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"Como cientista nunca posso dizer: é impossível!"

Entrevista com Manuel Paiva, cientista da Agência Espacial Europeia

MANUEL PAIVA, CIENTISTA PORTUGUÊS RADICADO NA BÉLGICA, ESTEVE RECENTEMENTE EM PORTUGAL PARA DAR UMA CONFERÊNCIA INTITULADA «Para quando o 1º astronauta português?» [8 DE MAIO DE 2003]. PROFESSOR DE FÍSICA E BIOFÍSICA NA ESCOLA DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE LIBRE DE BRUXELAS, MANUEL PAIVA, TEM COLABORADO COMO PRINCIPAL INVESTIGADOR EM VÁRIOS PROJECTOS DA AGÊNCIA ESPACIAL EUROPEIA RELATIVOS À VIDA DO HOMEM NO ESPAÇO [TAIS COMO O PROJECTO SPACELAB D-2 E O EUROMIR 95]. FOI TAMBÉM CO-INVESTIGADOR NOS PROJECTOS SPACE LMS 1996 E NAS MISSÕES CIENTÍFICAS NEUROLAB DESENVOLVIDAS PELA NASA. A ÚLTIMA DAS QUAIS REALIZADA NA MISSÃO DO VAIVÉM COLUMBIA. É AINDA CO-AUTOR DO LIVRO DIÁLOGOS SOBRE PORTUGAL.

O ensino da ciência em Portugal

O cientista Manuel Paiva, a trabalhar na Bélgica,  sublinhou o facto de as crianças ainda não aprenderem em simultâneo a leitura, a escrita e a ciência. Tem dificuldade em compreender que Portugal tenha decidido ter um programa espacial próprio quando todos os países da Europa se estavam a unir para criar a ESA. Reconhece que há 20 anos estava convencido que a evolução da ciência era tal que se iria impor enquanto racionalidade, e que a crença na superstição e no paranormal iriam diminuir. Hoje reconhece que neste aspecto se equivocou pois o que acontece é o contrário.  Para o cientista, voltar a um mundo de superstição é voltar à Idade Média, ao tempo da Inquisição. Espera, quando se jubilar, trabalhar com  crianças dos primeiros anos escolares ajudando-as a despertar para a ciência e para o espírito científico. A ciência deve aprender-se desde cedo, defende.
 
Ouvi-o referir na conferência ?Para quando o Primeiro Astronauta Português?? [8 de Maio de 2003] que o primeiro passo para se ser um bom astronauta é ser-se um bom cientista. E qual é o primeiro passo para se ser um bom cientista?
 
Ser um bom aluno! Os conhecimentos de base são extremamente importantes. Há certos conceitos no domínio científico, em física e em matemática, que quando não se assimilam até a uma certa idade se tornam difíceis de compreender depois. Por isso é muito importante que, ao nível europeu, se comece o ensino da ciência muito mais cedo. Com raras excepções os países europeus começam tarde o ensino da ciência.

A ciência continua muito afastada das salas de aula, a começar logo pelo ensino primário?
 
Há já quatro mil anos que a humanidade aprendeu a ler e a escrever mas a ciência moderna só começou com Galileu. Por isso, ainda não há a ideia de que se deveria simultaneamente aprender a leitura, a escrita e a ciência. Mas é possível fazer com que as crianças comecem muito cedo a interessar-se pelos aspectos científicos, fazendo experiências simples. O que talvez seja mais difícil é formar os professores primários para a realização desse tipo de experiências. A ciência é difícil. E para compreender certos problemas científicos é necessário ter professores que possam dar explicações, para analisar os resultados de uma experiência, que são menos directas do que as regras para ler e escrever. Mas esta é uma evolução que se está a fazer em alguns países e que se deve fazer em Portugal.
 
Há pouco estávamos a falar das condições necessárias para se ser um bom cientista? Para se ser um bom cientista é preciso sair de Portugal?

