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Isabel Barca (Universidade do Minho) em entrevista à PÀGINA - "A História é o estudo da vida"

?É saudável manter a nosssa identidade nacional? - reconhece Isabel Barca, doutorada em Ensino da História pela Universidade de Londres

"Os historiadores não trabalham apenas uma perspectiva, de contrário estariam a ser parciais e subjectivos. O verdadeiro historiador tem em conta fontes e pontos de vista diversos."

"Hoje em dia, qualquer indivíduo numa sociedade aberta e plural como a que vivemos, precisa de saber fazer escolhas, ou seja, ser capaz de seleccionar e organizar informação."

Isabel Barca, com doutoramento em Ensino de História (History in Education) pela Universidade de Londres, mestrado em Ensino de Ciências Sociais pela Universidade de Boston e licenciatura em História pela Universidade do Porto, é Coordenadora da área científica de Metodologia do Ensino da História e Ciências Sociais, na Universidade do Minho, onde também coordena o Mestrado em Supervisão Pedagógica em Ensino da História.  Desenvolve actividades de docência e de investigação no campo da cognição histórica, com diversos projectos e estudos nesse âmbito, designadamente em torno das concepções de professores e alunos em História e do desenvolvimento de competências na educação histórica. Presentemente, é também Presidente da Associação de Professores de História. Tendo como pano de fundo a publicação do livro "Perspectivas em Educação Histórica", esta entrevista foi uma oportunidade para falar do ensino da História em Portugal, do papel da História na construção da cidadania e de uma nova abordagem no ensino desta disciplina: a educação histórica.

A História é muitas vezes encarada pelos alunos como um desfilar de reis e de rainhas e de uma enumeração de acontecimentos históricos que nem sempre os atrai para a disciplina. Concorda?
Será talvez esse entendimento um dos problemas para o reforço da educação histórica no curriculo. Hoje observamos ao nível europeu algum esquecimento da História quando se fala nas disciplinas mais importantes. Isso é visível nos exames no final da escolaridade obrigatória, que englobam a língua materna - em alguns países também uma língua estrangeira -, a matemática e as ciências, mas esquece-se a História.

Que razões encontra para essa situação?
Talvez porque para alguns a História continua a resumir-se ao conhecimento de um passado imutável, transmitido aos alunos através dos manuais e do discurso do professor. No entanto, se queremos que a educação, e neste caso a História, seja um factor de desenvolvimento na formação dos alunos, não faz muito sentido que ela seja entendida como uma informação que o aluno deve apreender e regorgitar nos testes escritos, acabando daí a um tempo por esquecer o que supostamente aprendeu.
Há uma outra proposta, no entanto, - sobre a qual eu própria e dois outros colegas trabalhamos -  que aborda a disciplina através do conceito de educação histórica, ou seja, através da aquisição de competências de análise, de crítica, de argumentação, a par com a aquisição de informação (ver caixa). Uma metodologia que seja, de facto, uma forma de compreender melhor o mundo, não apenas numa perspectiva sincrónica, mas diacrónica, multi-perspectivada, que seja mais do que o simples regorgitar do passado. É esse aspecto que importa considerar na História.

Tentando dar um sentido prático à História e não reduzi-la a uma perspectiva meramente académica...
Num certo sentido, já que pode manter-se esse aspecto académico mas trabalhá-lo de uma forma mais sofisticada. Os historiadores não trabalham apenas uma perspectiva, de contrário estariam a ser parciais e subjectivos. O verdadeiro historiador tem em conta fontes e pontos de vista diversos. É isso que nós propomos: trabalhar a componente académica de uma forma multi-perspectivada, de modo que os próprios alunos percebam que é mais prática, porque mais próxima da vida. Porque, para todos os efeitos, a História é o estudo da vida.

Não considera o programa de História dado até ao 9º de certa forma redutor, tendo em conta que deixa aspectos importantes do processo histórico para o programa do ensino secundário?
O actual conjunto de conteúdos constantes no programa de História da escolaridade básica provêm do final dos anos 80. É um programa, na minha opinião e segundo muitos professores que têm trabalhado com ele, talvez demasiado extenso. Mas não houve ainda nenhum trabalho que propusesse alterações nessa área. Seria uma segunda etapa, no caso de se ter prosseguido com a reorganização curricular.
Mais recentemente, tem-se procurado olhar para os conteúdos do ensino básico - tanto no caso da História como das restantes disciplinas -, como um instrumento de trabalho das competências dos alunos. Competências que não se limitam à compreensão - no caso da História, a compreensão do passado - como à utilização de fontes diversas, por vezes contraditórias.

