Liliane era uma professora brasileira que fazia da prática um instrumento de
reflexão...
O presente texto fala de utopias, resistências e margens de possibilidades para
a escola e a educação das classes populares. A da narrativa de Liliane, nos
abre outras perspectivas para o pensar/praticar a profissão docente - a partir
de sua experiência, ela nos mostra que uma escola comprometida com a
emancipação das classes populares é uma utopia possível de ser
construída/re-construída cotidianamente.
Liliane, professora-alfabetizadora, iniciou sua carreira no magistério em
escolas multisseriadas na zona rural do Estado do Rio de Janeiro. Como
professora de escola isolada, abandonada e esquecida pelas políticas de
formação e qualificação, Liliane vai ao longo de sua carreira construindo um saber
praticado - rede de saberes tecida na multiplicidade de sua experiência
cotidiana.A narrativa de Liliane nos fala das astúcias que foi desenvolvendo
para sobreviver num contexto institucional para o qual não foi preparada para
lidar.
"Sozinha naquela escola de roça, sem ter com quem trocar, fui desenvolvendo
minha capacidade de observação e aprendi a considerar minhas intuições. Hoje
sei que muito de nossos saberes como professoras vêm de nossas intuições,
embora naquela época não tivesse tal clareza. "
Seguir suas intuições, foi o caminho que Liliane encontrou para responder aos
desafios do cotidiano. As astúcias não têm espaço próprio, atravessam a vida
cotidiana e se materializam nas artes de fazer que dão forma à
experiência concreta. As astúcias como artes de fazer, traduzem uma
maneira singular de apreender-aplicar-subverter-transformar o conhecimento
instituído num modo-movimento instituinte de outras formas de ser e fazer.
Tomando a experiência cotidiana como referência, Liliane faz da prática um
instrumento de reflexão, de aprendizagem e de construção de um pensamento
prático. No exercício cotidiano de sua prática ela ensina as letras e aprende a
conhecer a terra, esse saber que vem da terra, do cotidiano de vida e de
trabalho da comunidade.
Para aquela comunidade o saber vinha da terra, um saber conquistado na labuta
diária. As letras misturavam-se à terra na luta cotidiana pela sobrevivência.
Foi uma experiência muito feliz para mim. Ensinava letras e aprendia com meus
alunos e seus pais a conhecer a terra, essa terra que nos nutre e sustenta
nossos passos nesse caminhar da vida.
A experiência vivida e compartilhada com a comunidade possibilitou a Liliane
construir uma outra significação para a profissão e a ampliar sua consciência
profissional. É na perspectiva do conhecimento-emancipação, que se inscreve a
narrativa de Liliane. Na vida cotidiana circula uma pluralidade de
significações, interesses e valores, que engendra ações alternativas, no caso
de Liliane tais ações refletem uma construção compartilhada de uma forma
afirmativa de emancipação, forma que ela confere à sua prática docente naquela
comunidade.
O compromisso de Liliane com a comunidade está fortemente imbricado em seu
projeto de vida. A partir de sua prática docente ela vai construindo
cotidianamente uma outra relação com seus alunos e suas famílias - relações de
co-responsabilidade, onde cada um torna-se responsável pelo outro e todos
coletivamente se responsabilizam pelo futuro.
Ao nortear sua prática pelo princípio da responsabilidade compartilhada,
Liliane constrói uma outra significação para sua ação: a educação para aquela
comunidade é um projeto comum que envolve participação, cumplicidade,
solidariedade. Ela faz da prática cotidiana um espaço de liberdade, espaço de
criação e conquista de uma outra forma de ser e fazer, espaço de reinvenção da
comunidade e de reconstrução cotidiana da escola.
A experiência de Liliane situa-se na perspectiva das acções rebeldes -
práticas afirmativas de um conhecimento-emancipação em construção, que
revelam uma transformação já em curso.
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