(Risos) Hoje já não é preciso. Pode ser-se um bom cientista em Portugal. O que é indispensável depois é ter boas condições para se investigar. Em parte essas condições existem porque há colaborações e trocas em grande parte no interior da Europa. Aliás, quando às vezes os jovens me fazem perguntas sobre carreiras científicas e me dizem que pensam ir para os EUA eu tenho sempre tendência para os encorajar a ficar na Europa onde há muitos centros que são tão bons quanto os centros americanos. Mas ainda é preciso um certo tempo para criar a mentalidade de que Portugal se deve é integrar na Europa.
Quando os países escolhem aderir à Agência Espacial Europeia (ESA) a longo prazo é para se tornarem europeus. Claro que isto implica uma certa perda de autonomia, mas óptimo! Isso também é verdade nas avaliações externas. Veja-se o caso da missão belga. Os belgas pagaram 16 milhões de dólares aos russos para terem nesta missão em Dezembro passado um astronauta belga. Houve muitas experiências mas elas foram seleccionadas fora da Bélgica, embora tivesse sido a Bélgica a pagá-las. Porquê? Porque a única maneira de ter avaliações objectivas é sair do meio onde as pessoas se conhecem e ter avaliações exteriores. E acho que é isso que está a fazer evoluir Portugal: ter pessoas do exterior a fazer avaliações aqui.

Entre os cursos cujas saídas profissionais se resumem à investigação continua a haver a ideia de que o futuro passa por todos os países, menos por Portugal. O que pensa disso?

Há centros de investigação de qualidade em Portugal?Eu li o livro do Jorge Massada ?Vale a pena ser cientista?? e os quatro cientistas que ele entrevistou no livro dirigem quatro centros de qualidade internacional. Conheço pessoalmente três e o único que conheço apenas de reputação é o António Coutinho. E é uma pessoa que tem um nível que se pode dizer de potencial prémio Nobel. Publicou mais de dez artigos na revista «Nature». Quando um centro em Portugal tem um director com essa qualidade eu tenho a certeza de que os jovens que vão lá parar serão bem orientados. E os outros três centros, do Alexandre Quintanilha, do Sobrinho Simões e do Pacto de Carvalho, seriam de qualidade em qualquer país do mundo no domínio das ciências biomédicas. Onde muitas vezes a qualidade é mais baixa é no interior das universidades. Aí tem de haver uma maior evolução?

Que passa por um aumento de financiamento?

Em parte, mas não só. No domínio da Educação o orçamento português é mais ou menos o mesmo que o orçamento belga. Portanto não é só uma questão de dinheiro, é também uma questão de estrutura. Se não houver uma reforma completa das estruturas universitárias, o que ainda não aconteceu, a investigação não vai melhorar de maneira significativa.

A que tipo de reformas se refere?

As grandes reformas nas universidades francesas e belgas foram uma consequência do Maio de 68, que em grande parte terminaram com os mandarinatos. Nessa altura Portugal ainda vivia num regime fascista e não foi possível avançar com elas. Depois do 25 de Abril houve uma série de reformas mas foram ineficazes. Eu posso dizer isso porque tenho um passado que mostra que não sou reaccionário?
Não é normal que no nosso país certos dirigentes universitários sejam eleitos pelos estudantes [40% dos votos são dos estudantes]. A primeira função dos estudantes é estudar e provar que são capazes de ser muito bons como estudantes. Também me espanta ver que os estudantes que têm funções de dirigentes associativos podem ter certas vantagens e fazer exames em alturas diferentes, etc.? Isto é perfeitamente inadmissível. E pode criar a tendência para certos alunos escolherem esses lugares de dirigentes porque isso lhes dá vantagens. Um reitor de uma universidade deve ser eleito pelos seus pares e por aqueles que já tenham diploma e que já conseguiram mostrar que como estudantes eram capazes de ser bons e de terminar o curso.
Outra reforma que me parece muito importante passa pela mudança da estrutura do ensino de forma a que os professores possam dedicar mais tempo à investigação. Eu, por exemplo, dou aulas a 400 alunos. São 90 horas de ensino e muitos exames, mas consagro apenas 30% do meu tempo ao ensino porque há uma boa organização e não perco tempo com reclamações. Nunca tive uma reclamação de um exame. É claro que o que é preciso é que não haja erro. Mas aqui em Portugal perde-se muito tempo com reclamações. Eu nunca tive de perder tempo com burocracias paralisantes porque o ensino está bem organizado. Estou convencido que aqui em Portugal um professor que desse aulas a 400 alunos no primeiro ano, passaria muito mais tempo que eu no ensino. Eu ainda tenho tempo para consagrar à investigação e para dirigir um laboratório.

