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"O governo está a subverter os principíos democráticos do sistema educativo português"

Paulo Sucena, secretário-geral da FENSPROF, em entrevista à PÁGINA

Em véspera do VIII Congresso da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) a PÁGINA entrevista Paulo Sucena, secretário-geral daquela que é considerada a maior federação de sindicatos de professores do país. Em revista, alguns dos grandes temas da actualidade, com destaque para a nova Lei de Bases da Educação e a crescente perda de autonomia das escolas e dos professores - de que o recente processo de reordenamento da rede de escolas é um exemplo -, passando por temas transversais como a formação inicial e contínua dos professores, a adesão à Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), sem esquecer, claro, o congresso que se realizará nos próximos dias 19, 20 e 21 de Março, que, garante Paulo Sucena, servirá para "definir as grandes linhas de actuação para o próximo triénio".

O governo apresentou recentemente uma proposta de lei para uma nova Lei de Bases para a Educação. Qual é a posição da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) face à proposta do PSD/PP e dos partidos da oposição?

A Fenprof, tal como referiu quer no parecer que deu sobre esta matéria quer nos inúmeros debates em que os seus dirigentes têm participado, está frontalmente contra esta proposta de lei do governo já que na nossa opinião ela subverte os princípios democráticos que caracterizam o sistema educativo português e ofende o próprio articulado constitucional presente na Constituição da República que refere competir ao Estado a função de criar uma rede de estabelecimentos de ensino público que satisfaça as necessidades do País. Ora, esta proposta de lei está claramente imbuída de uma filosofia em que o sector público e privado são tratados em pé de igualdade.
Como sabe, a Fenprof não tem qualquer tipo de posição hostil em relação à existência do sector privado ? o Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, ao qual pertenço, tem, aliás, um número significativo de sindicalizados provenientes do sector privado -, o que está em causa é uma questão de filosofia política, da necessidade de fortalecer um sector público que dote a população activa de instrumentos de natureza científica, tecnológica e humanista que permitam que nenhum português se sinta socialmente marginalizado. Esta é uma responsabilidade clara do Estado que não deverá ser alienada, sob risco de o país deixar de poder dar resposta às exigências que o futuro lhe irá colocar.

Que comentário lhe merecem as propostas da oposição?

Sem pretender particularizar, diria que me desagrada o facto de em todas elas - com a excepção de uma que não vou referir - se propor o prolongamento da escolaridade mínima obrigatória até aos 12 anos quando existe ainda um significativo número de alunos que abandona precocemente o sistema e não cumpre sequer a escolaridade obrigatória que está estipulada na lei. Não quero com isto dizer que a Fenprof não concorde com o facto de ser necessário aumentar a escolaridade obrigatória para os 12 anos, mas passa-se com alguma ligeireza por esta realidade.
Apesar de a Lei de Bases ser um documento estrutural e estruturante - e exactamente por esse facto - não deve estar eximida, do meu ponto de vista, de assumir no seu articulado alguma responsabilidade, através de medidas concretas, para que a actual escolaridade de nove anos seja cumprida, única forma sólida para que possamos ter esperanças de vir a implementar a escolaridade mínima obrigatória de 12 anos.

De um modo global, que traços negativos identifica na actual política do governo para a educação?

Apesar de a nova Lei de Bases para a Educação ainda não ter sido aprovada, e tendo em conta que será através dela que o governo irá orientar a sua política para o sector,  penso que para já  o executivo não está isento de críticas no que se refere ao modelo de funcionamento das escolas. O governo está, do meu ponto de vista, a assumir um erro crasso ao não ter em conta a avaliação isenta, fundamentada e rigorosa sobre 30 anos de gestão democrática das escolas portuguesas, e, negligenciando essa avaliação positiva, estar a tentar impor um gestor profissional denegando o princípio de gestão democrática das escolas.
O projecto educativo de uma escola pressupõe a participação de todos os elementos da comunidade educativa. Na proposta de lei refere-se que o projecto educativo de escola é um dos trunfos que o gestor de escola pode e deve apresentar quando se candidata ao órgão de gestão. A escola é uma instituição cuja complexidade de funcionamento não pode ficar confinada às ideias de uma só pessoa. O projecto educativo de escola constrói-se por todos e diariamente. A atitude do governo é profundamente negativa e pode deitar por terra o conceito de autonomia das escolas e dos agrupamentos, colocando claramente a escola numa posição de crescente dependência do poder central.

