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Crianças no mundo das depressões

?um menino que desenha uma flor no meio do deserto dá logo sinal de um grande isolamento? - diz Graça Fernandes, pedopsiquiatra no Hospital Magalhães de Lemos no Porto

"A menina estava a brincar quando a mãe a chamou para almoçar.  Mas a comida era peixe e a menina ficou muito triste porque queria carne. Só que o peixe até lhe soube bem. Tão bem que a menina queria mais. Mas não havia mais peixe.? Era uma vez um menino deprimido que comunicava a sua tristeza através de uma história. Quem a conta é Graça Fernandes, pedopsiquiatra no Hospital Magalhães de Lemos no Porto. A PÁGINA foi falar com esta médica sobre depressão infantil. 

O que é que origina uma depressão infantil?
Qualquer miúdo pode fazer uma depressão porque lhe morreu um familiar chegado ou por circunstâncias que os adultos consideram banais: mudança de escola, de casa, etc. Trata-se de depressões reactivas motivadas por factores externos evidentes, isto é, são casos em que os miúdos andam bem e de repente ficam tristes. Por isso, depois do apoio prestado ? normalmente uma intervenção semanal que pode ir até três meses ? eles recuperam.
Há outro tipo de depressão ligada à alteração precoce da relação mãe-bebé. Não tem de ser uma alteração na relação actual, mas uma mãe pode ter estado deprimida aquando do nascimento do bebé e a interacção com ele ter saído afectada. São depressões  relacionadas com as figuras de vinculação. Por um lado, podem estar relacionadas com o estado emocional da mãe - se está ou não deprimida, se está ou não a investir no bebé - e, por outro, podem estar relacionadas directamente com o bebé  - se ele é ou não prematuro, se tem ou não outro tipo de patologias que o tornam "menos competente" e em que se torna mais difícil assumir o papel de mãe. Nestes casos o tratamento da criança irá fazer a diferença na sua vida, mas, de qualquer maneira, será um adulto mais vulnerável e com mais potencialidade para o desenvolvimento de psicopatologias.
Os primeiros anos de vida são fulcrais em termos de estruturação da personalidade, e quem acompanha a criança nesses anos torna-se a figura chave. Pode até ter sido uma avó - entretanto falecida -, mas que proporcionou à criança uma boa vinculação enquanto esta se organizou em termos psíquicos e de individualidade. E isso é muito importante.

Quais são os sintomas da depressão infantil?
Geralmente, a partir dos seis anos os sintomas que mais meninos trazem às consultas são o insucesso escolar e as alterações do comportamento na linha da instabilidade, da agressividade e da hiperactividade. São sintomas que, de certa forma, incomodam os outros. É claro que um hiperactivo não tem forçosamente de ser um deprimido, mas este pode manifestar o seu mal-estar através de um comportamento desse género. Isto porque a criança ainda não consegue dizer por ela própria que anda triste e desinvestida. No entanto, uma criança pode ser excessivamente sossegada, não incomodar ninguém e ser deprimida.
Os bebés deprimidos apresentam alguma inércia. Alguns podem ter um atraso nos grandes marcos do seu desenvolvimento: no sentar e na marcha, outros são muito difíceis de alimentar, chegam a sofrer de desnutrição, sem que se encontre uma causa física ou orgânica para esse quadro. Ou podem ser perfeitamente inconsoláveis e chorar sem parar. Do ponto de vista da interacção, são bebés muito "pobres". Não olham nos olhos, não se riem e atrasam-se nas vocalizações antes da fala.

Uma criança deprimida pode vir a tornar-se num adulto com essa patologia?
Quem teve uma patologia na primeira ou segunda infância e na adoloscência apresenta alguma vulnerabilidade na idade adulta. Os estudos nesta área indicam que não há um «continuum» no quadro patológico, a não ser quando [associado ao quadro depressivo infantil] haja outro tipo de doenças, como as perturbações vinculares (que são grandes alterações do humor em termos de estados depressivos e maníacos). Mas essas perturbações vinculares são muito difíceis de detectar na infância.

Que tipo de sequelas pode trazer um quadro depressivo não diagnosticado?
Se nada alertar os pais, os educadores ou os professores para o facto de a criança precisar de um apoio diferenciado, só por sorte ela não desencadeará nenhum quadro psicopatológico quando atingir a idade adulta? O mais certo é ficar com alterações de personalidade que são formas de funcionamento menos saudáveis. No que toca à reacção às adversidades, por exemplo, poderá revelar-se mais susceptível aos problemas do meio exterior (?life event?) e não conseguir adaptar-se a uma nova realidade.
Além disso, um quadro depressivo numa criança tem consequências ao nível do aproveitamento escolar. Entre os seis e os dez anos o sucesso na escola é imperioso. Um miúdo que não consegue ser bem sucedido na escola sofre não só em relação aos adultos, mas também em relação a ele próprio, já que nesta fase os miúdos vêem-se em função daquilo que conseguem fazer. Se não conseguirem fazer uma coisa que todos esperam que ele faça, inclusive ele próprio, como aprender a ler e a escrever, a auto-estima e a auto-confiança dessa criança vai ser muito afectada. E como numa primeira fase ninguém notou que o menino não aprendia porque estava triste, numa segunda fase ele vai achar que é mesmo incapaz. É obvio que nessa segunda fase ele vai ter mesmo menos competência do que os outros. Provavelmente, o psicólogo faz-lhe um teste e descobre que o menino tem um QI (Coeficiente de Inteligência) mais baixo. Não que ele tivesse desde o início menos competência, mas porque na tal primeira fase estava com menos atenção, trabalhava menos em casa e tinha menos vontade de aprender.