Portugal, o Espaço e o investimento na investigação espacial

Qual a importância da presença de um astronauta português numa missão espacial? É uma questão de imagem?
 
O facto de se ser o primeiro astronauta de um país tem sempre alguma repercussão, mas acho que é preciso relativizar um bocado [o acontecimento]. Até porque o primeiro astronauta português é capaz de vir a ser o milésimo a nível mundial... Portanto, vai ser uma notícia essencialmente local. Na Bélgica, o primeiro astronauta voou há 10 anos e realmente houve uma grande mediatização. O segundo voou em Dezembro passado e já houve muito menos interesse dos «media» nele. Além disso, se houver um astronauta português ele será muito provavelmente recrutado através dos concursos da ESA e, por isso, será antes de mais um astronauta europeu. Na ESA a questão da nacionalidade é secundária, o que é muito importante, porque só assim [com esta mentalidade] se poderá construir a Europa.

A adesão de Portugal à Agência Espacial Europeia (ESA) tem apenas 2 anos [2000/2001]. Fará sentido que um pequeno país como Portugal invista no domínio espacial?
 
Dos pequenos países na Europa, a Bélgica é o que investe mais no domínio espacial. São quantias muito importantes para um pequeno país, mas, no entanto, não houve até hoje uma oposição a esse investimento, nem da parte das universidades nem da indústria. Depois é preciso ver que a regra que regula a contribuição dos diferentes países para a ESA diz que o que é investido tem de retornar ao país. Para isso é essencial que em Portugal haja indústrias competitivas, capazes de rentabilizar esse retorno. Só assim fará sentido investir no domínio espacial.

Que projectos ligam Portugal à ESA?

Conheço muito mal os projectos que ligam Portugal à ESA? mas por acaso estava a folhear o jornal Público [de 08 de Maio de 2003] e li que vieram cá dois americanos para discutir contratos com indústrias portuguesas. Só percorri a notícia mas acho que seria muito mais importante que Portugal se consagrasse inteiramente à Europa.

Curiosamente Portugal parece virar-se para os EUA?

Na minha opinião isso seria um erro gigantesco e uma enorme injustiça para com todos os europeus que contribuíram para o desenvolvimento de Portugal. Porque se o país tem hoje as auto-estradas e as telecomunicações que tem foram os investimentos europeus que os proporcionaram. E se agora que está mais desenvolvido Portugal se vira para os EUA? enfim, é uma tendência que eu tenho dificuldade em compreender. Tal como tenho dificuldade em compreender que Portugal tenha decidido ter um programa espacial próprio quando todos os países da Europa se estavam a unir para criar a ESA. Seria interessante ver em que é que esse investimento resultou. Por vezes tenho a impressão de que há um grande desperdício de potencialidades e de dinheiro só porque se quer fazer as coisas de uma maneira diferente da dos outros pequenos países.

O projecto espacial português está orientado essencialmente para as telecomunicações?

Na ESA existem os programas obrigatórios, de carácter científico e ligados à infra-estrutura e depois cada país pode escolher a sua área [de participação]. Portugal tem uma contribuição muito pequena ? que corresponde a cerca de metade do orçamento que a ESA gasta actualmente só para a educação (1% do orçamento total) ? portanto precisa de fazer boas escolhas. Pessoalmente acho que a área das telecomunicações foi uma óptima escolha.

