensamentos são aompamhados dos símbolos dispostos como aqui se apresentam)

Pensamentos de Ouro

Os cantores negros têm geralmente vozes roucas, tal rouquidão deve-se às terríveis condições de alojamento em que são forçados a viver

TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT

Obsessão: sessão no rio Ob.

oooooooooooooooooooooooooooo

Slogan do pós-comunismo: «Povos de todos os planetas, uni-vos!»

IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII

Neve: água em pó

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

Não se pode ouvir o mar em todas as conchas.

nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn

O homem pensa isto e aquilo, mas mais frequentemente isto.

HHHHHHHHHHHHHHHHHHHH

Suicídio: é quando um homem encosta uma pistola ao ouvido em vez de ao telefone.

HHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH

Desilusão amorosa: quando um necrófilo descobre que o seu companheiro está ainda em coma.

hhhhhhhhhhhhh


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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