De que modo as crianças lhe comunicam o seu estado emocional?
Os meninos com três e quatro anos já conseguem dizer alguma coisa através do jogo, os mais velhos através do desenho ou da história em episódios. Esta técnica consiste em pedir que contem uma história sobre uma menina. E como habitualmente a história é muito projectiva, no caso dos meninos deprimidos ela nunca acaba bem? Por vezes pode indiciar sinais de grande avidez, de insaciedade, que depois se manifesta em termos alimentares. «Como a história da menina que estava a brincar quando a mãe a chamou para almoçar. Mas a comida era peixe e a menina ficou muito triste». É o primeiro sinal de decepção. «A menina ficou triste porque queria carne». «Só que o peixe até lhe soube bem». «Tão bem que a menina queria mais». Um sinal de insaciedade. «Mas não havia mais peixe». Nova decepção.
No que diz respeito aos desenhos, um menino de sete anos que desenha uma flor no meio do deserto dá logo sinal de um grande isolamento e de uma grande tristeza. Outro menino que desenha uma bola e lhe dá um pontapé que a fura, normalmente relaciona-se com a temática do esvaziamento.
São estas técnicas, associadas à observação da criança e tendo em conta o quadro clínico e o que os pais nos contam, que nos permitem reiterar o diagnóstico.

O que acontece depois de feito o diagnóstico?
No caso de a criança sofrer efectivamente de uma depressão é caso para entrar num tratamento de psicoterapia. Além deste tratamento, as crianças são também medicadas - não para o quadro em si, mas para os sintomas de mal-estar e de desadaptação ao meio como as fobias e as perturbações de sono, etc. Depois pedimos aos pais para voltarem daí por seis meses ou um ano. O problema é que como fazemos cada vez mais primeiras consultas, ficamos sem agenda para dar resposta às segundas consultas. A solução passa inevitavelmente por recorrermos a profissionais externos à instituição.
A psicoterapia funciona no hospital [Magalhães de Lemos], onde existem grupos terapêuticos semanais baseados no jogo ou na pintura. Os pais têm reuniões quinzenais.
Apesar de a avaliação do estado da criança ser feita aqui [no consultório da pedopsiquiatra] e de poder observá-la mensalmente, posso pedir o apoio de uma psicóloga exterior à instituição para a acompanhar uma vez por semana. E até há bem pouco tempo a segurança social comparticipava estes tratamentos na totalidade... Porque ter uma depressão não é uma coisa leve, requer um investimento muito grande no tratamento! Por vezes, os miúdos chegam a precisar de vir aqui [ao hospital] uma vez por semana durante dois anos... 

Que tipo de relação estabelece com os meninos que observa? 
Tem de ser uma relação afectiva. Mas também temos de criar alguma distância para que certo tipo de situações não nos perturbem. É claro que há sempre um ou outro miúdo que levo no pensamento. Ainda há bem pouco tempo tive uma consulta em que tive de fazer um esforço muito grande para não chorar? Não sou lamechas, mas há situações complicadas.
Noto cada vez mais, talvez por estar a lidar com crianças de certa forma mal tratadas pelo meio, quer em termos sociais quer parentais, que tenho tendência a posicionar-me do lado da criança. Geralmente, quando falamos com duas partes projectamo-nos mais numa do que noutra. Veja-se o caso de pedofilia [na Casa Pia, de Lisboa]: ganhou estes contornos porque as pessoas se projectaram nas vítimas. O que me leva a ter cada vez mais cuidado e a ganhar alguma distância. Porque, apesar do envolvimento, temos de ter sempre a consciência de que não "levamos" estas crianças para casa. Logo, elas vão ficar tanto melhor quanto mais adequadas ficarem aos pais. E estes vão ficar tanto mais adequados quanto mais se sentirem de alguma forma aptos e investidos por nós. Se investimos muito na criança e pouco nos pais, pode acontecer que os pais não a tragam à próxima consulta. E ela não vem por si própria...

Entrevista conduzida por Andreia Lobo


  
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Graça Fernandes
Directora do núcleo de Lisboa do Centro de Formação Instituto Irene Lisboa
Graça Fernandes
Directora do núcleo de Lisboa do Centro de Formação Instituto Irene Lisboa

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