O fascínio da ciência e o Columbia

Ouvi-o também dizer na televisão que as ?descobertas são imprevisíveis?. É aí que assenta o fascínio da Ciência?
 
É realmente isso que acho extraordinário na Ciência. Há dois aspectos que para mim são fascinantes. Um é a previsibilidade da ciência física - nesse sentido gosto muito de falar na missão Huygens (grande físico holandês do século XVII), que é uma sonda europeia que vai pousar na superfície de Titan, um satélite de Saturno, no dia 14 de Janeiro de 2005, e gosto de explicar aos miúdos de que forma sei isto de forma tão exacta. Como? Através das Leis de Newton. São elas que nos fazem antever com uma previsão extraordinária o que se vai passar. É por isso que se pode predizer os eclipses. Foi este o resultado do desenvolvimento da Física, da ciência Moderna do Galileu e da Astronomia. Este é um aspecto.
Mas para chegar a essas leis da Física, os que as descobriram tiveram de fazer um grande esforço. Isso está descrito num dos livros mais fabulosos que li, ?Os Sonâmbulos? do Arthur Koestler, publicado na Gradiva. Para um físico compreender a Física tem de aceitar primeiro o rigor extraordinário das suas leis, mas quando tenta fazer uma descoberta num certo domínio é igualmente fascinante não saber o que vai descobrir ao certo.
Essa combinação de um grande rigor científico, que até pode fazer pensar que há uma grande falta de fantasia, não impede que um cientista - que para ser eficaz tem de ter esse rigor extraordinário -, ao fazer a sua investigação não saiba bem por onde vai. E às vezes faz uma descoberta porque é capaz de associar aspectos em domínios muito diferentes. Por isso, a certa altura tem de parar mentalmente com esse grande rigor para deixar a mente partir em várias direcções possíveis. Portanto, a capacidade de um investigador é combinar dois aspectos que à partida parecem contraditórios: o rigor e a fantasia. É isso que permite novas descobertas.
 
Disse também que se não tivesse havido a tragédia do Columbia provavelmente ninguém saberia que havia experiências de um cientista português a bordo. Isto acontece porquê?

Essa foi a minha décima missão e provavelmente a menos espectacular do ponto de vista científico. Eu já estou na Bélgica há muito tempo. Há dez anos ocupei-me de uma grande missão, o Eurolab, e isso nunca despertou grande interesse em Portugal. O facto de haver um acidente e de se verem a morrer sete pessoas em directo tem uma dimensão mórbida. E não há dúvida nenhuma que em Portugal as pessoas têm uma certa morbidez... Basta ver que quando há um desastre as pessoas param para ver e não para ajudar os feridos.
Um dos astronautas que morreu na missão tinha expresso a vontade de no caso de algo acontecer tudo continuasse. É muito provável que eles não tenham sentido nada. Aquilo passou-se instantaneamente. Morreram depois de uma missão que tinha sido um enorme sucesso, no auge das suas capacidades intelectuais, e ao ver aquelas imagens, que são absolutamente dramáticas, a ideia que me vem ao espírito é uma imagem do Hubert Reeves, autor do livro "Poeiras de Estrelas", que diz que nós somos todos poeiras de estrelas, porque os átomos de massa mais elevada que constituem o nosso organismo foram criadas na explosão de supernovas no universo inteiro.

Acha que os portugueses ainda são um povo com uma visão limitada?

Uma das experiências mais extraordinárias que tive no domínio da educação foi com miúdos que, motivados pelo desastre do prestige, queriam compreender como é que o petróleo se escapava da embarcação para o fundo do mar. Fui a uma escola por três vezes, falar durante hora e meia, para responder às perguntas dos miúdos. E para quê? Para um dia poderem agir!