Para além da retirada dessa margem de autonomia, que outros aspectos merecem, na sua opinião, uma nota negativa na actuação do executivo?

Para além de uma perda crescente do poder de gestão democrática e da autonomia das escolas, penso que é criticável o facto de o governo ter uma visão economicista do sistema educativo, de ser omisso na criação de uma lei de financiamento para os jardins de infância e estabelecimentos de ensino do básico e do secundário, já para não falar de aspectos mais práticos como a falta de dotação de recursos materiais, do excessivo número de alunos por turma, do insuficiente apetrechamento das bibliotecas e dos laboratórios, exigências que se colocam hoje no sentido de melhorar a oferta educativa.
Será difícil esperar que, neste contexto, as escolas cumpram os seus projectos educativos, tentem inovar, experimentar e procurar novos caminhos para que os alunos obtenham maior sucesso educativo,
Mais necessário se torna apostar na melhoria do sistema educativo se pensarmos que Portugal herdou um passado de 48 anos de obscurantismo e que precisa de investir mais do que os seus parceiros europeus para recuperar o atraso em matéria de educação.

Como vê o actual processo de reordenamento da rede de escolar, através do qual foi retirada essa margem de autonomia às escolas?

A Fenprof está frontalmente contra a actual política de reordenamento da rede escolar, nomeadamente por considerarmos que o processo de constituição dos agrupamentos de escolas foi conduzido à margem da lei. Enquanto secretário geral de uma federação de sindicatos de professores, esta é a vertente que considero mais importante, já que as organizações sindicais são um dos pilares da democracia e devem zelar pelo cumprimento das leis de equidade e de justiça - de contrário, o discurso do primeiro-ministro sobre a necessidade de respeitar o Estado de Direito é mera retórica.
Por outro lado, enquanto professor critico o espírito economicista que se encontra subjacente a esta forma de reordenar a rede escolar, com a constituição de mega-agrupamentos com mais de 2500 alunos e 250 professores, alguns deles a distar mais de 50 quilómetros da escola sede. Estas são medidas que nos deixam vislumbrar com alguma clareza que o único objectivo é a poupança de meios na Educação, postergando qualquer propósito de melhorar a sua qualidade, que se reflecte, necessariamente, no êxito escolar dos alunos.

Formação de professores: é preciso apostar na qualidade

A multiplicação da oferta de entidades de formação inicial de professores em Portugal nos últimos 15 anos é uma realidade incontornável. Será que essa proliferação não fará com que se verifiquem níveis menos exigentes na formação dos professores e isso se reflicta no próprio prestígio da classe?

O que disse é indesmentível: existem actualmente múltiplas instituições de formação de professores. Mais: não tenho receio de afirmar ? estaria a faltar à verdade se não o dissesse ? que muitas dessas instituições formam com má qualidade. Do meu ponto de vista esta questão deve ser analisada exclusivamente do ponto de vista político.
Nesse sentido, é profundamente negativo que este governo tenha tomado como uma das suas primeiras medidas a extinção do INAFOP, um organismo que dava garantias à sociedade portuguesa de exigência, de qualidade e de coerência dos currículos da formação de professores. Cheguei a ser membro do conselho geral do INAFOP e posso garantir que os documentos que este instituto produziu relativamente ao perfil dos educadores de infância e dos professores do 1º ciclo eram de qualidade e garantiam que os jardins de infância e as escolas do 1º ciclo estivessem apetrechados de profissionais altamente qualificados para responder às necessidades do País.
Perante estes dados, eu diria que o País exige que um outro governo tome medidas no sentido de dotar as escolas de formação de professores de currículos adequados às exigências que hoje se colocam ao exercício da profissão docente.

Por outro lado, tem-se verificado um desinvestimento da formação contínua em áreas de carácter pedagógico em detrimento de práticas eminentemente burocráticas. Que comentário lhe merece esta situação?

Se me permite, acrescentaria ao seu raciocínio que esta é uma formação contínua pragmática naquilo que ela tem de mais redutor e de mais pobre, ou seja, é entendida por uma boa parte dos professores como mera necessidade de progressão na carreira. Isto é a distorção completa do conceito de formação contínua e de formação ao longo da vida, de que o governo hoje tanto fala. A formação contínua transformou-se hoje numa autêntica corrida de obstáculos e está longe de corresponder àquilo que é entendido na Europa e no resto do mundo como uma necessidade de reciclagem dos saberes.

Qual é o modelo alternativo que a Fenprof propõe?