Há uns anos havia escassez de profissionais de ensino na História. Continuam a faltar professores de História em Portugal?
Nesse capítulo assiste-se a uma situação paradoxal. Ao nível do 3º ciclo e do ensino secundário há professores de História no desemprego e este ano tudo indica que a situação se tenha agravado. Com a proposta de reorganização curricular ainda houve a esperança de minorar o problema, mas o adiamento deixou tudo na mesma. Entretanto, o problema começa a estender-se ao 2º ciclo.
A explicação reside no facto de embora as universidades poderem formar profissionais para o 2º ciclo, habitualmente direccionam o estágio para o 3º ciclo e secundário. Isto, porque os alunos preferem realizar o estágio no ensino secundário, já que no 2º e 3º ciclos teriam de fazer também estágio em Português. E a maioria não está disposta a isso porque não reúne as competências para tal.
Por outro lado, não tem havido oferta de variantes para o 2º ciclo por parte de outras instituições de ensino. Os que têm apenas uma licenciatura em História, sem qualquer formação na variante de ensino, ficam a trabalhar nas escolas do 2º ciclo. Porém, e aqui reside o paradoxo, aqueles que têm um diploma vocacionado para o ensino secundário não podem concorrer a essas vagas por excesso de habilitação ou por ser diferente da exigida.

Ou seja, o problema não está na falta de procura, mas no condicionamento das saídas...
A questão é essa. Se os candidatos pudessem dar aulas no 2º ciclo, porque fizeram estágio no 3º ciclo, não apenas no secundário, haveria concerteza muitos menos problemas de desemprego, senão o pleno emprego.

História e Cidadania 

De que forma é encarado o ensino da História nos restantes países europeus? Há diferenças significativas?
Sim. Desconheço a realidade de todos os países da União Europeia, mas no caso que conheço mais de perto, a Inglaterra - e a Irlanda de certo modo segue o mesmo caminho -, houve um trabalho pioneiro nesta nova forma de trabalhar a História.
Assim, partindo dos ideais românticos das décadas de 60 e 70, em que se procurava promover um ensino activo, explorou-se mais profundamente quais os processos que os alunos desenvolvem na aprendizagem dos conteúdos hsitóricos e qual a origem das ideias e conceitos que trazem com eles. A partir dessa investigação tem-se percebido que os alunos chegam às escolas com um determinado conceito sobre a sociedade e esse é que passam a ser o ponto de partida para eles perceberem a sociedade do passado.

Uma compreensão crítica da história...
Sim. Estas novas ideias que põem a enfâse na cognição (que em Inglaterra não são tão novas como isso), foram iniciadas no final dos anos setenta e passaram a integrar o curriculo no início dos anos 90. Neste país, a educação histórica é iniciada logo no 1º ciclo e os alunos trabalham-na como disciplina obrigatória até aos 14 anos, utilizando os conteúdos como forma de compreensão das diversas interpretações históricas e do papel desempenhado pelas diferentes fontes. Neste trabalho, são eles próprios  que cruzam as fontes e retiram conclusões, percebendo que, afinal, não existe um retrato único do passado.
Na Irlanda começa a haver algum trabalho nesse sentido, bem como na Finlândia e nos restantes países nórdicos. Nos países mediterrânicos e em França esta perspectiva ainda está a dar os primeiros passos.

Que papel pode ter hoje a História na construção de uma cidadania mais activa e esclarecida?
Depende da maneira de como encaramos a aprendizagem da História. Se a trabalharmos na mera perspectiva de reprodução da informação, ela poderá, quanto muito - para aqueles que defendem uma identidade local, nacional ou planetária mais ou menos imutável, mesmo que bem intencionada e progressista - dar uma noção dos diferentes tipos de democracia que se foram construindo ao longo dos tempos e compreender que, face a essa evolução, existem hoje diversas sociedades onde os valores democráticos não são respeitados. Essa noção tácita das diferenças pode dar aos alunos a possibilidade de, eventualmente, construirem um valores de tolerância e de participação para que esse melhores valores se desenvolvam na sociedade onde eles se integram.
No entanto, na perspectiva da educação histórica que temos vindo a defender, incluem-se outro tipo de competências que são fundamentais para a construção de uma cidadania esclarecida: a selecção e a organização da informação. Hoje em dia, qualquer indivíduo - já nem falo no cidadão -, numa sociedade aberta e plural como a que vivemos, precisa de saber fazer escolhas, ou seja, ser capaz de seleccionar e organizar informação. E é aqui que esta perspectiva de educação histórica assume um papel fundamental.