Na mesma altura, um professor universitário português explicava que as costas portuguesas não tinham sido atingidas pelo derrame devido à intervenção da Virgem de Fátima... Um professor universitário disse isto! Para que serve uma pessoa consagrar toda a sua vida ao trabalho científico se basta fazer umas rezas e o problema está resolvido? Eu sou extraordinariamente respeitoso das crenças dos outros, mas uma posição destas choca-me muito, porque após ter deixado Portugal por causa do fascismo encontro 40 anos depois as mesmas mentalidades em certos professores universitários.

Foi essa a razão da sua partida?

Sim, e é por isso que continuo a ser alérgico a pessoas que fazem um esforço para manter um povo ignorante. O dever de qualquer universidade é o de servir a sociedade. E o dever de qualquer professor universitário é o de não ser supersticioso, de não acreditar no paranormal e comunicar aos jovens que o motor do desenvolvimento de Portugal é o investimento na massa cinzenta, um investimento economicamente rentável a longo prazo, porque a Europa só pode ser uma grande potência, independente dos EUA, se for uma grande potência económica e isso não se consegue fazendo rezas mas aprendendo a ciência e trabalhando muitíssimo.

O Espaço, os extra-terrestres e outras superstições

Disse que acreditava na existência de vida em outros planetas... Podia desenvolver essa ideia?
 
Quando falo na possibilidade de vida em outros planetas sou muito prudente. Aliás, nunca utilizo a expressão "é provável" porque quando se fala em probabilidade é preciso que existam circunstâncias que nos permitam fazer um cálculo. Até ao momento só se conhece a existência de vida na Terra. No entanto, eu digo que é plausível porque hoje os cientistas pensam que as leis da Física são as mesmas em todo o universo. E é plausível que as mesmas leis da Física que levaram ao aparecimento da vida na Terra tenham levado à vida noutros sítios.
Dei recentemente uma conferência na Bélgica para miúdos de várias idades em que o tema era a água no universo. E comecei por lhes dizer que quando tinha a idade deles se um professor fosse à minha escola falar sobre aquele tema não diria praticamente nada, porque não se sabia nada, e que tudo aquilo que eu lhes ia dizer tinha sido descoberto nos últimos 20 anos. E uma das grandes descobertas que se tem feito é que existe água um pouco por todo o universo.
Outra descoberta essencial é que durante muito tempo não se sabia se havia planetas à volta de outras estrelas. E agora já há mais de cem planetas identificados e quase não há semana em que não se descubra mais um. Portanto, no nosso próprio sistema solar existem um planeta (Marte) e um satélite (o Europa, do planeta Júpiter) onde se tem quase a certeza que ainda exista água. E todos os cientistas estão de acordo que a água é o elemento essencial para o aparecimento da vida. Mesmo em relação a Marte, que se pensava ser um planeta árido e estéril, há cientistas que acreditam que exista vida nas camadas inferiores onde existe água e que, por isso, certas formas primitivas de vida possam ter sobrevivido. Portanto, ter uma missão para Marte, primeiro com uma sonda espacial e depois com o Homem, daqui a uns vinte anos, é um projecto extraordinário para entusiasmar os jovens.

Acredita em Ovnis?

