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Sistemas educacionais partidos

A América Latina tem sido, na década de 90, cenário de um conjunto de tendências sociologicamente perturbadoras. Tendências que, analisadas criticamente, derrubam boa parte das argumentações tecnocráticas do desenvolvimentismo e das interpretações lineares acerca das causas do nosso atraso.

Na América Latina, governos e organismos internacionais costumam comemorar o que, nos momentos de euforia discursiva, identificam como a revolução democrática dos anos noventa: o aumento significativo nos índices de escolarização da população entre 7 e 14 anos. Dados relativos ao acesso no ensino fundamental revelam, quando comparados ao desempenho dos anos 70 e 80, um extraordinário avanço nas oportunidades educacionais abertas aos mais pobres. A equação parece irrefutável: a universalização do direito à escola tem contribuído a tornar mais justas e democráticas as sociedades latino-americanas.
A questão, como sempre, resulta mais complexa e demanda um exame mais cuidadoso.
A América Latina tem sido, na década de 90, cenário de um conjunto de tendências sociologicamente perturbadoras. Tendências que, analisadas criticamente, derrubam boa parte das argumentações tecnocráticas do desenvolvimentismo e das interpretações lineares acerca das causas do nosso atraso. Uma dessas tendências permite colocar sob suspeita a correlação direta, nos países da região, entre acesso à escola, justiça social e democracia.
Em efeito, durante os anos noventa, ao mesmo tempo em que aumentaram os índices de escolarização, pioraram as condições de vida de boa parte da população, tornando-se mais intensa a pobreza e a exclusão que atinge às grandes maiorias, particularmente às crianças e jovens. A vulnerabilidade social se aprofundou empobrecendo ainda mais aos setores populares e incluindo nessa categoria a setores cada vez mais amplos de uma classe média em processo de extinção. Atualmente, América Latina possui mais de 220 milhões de pobres. Deles, no ano 2000, 82 milhões tinham menos de 12 anos e 35 milhões entre 13 e 20 anos. Em outras palavras, mais da metade dos pobres latino-americanos (117 milhões) são hoje crianças ou adolescentes. Pior ainda: mais da metade das crianças e adolescentes que vivem na região estão hoje por debaixo da linha da pobreza.
Sepultando definitivamente a teoria do capital humano, os latino-americanos e latino-americanas permanecem mais anos na escola, enquanto vêm piorar suas condições de vida, diminuir de forma progressiva sua anoréxica renda e limitar suas oportunidades de acesso a um mercado de trabalho que bate recordes históricos de desemprego e precariedade.
Por outro lado, na contra-mão da proclamada revolução democrática, a ?universalização? do acesso à escola, embora tenha significado uma importante conquista popular, longe está de constituir-se na consagração efetiva do direito à educação para as grandes maiorias. De tal forma, pode se observar que, na década de 90, não só não diminuíram, senão se aprofundaram dinâmicas que comprometem a conquista efetiva da educação como direito da cidadania:
Os pobres acedem à escola, mas rapidamente a abandonam ou permanecem vários anos nas séries iniciais, num perverso processo de repetição e fracasso.
Os sistemas educacionais latino-americanos intensificaram suas tendências à diferenciação e à segmentação; processos que transformam numa quimera a própria possibilidade de existência de um sistema escolar articulado e unitário. Não há sistemas nacionais de educação na América Latina. O que há são segmentos, fragmentos, estilhaços de redes institucionais reguladas pelo princípio que historicamente organizou a distribuição do direito à educação nos países da região: escolas ricas para os ricos e pobres para os pobres.
De tal forma, o que se ?democratizou? na década de noventa foi a escola dos pobres; mas, pagando o custo de tornar-se, por isso mesmo, mais pobre, com piores condições de infra-estrutura, maior número de alunos por sala de aula, péssimas condições para o exercício do trabalho docente, diminuição progressiva das remunerações dos trabalhadores e trabalhadoras da educação e intensificação dos controles burocráticos centralizados sobre os centros educativos.
As reformas neoliberais evidenciam assim seu mais perverso mandato. Todavia, começam a soprar no Sul esperançosos ventos de renovação política. Brasil e Equador são um eloqüente exemplo disto. Esperemos que estas experiências sejam a oportunidade histórica de demonstrar que, nos nossos países, o direito à escola pode ser mais do que uma insistente farsa.


  
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Pablo Gentili
Laboratório de Políticas Públicas, Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Pablo Gentili
Laboratório de Políticas Públicas, Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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