Em primeiro lugar um modelo que fosse centrado nas escolas, porque o corpo docente de uma escola - que ficará mais heterogéneo com os novos agrupamentos - tem características muito próprias. Assim, deveriam ser as escolas a eleger aquilo que consideram fundamental e prioritário para o enriquecimento do corpo docente, dos grupos disciplinares e, em última análise, do próprio professor visto como actor individual.

Que papel pode - e deve - ter a escola pública na formação ao longo da vida, seja no plano de alfabetização de adultos e em outras áreas de interesse social?

Essa é uma pergunta pertinente na medida da sua actualidade. Agora que o governo está decidido a acabar com as escolas com menos de dez alunos, seria interessante pensar que elas pudessem ser transformadas em centros de alfabetização, dotando as pessoas dos instrumentos básicos de instrução, mas também de partilha da cultura local, pensando que esses adultos analfabetos têm a sua própria cultura, uma cultura profissional que deve ser valorizada, transmitida e partilhada, aproveitando, ao mesmo tempo, para dinamizar localidades isoladas no interior do país, deprimidas do ponto de vista cultural e social. Penso que seria muito mais interessante pensar numa estratégia de aproveitamento das escolas do que simplesmente anunciar o seu encerramento.

Tendo em conta que somos o país da Europa comunitária com mais baixos índices de qualificação, como é que vê a importância do ensino profissional e tecnológico e que opinião tem acerca do actual modelo?

A Fenprof considera que em Portugal se tem privilegiado a via de ensino em detrimento de outras áreas, com o absurdo de continuarmos a ter a mais baixa taxa de licenciados da UE. Diria, neste contexto, que embora o ensino tecnológico e profissional seja indispensável ao desenvolvimento do país ele não foi suficientemente prestigiado do ponto de vista social.
Na nossa opinião, o ensino profissional ? e repare que não estou a falar de vias profissionalizantes ? deveria estar estruturado de forma que no final de doze anos de escolaridade o Estado garantisse que os jovens pudessem ter acesso, sem serem penalizados por isso, ao ensino superior universitário ou politécnico para adquirir competências acrescidas.

Marcha pela Educação, VIII Congresso e adesão à CGTP

Como viu a Marcha pela Educação e de que forma, tendo em conta as organizações e as personalidades que a ela aderiram, pode ela potenciar uma reviravolta no sector?

Apesar de como dirigente máximo da Fenprof a minha opinião poder parecer suspeita, parece-me incontestável que a Marcha pela Educação foi um êxito e superou todas as expectativas iniciais. Creio que nenhuma das organizações que a promoveu estaria à espera que mais de 12 mil pessoas descessem à rua a defender uma escola pública, democrática e de qualidade para todos.
Além disso, creio que ela trouxe uma reflexão muito importante para a Fenprof. As iniciativas futuras, seja através de um fórum alargado de debate sobre as  grandes questões da educação ou através de outros moldes, não poderão ficar restritos ao universo da Fenprof, deverão inclusivamente incluir um universo mais lato do que aquele que foi representado na marcha pela educação.
Temos de fazer com que a educação seja uma prioridade sublinhada a vermelho na consciência crítica de todos os portugueses, porque sem uma escola pública, democrática e de qualidade o País não se desenvolverá, a democracia não se aprofundará e creio que poderá acontecer exactamente o oposto: uma escola elitista, uma escola que segrega, enfim, uma escola que contribuirá para a destruição acelerada dos contornos mais nítidos da democracia que se instituiu com o 25 de Abril.

Que reflexos práticos, a nível nacional e internacional, pode trazer a adesão dos sindicatos da Fenprof - à excepção dos Açores e Madeira - à Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP)?

Penso que a adesão dos principais sindicatos da Fenprof à CGTP constituiu um significativo reforço a nível internacional para esta confederação, já que conta hoje com um acréscimo representativo de mais de 60 mil associados numa área tão importante de qualquer sociedade como é a da educação e do ensino.
Depois, creio que se estabeleceu uma nova e proveitosa relação dialética entre as duas organizações, já que os sindicatos da Fenprof enriquecem o seu próprio pensamento político e sindical com aquilo que é a reflexão de todos os trabalhadores portugueses ? neste momento cerca de um milhão, de todas as profissões ? que estão integrados na CGTP, ao mesmo tempo que os trabalhadores de outras áreas profissionais se confrontam com os problemas e as questões que os sindicatos da Fenprof levam para o interior da CGTP.
Ao mesmo tempo, isto serve de estímulo para que a luta na área da educação deixe de ser uma questão de índole corporativa - no sentido em que deixa de estar confinada aos professores. Afinal, a educação transformou-se hoje numa grande questão e numa grande reivindicação da sociedade portuguesa.
Diria, portanto, que são benefícios biunívocos. Um reflexo disso é o facto de muitos professores terem passado a integrar o Conselho Nacional da CGTP, tendo sido a própria central a considerar que a presença destes era um importante contributo do ponto de vista político.