(Risos) Não. Mas é curioso que na primeira conferência que dei em Portugal, há dois ou três anos, um professor primário me tenha perguntado o que eu pensava dos Ficheiros Secretos. Na altura pedi desculpa dizendo que não sabia o que isso era...
Há um domínio em relação ao qual mudei completamente de opinião nos últimos 20 anos. Eu estava convencido que a evolução da Ciência era tal que se iria impor enquanto racionalidade, e que a crença na superstição e no paranormal iriam diminuir. Porém, o que está a acontecer é precisamente o contrário. Por isso, hoje os cientistas devem fazer um grande esforço para lutar contra essas superstições.
Creio que uma das razões pelas quais isso acontece é que as pessoas naturalmente têm necessidade de acreditar em algo. Compreendo isso perfeitamente e posso até discutir as razões e as origens dessa crença. Antigamente as pessoas acreditavam numa religião bem estruturada, mas as diferentes religiões tradicionais estão a perder influência e há pessoas que têm necessidade de acreditar em algo e as vão substituindo por outras crenças. Aliás, as pessoas que são muito religiosas são também habitualmente muito supersticiosas.
O OVNI é apenas um exemplo, há muitos outros. Por isso, acho que é importante ter uma atitude desde o ensino primário. O facto de, em França, nas diferentes profissões e grupos culturais serem os professores primários os que mais acreditam no paranormal e os mais supersticiosos é absolutamente dramático. E é uma das razões que me faz pensar que há uma obrigação moral das pessoas que terminam uma carreira científica de tentar contribuir para eliminar a superstição e o arbitrário. Porque voltar-se a um mundo de superstição é voltar-se à Idade Média, à idade das Trevas, à Inquisição, que foi um período tenebroso da história da humanidade.

Substituir a religião pela Ciência?

Não, não, de modo nenhum. São coisas distintas. Ontem, numa emissão televisiva, perguntavam-me se eu acreditava em Deus. Eu respondi que era um cientista e que estava lá para responder a problemas ligados à ciência. Não me importo de falar das minhas convicções pessoais, mas acho que é um erro enorme para um cientista utilizar argumentos da ciência para falar de religião. Não tem nada a ver uma coisa com a outra! A Ciência é baseada na experiência, não conheço ciência nenhuma que não tenha uma verificação experimental. Aí está uma diferença [entre ciência e religião] que faz com que haja uma barreira abismal entre as duas. Outra diferença é que a Ciência é reprodutível, ou seja, nas mesmas condições faz-se uma experiência e devem-se obter os mesmos resultados. Não sei se há milagres reprodutíveis ou não?

O futuro após o fim da carreira de docente

Daqui a 4 anos vai-se jubilar do ensino e deixar a Universidade Libré de Bruxelas. Pode falar-nos um pouco dos seus projectos para o futuro?

Há uma regra na nossa universidade que eu sempre defendi: aos 65 anos termina-se a carreira. O meu caso foi discutido na universidade, e, a meu pedido, ficou decidido que eu terminarei a minha carreira de professor no dia 31 de Janeiro de 2008. E acho muito importante, mesmo enquanto director de laboratório, não ficar ali onde vai estar o meu sucessor. Portanto no dia 1 de Fevereiro de 2008 não voltarei ao laboratório que, aliás, criei. É assim que as coisas devem funcionar.
Por razões pessoais decidi acabar os meus dias em Portugal. E se os meus neurónios continuarem a funcionar tão bem como até aqui continuarei a ter uma actividade intelectual e a dedicar uma grande parte do meu tempo às questões ligadas à educação, que me interessam muito, procurando fazer uma associação da história à educação. O caso de Portugal é extraordinário: tentar compreender porque é que o país mais importante do planeta no século XV foi por "água abaixo" e só agora começa a recuperar. As coisas podem mudar se o ensino da ciência começar mais cedo e se se valorizar a função do professor primário.
Já reparei que muitos cientistas, quando vêem aproximar-se o final da vida, e após uma carreira científica interessante, tentam prolongar a sua actividade intelectual tentando interessar os jovens pela ciência. Eu acho essa uma actividade muito interessante e inclusivamente vou regularmente à Bélgica falar a escolas primárias e secundárias. E isso pode fazer-se em qualquer idade.

Entrevista conduzida por Andreia Lobo


  
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Manuel Paiva
Cientista da Agência Espacial Europeia. Professor de Física e Biofísica na Escola de Medicina da Universidade Libre de Bruxelas.
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Manuel Paiva
Cientista da Agência Espacial Europeia. Professor de Física e Biofísica na Escola de Medicina da Universidade Libre de Bruxelas.
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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