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A televisão

Podemos falar sobre televisão a partir de vários aspectos: como indústria cultural, da qual partem os produtos a serem consumidos pela população; os efeitos dos seus produtos e da sua economia de produção; da sua inserção do processo de comunicação, da sua linguagem, enfim, podemos ter vários enfoques. Porém, neste momento, interessa-me falar dela como um nó. É isto mesmo! Um nó que amarra os vários fios que vão e que vêm das inúmeras redes que se tecem à sua volta.

Como a televisão apareceu pela primeira vez na minha vida.

Minha experiência com a televisão começou em meados dos anos sessenta, no bairro de Inhaúma, subúrbio do Rio de Janeiro. Naquela época, ver televisão, pelo menos nos bairros pobres, era uma experiência comunitária.
Nos reuníamos na casa de Dona Neuza, uma das poucas a possuir um aparelho de televisão num raio de mais de um quilômetro.
A chegada do tal aparelho em si já foi um acontecimento em nossa rua. Na minha memória, sempre associo este fato, a cerimônia da chegada da tevê, a duas experiências religiosas: primeiro ao dia de São Cosme e São Damião(1), que se comemora no dia 27 de setembro, talvez pela agitação das muitas crianças correndo, algumas donas-de-casa no portão e uma conversa por cima do muro das casas; a segunda lembrança é das novenas do nordeste: um ajuntamento basicamente constituído de mulheres e crianças acompanhando um "andor" e indo de casa em casa em orações intermináveis.
Naquele contexto, o andor era a grande caixa com a tevê, e a correria das crianças não era por doces. Todos queriam ver de perto e cercavam o caminhão de entregas. O grupo de "beatas" que pareciam em romaria a ir rezar numa determinada casa onde a "imagem" ficaria guardada até a próxima saída. Só era diferente o "clima", que naquela ocasião era só de alegria e curiosidade.
Tudo que cercava o assunto da televisão era muito importante, e às vezes até pairava um ar cerimonioso, como, por exemplo, no dia da instalação da tevê. Sim, porque primeiro ela era entregue, depois é que vinha um "técnico", pois o atrevimento de simplesmente ligá-la na tomada, poderia custar caro. Um erro fatal.
Ninguém pestanejava vendo o homem que, como um mágico, tentava fazer aparecer a imagem entre os chuviscos e os chiados do som. Depois, suas recomendações eram ouvidas atentamente, pois que ali estavam sendo passadas instruções extremamente importantes de como manejar com aquele engenho: primeiro o liga-desliga, depois os botões do vertical e do horizontal, "- E muito cuidado com relâmpagos e com entrada de luz. Para uma melhor imagem, é preciso que o ambiente esteja o mais escuro possível.", sentenciava aquele que, para mim, era a encarnação de um "cientista".

Ver a televisão ser instalada creio que foi o primeiro programa a que assisti.

Na maioria das sessões, éramos umas vinte crianças da rua, a maioria com poeira nos pés, dos piques-bandeira, ou de outras "viagens", já que nem sempre dava tempo para ir em casa tomar banho e chegar no horário de conseguir um bom lugar.
O ritual de ligar a televisão também me encantava. Antes da aparição da imagem/som, era preciso fazer aparecer o tubo de imagem, que ia surgindo de dentro de uma "fortaleza". Ela ficava na sala, mas não às claras como hoje, na maioria das casas. Além disso, principalmente de pessoas mais simples como aquelas da minha infância, é a tevê que, ainda hoje, orienta a arrumação dos outros móveis e talvez os trânsitos e alguns horários.
Naquela época, tampouco a televisão reinava absoluta, já que quem tomava muito "espaço" (e tempo) ainda era um grande toca-disco que, se não me falha a memória, tinha a marca "Rei da Voz".
Ela - a tevê - era daquelas que ficavam disfarçadas dentro de um móvel de madeira. Toda sessão era um ritual. Abriam-se as duas portas do móvel e... aparecia ela, solene: a caixa mágica.
Na minha memória, o encontro das pessoas para assistirem tevê é muito mais forte do que os programas ou os canais. Forte também era a vontade, minha e de outros meninos pobres, de possuir uma aparelho daqueles. Este foi talvez o meu primeiro grande sonho. Alguns outros com certeza viriam de dentro da telinha.

1 O dia de Cosme-Damião, como é conhecido no Brasil é uma festa que tem origem na religiosidade afro-brasileira, onde devotos distribuem doces, brinquedos e até roupas às crianças, pagando promessas por alguma graça alcançada. Nestes dias, principalmente as ruas do subúrbio do Rio de Janeiro ficam movimentadas de crianças que correm em busca dos presentes.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 113
Ano 11, Junho 2002

Autoria:

Valter Filé
Univ. do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Valter Filé
Univ. do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil

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