Como encara o próximo congresso da Fenprof? Dada a actual conjuntura, que novos desenvolvimentos poderá ele trazer ao sector e ao sindicalismo docente?

Encaro com optimismo o próximo congresso. Creio que o plano de acção foi elaborado sob uma perspectiva diferente dos congressos anteriores, tendo havido o cuidado de se apresentar uma visão transversal dos problemas e não apenas sectorial. Creio que irá ser, como sempre, um espaço de reflexão e de confronto de ideias muito rico, haverá concerteza matérias da actualidade à margem do plano de acção, nomeadamente tendo em conta que o governo poderá lançar legislação sobre o Estatuto da Carreira Docente, que fará com que o congresso ganhe outros rumos. A mobilização está a ser muito grande - vamos ter cerca de mil delegados - e não irá concerteza ser um congresso para marcar calendário, antes um congresso para definir as grandes linhas de actuação para o próximo triénio.

A escola não pode viver isolada da sociedade

Que grandes linhas de orientação defende a Fenprof para o sistema educativo português?

Uma das questões que mais preocupa a Fenprof - até porque hoje em dia já ninguém vê a escola como uma ilha afastada da sociedade - é o facto de termos uma sociedade com centenas de milhar de analfabetos e de ser imperioso que o governo assuma a responsabilidade de erradicar o analfabetismo do país, não através de discursos retóricos mas de medidas concretas. Essa é uma das razões pela qual defendemos, ao contrário do que diz o governo, que não existem professores a mais, porque num país confrontado com esta situação é demagógico fazer uma tal afirmação.
Em segundo lugar já não há ninguém que conteste que a educação de infância é fundamental para o êxito no futuro das crianças e dos jovens. Entendemos, por isso, que é necessário expandir a rede pública dos jardins de infância e assegurar que todas as crianças portuguesas tenham acesso a instalações com qualidade.
Por outro lado, seria bom acabar com a música celestial cantada e tocada por uma série de governos que demonstram, na teoria, uma grande preocupação pelo 1º ciclo do ensino básico, mas que a realidade das escolas de quadro negro e giz  desmente. É necessário apostar num plano de investimento que permita dotar todas as escolas do 1º ciclo do País das condições necessárias para que o índice de insucesso seja nulo. Não é possível pensar no futuro de um país admitindo que as suas crianças comecem desde logo a ser excluídas neste nível de ensino.
Depois, no 2º e 3º ciclos do ensino básico e secundário é indispensável tomar medidas de fundo no que respeita ao funcionamento das escolas, seja a nível dos recursos pedagógicos e didáticos seja da redução do número de alunos por turma e por escola, no sentido de tornar a escola num espaço harmonioso e de cidadania, de humanidade, porque estudar é uma tarefa difícil, muitas vezes desmotivadora para as crianças e jovens, que, como tal, deveria ser tornada o mais agradável possível.
Além disto, e sendo certo de que não pode existir um bom ensino sem professores da melhor qualidade, é cada vez mais urgente que o país repense a formação de professores, seja ela a nível inicial, contínuo e ao longo da vida.
Por último, retomando a ideia de que a escola não é uma instituição que vive isolada da sociedade, e sabendo que esta é uma sociedade com uma série de franjas marginalizadas ? não falo só dos analfabetos, mas dos desempregados, dos trabalhadores com trabalho precário e baixos salários, das famílias onde nunca entrou um jornal (quanto mais um livro!) -, é necessário que ao nível da acção social escolar se criem medidas de discriminação positiva para as crianças provenientes desses meios de forma que a escola possa contribuir decisivamente para atenuar as diferenças introduzidas pela própria sociedade, servindo como um local de atenuação e não de acentuamento dos desiquilíbrios.
Creio que estas são questões que me parecem fundamentais para o salto qualitativo na educação.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Paulo Sucena
Secretário- geral da FENFROF
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Paulo Sucena
Secretário- geral da FENFROF
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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