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A objectividade

Até mesmo a objectividade tem uma história. Esta palavra nem sempre terá sido empregue com o sentido que hoje lhe atribuímos. Segundo Lorraine Daston, Occam e Duns Escoto (séc. XIV) te-la-iam empregue na sua forma adverbial ou adjectival (objectivus / objective); só no séc XIX surge a sua forma substantiva ? a objectividade. Na sua origem, movendo-se no interior de uma filosofia escolástica, a palavra objectividade é aplicada com um sentido completamente contrário àquele em que é utilizado actualmente ? ? ?Objectivo?, referia-se às coisas tal como elas se apresentam à consciência, enquanto que ?subjectivo? se referia às coisas em si?[1].

Chamando a atenção para o facto de a objectividade científica se apresentar actualmente como uma ?virtude epistemológica?  preponderante, esta autora faz lembrar que não devemos confundi-la, nem com a busca da verdade ou com a busca da certeza. Se ?por vezes a objectividade científica coincide com estas outras virtudes epistemológicas, por vezes entra em conflito com elas??, e o cientista terá então que escolher entre ?um empenhamento na verdade e um empenhamento na objectividade.?

Nesta história da objectividade, podemos eleger dois momentos significativos, ocorridos em meados do séc. XIX: as fotografias do fisiologista Étienne-Jules Marey sobre o movimento dos animais[2] e o momento em que Charles Sanders Pierce insistiu em afirmar que a validade das inferências científicas requeriam que os nossos próprios interesses não se detivessem no nosso caso pessoal, devendo sim, ?abraçar a comunidade inteira?. Para Lorraine Daston, são estes dois momentos ? a objectividade mecânica da fotografia e a objectividade comunitária do mapa ? que constróem o novo ethos da objectividade.

Era no próprio interior da comunidade científica que se questionavam os meios de representação. No final do séc. XVIII, início do séc. XIX, era comum botânicos, anatomistas, biólogos ou astrónomos interrogarem-se sobre desenhos e ilustrações científicas, tentando saber até que ponto eram capazes de obedecer ao ideal de ?fidelidade à natureza?. A sua preocupação residia, muitas das vezes, na escolha de uma imagem representativa e um dos erros mais temidos era precisamente o da amostra não representativa .

 É este o ambiente que acolhe a fotografia como um novo instrumento de objectividade ? ?sempre que possível, as imagens e os procedimentos eram mecanizados. Traços de câmara escura, tracejados no vidro, e por fim, fotografias, substituíram os desenhos feitos à mão?.[3] Esta ?objectividade mecânica? parece cumprir-se na perfeição através da câmara fotográfica e é, também, em nome desta objectividade que muitos fotógrafos constroem o seu trabalho. Tomemos como exemplo, não só as obras de Étienne-Jules Marey (1830-1904), como também as de Albert Londe (1855-1917) na área da fotografia médica e anatómica, a obra de macrofotografia de plantas de Karl Blossfeldt (1865-1932), ou ainda os trabalhos de fotografias sequenciais de Eadweard Muybridge (1830-1904), que deixavam já antever aquilo que quinze anos mais tarde seria o surgimento do cinema.

Na sequência desta tentativa de obtenção de objectividade conseguida através da imagem fotográfica, o fotógrafo francês Alphonse Bertillon (1853 - 1914) interessou-se pelos critérios de identificação dos indivíduos[4]. Neste sentido,  desenvolveu métodos de análise antropométrica que, postos ao serviço das esquadras da polícia de Paris, permitiam a captura de fugitivos à lei. Este método, baseado no registo fotográfico do rosto, tinha, no entanto, algumas limitações e tinha necessidade de ser completado com uma descrição verbal de alguns detalhes físicos. Bertillon demonstrou, ainda, que as orelhas são o principal invariante individual (mais até do que o nariz ou os olhos). Desde então, ao nível judiciário, a fotografia passou a constituir-se como uma prova.

  • [1] Daston, Lorraine, in Fernando Gil (coord.), A ciência tal qual se faz, Ed. João Sá Costa, 1999, p.80.
  • [2] Na mesma linha de pesquisa, o trabalho de Eadweard J. Muybridge (1830-1904) sobre os movimentos das patas dos cavalos, pode ser considerado como uma frutuosa ligação entre arte e ciência.
  • [3] Daston, Lorraine, op. cit. p.90.
  • [4] Exemplo de fotografia antropométrica de Bertillon, Fig. n.º 41 .

  
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Ana Alvim

Ana Alvim

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