Não fará sentido alargar a compreensão da história a uma dimensão mais internacional, mesmo na escolaridade básica?
Com certeza. Daí ser muito importante atender-se à selecção de conteúdos. A serem trabalhados na escola, nomeadamente na escolaridade básica, deveria sempre apostar-se nos três tipos de abrangência: as questões da história local - não podemos eclipsar a nossa identidade mais imediata com questões de âmbito mais global -, da história nacional e da história planetária.

Isso entra de certa forma em contradição com o programa da escolaridade básica, centrado na história nacional...
Se de facto ele fosse centrado na história portuguesa poderíamos encarar isso como um perigo, mas não é bem assim. Estou neste momento a finalizar um artigo para a revista da Associação Europeia de Professores de História onde faço precisamente a análise dos conteúdos do programa da História de Portugal e, na minha opinião, apesar de previligiar-se a história e geografia de Portugal no contexto da história portuguesa a nível do 2º ciclo, no 3º ciclo existe a preocupação de dar uma tónica mais global.
Fez-se um grande esforço na proposta de selecção de conteúdos, que é sempre alvo de questões entre os professores e os especialistas, havendo sempre aqueles que defendem uma perspectiva histórica mais conservadora e desligada de um contexto alargado. Felizmente, os organizadores dos curriculos têm resistido a essa pressão e têm colocado os conteúdos históricos ligados à História de Portugal num contexto europeu. E quando avançam para o nível planetário, nomeadamente quando se aborda a expansão das economias mundiais, essa perspectiva é fundamentalmente europeia. Ou seja, concordaria se me dissesse que a História no 3º ciclo é talvez um pouco eurocêntrica. Aí ainda é necessário dar uma "volta".
Depois do documento que saiu sobre as competências, que já reflecte esta preocupação de ensinar a História no sentido do desenvolvimento das competências de selecção e organização da informação - está previsto, se os professores o quiserem fazer -, o trabalho de selecção de conteúdos constituiria uma segunda etapa. Mas, dada a actual situação política do país, não sei como é que esse trabalho, a ser continuado, será feito: se nesta perspectiva ou se numa tendência mais paroquial.

Por outro lado, e tendo em conta que a UE caminha quase inevitavelmente para um sistema federal, será que o ensino da História não será uma maneira de manter viva a identidade nacional de cada país?
Há aspectos da nossa identidade nacional e local que devem ser saudavelmente mantidos. Porque podemos trabalhar a identidade num sentido inclusivo, respeitando-nos a nós próprios e aos outros, ou num sentido exclusivo, respeitando-nos a nós próprios contra os outros.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

Outra História 

Para Isabel Barca, autora de  "Perspectivas em Educação Histórica", há uma nova abordagem do ensino da História, particularmente acolhida na Universidade do Minho, escola que foi pioneira em Portugal  no apoio a esta área de exploração científica.
?Os objectivos desta nova abordagem do ensino da História passam por apresentar fundamentos científicos - porque provêm de uma investigação empírica e sistemática -, para uma abordagem crítica de competências analíticas e argumentativas, não descurando a importância da apreensão de factos essenciais?, diz Isabel Barca.
Quanto ao objecto ? prossegue ? ele poderá ser designado como cognição histórica (mais precisamente por cognição histórica situada) e debruça-se sobre as ideias que os jovens, inclusivamente os professores (e um dia, eventualmente, os historiadores) desenvolvem em torno da História. Que ideias têm, de onde provêm e quais as fontes de conhecimento histórico que influenciam a sua percepção - que nas crianças, e não só, são muito influenciadas pela televisão, pela família, pela comunicação social e por outras fontes de informação. Em resumo, são as origens do conhecimento histórico e a forma como ele se constrói o objecto previligiado desta área?.
Isabel Barca reconhece que se procura, com estas inovações, que os alunos gostem mais de História. ?É importante que, antes de começarem a apresentar a matéria, os professores dispendam algum tempo com os alunos e procurem compreender o que eles já sabem, ir ouvindo o que os alunos têm a dizer, fazendo com que eles ganhem auto-estima e percebam que as suas ideias são importantes, ganhando estímulo para trabalhar e ir mais longe nesta disciplina. Será mais gratificante tanto para o aluno como para o professor?
A história assim ?ensinada? pode contribuir para uma sociedade mais crítica, que não se limite às escolhas óbvias e saiba pensar e argumentar - o que não quer necessariamente dizer que tenhamos de tomar as mesmas opções. Esta é também uma forma de trabalhar para uma educação para a paz para a tolerância.


  
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Isabel Barca
Univ. do Minho
Isabel Barca
Univ. do Minho

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