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Poesia

A professora mandara-lhes tirar os cadernos das pastas. Na fila da frente, a pequena Helena, sempre aluna exemplar, obedeceu imediatamente. Tirou da pasta um caderno novo em folha com capas cor de tijolo que colocou sobre a carteira. Helena não era nem gorda nem magra; parecia-se com o que uma criança obediente deve parecer, uma criança que ingere refeições substanciais sem um queixume. O cabelo era cuidadosamente penteado em tranças, nem os caracóis mais rebeldes escapavam à disciplina. Nas pernas, as meias estavam devidamente esticadas e direitas. Os sapatos sempre limpos. Um só olhar bastava para perceber que esta criança nunca metia deliberadamente os pés nas poças à ida para casa; não, ela não.
A professora pôs um ponto final, depois de ter escrito a última palavra no quadro, e começou a explicar às crianças o significado de poesia. Era simplesmente uma questão de terminação de palavras; se descobrissem que os finais eram os mesmos, compreenderiam o que era poesia. A professora deu exemplos - dia-Maria, chuva-luva, mesa-tesa. Seguidamente, as crianças teriam de adivinhar a poesia de palavras dadas pela professora. Helena, aluna exemplar, primava pela aplicação. Quando a professora proferiu "pés", respondeu cafés. Os olhos azuis brilhavam-lhe de prazer pela lição ir só a meio e já ter aprendido algo de novo. Houve porém uma certa confusão, causada pelo pequeno Guilherme. Em resposta ao "nevoeiro" da professora, em vez de seguir as regras e dizer qualquer coisa como "chuveiro", gritou "trompete". Todos ficaram surpreendidos, e a professora admoestou-o, mas o pequeno Guilherme mantinha-se irremovível. E muito sério continuou a repetir "trompete", tantas vezes quantas lhe apeteceu. Tinha um ar muito cómico ao dizer isto, porque o cabelo parecia uma escova, de tão espetado.
Depois, a professora disse: "Agora, meus meninos, já sabem o que é poesia. Escrevi no quadro um pequeno poema de um grande poeta. Copiem-no com cuidado nos cadernos e, quando chegarem a casa, aprendam-no de cor."
Helena começou a tarefa imediatamente. Com o aparo novo a arranhar o papel, escreveu no imaculado caderno e em letra certíssima: A asa do vento agitou-se e quedou-se em seguida Enchendo as árvores e os montes de vida Eu caminhava ao sabor da asa do vento Sentei-me quando suspendeu o movimento Acabada a lição, as crianças saíram. Helena, evitando meticulosamente as poças de água, foi direita a casa. Deu um beijo à mãe e ao pai, comeu a sopa, o bife e o doce e descansou uma hora. Depois, começou a fazer os trabalhos de casa. Tirou o caderno e abriu-o. Havia dois poemas. Um que copiara do quadro, "A asa do vento agitou-se e quedou-se em seguida", e o outro que fora impresso em letras grandes pela Empresa de Papelaria do Estado:


Por semana, toma um banho uma vez
Para não cheirar mal de um mês


Qual seria para decorar? Pobre Helena, por mais que se esforçasse, não conseguiu lembrar-se. Ambos eram bons poemas, sobre isso não havia dúvidas. "Seguida" e "vida" num, e "vez" e "mês" no outro.
Por fim, visto ser uma criança metódica a quem fora ensinado o trabalho sistemático da esquerda para a direita, aprendeu "Por semana, toma um banho" e foi dar um passeio com a mãe.
No dia seguinte, na escola, a professora pediu-lhe para recitar o poema. Fê-lo com sentimento, mas, para sua surpresa e desgosto, pela primeira vez na vida não teve nota. O resto da lição foi monótono, com excepção de um pequeno incidente com Guilherme, que não aprendera nada.
Ninguém notou que este foi um dia decisivo na vida de Helena. O seu carácter sofreu uma profunda transformação. Ao ir para casa, reparou num anúncio duma montra: "Poupe trabalho com macarrão - compre-o já preparado pelo João". "Macarrão-João", repetiu para si mesma, contente enquanto metia os pés nas poças.
Ao chegar a casa, tirou todos os cadernos da pasta e examinou-os com cuidado. Descobriu um slogan em todos eles, embora alguns não rimassem. Num, por exemplo, viu uma simples ordem: "Mantém-no limpo". Lembrando-se dos ensinamentos da sua professora, juntou com letra infantil: - Come corinto". À noite estava com febre muito alta.
Como mudara! Nunca mais comeu obedientemente o que lhe apresentavam. Exigia conforme os apetites, um dia molho tártaro, outro vol-au-vent, outro gulash húngaro, e nunca ficava satisfeita. Viver com ela tornou-se difícil. Saía todos os dias, atirando com a porta para ir a um restaurante. Em vez de se deitar cedo, lia ate à meia-noite ou "Contos de Andersen" ou "Histórias Polacas do Tio João". Quando tinham visitas, em vez de dar os bons dias com delicadeza, saudava-os com:

Aqui não se fia a ninguém
Crédito é coisa que Deus tem
Mataram-no as dúvidas que tinha
Paz à sua alma que não a minha

Helena decidiu ser poeta.
Tinha um caderno especial para os seus versos.

Ir com os outros do P. M. A.
É a única maneira que há
Herói que é herói não debanda
Só para a frente é que anda
Vinde apanhar o lixo, tinhosos
Que vos há-de tornar famosos

E muitos, muitos outros.

Na escola habituaram-se à sua nova maneira de ser. Mas continuou a haver incidentes com o pequeno Guilherme. Nunca aprendia nada.


Mrozeck; O elefante, editorial estampa, nº 2, livro-B

  
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Edição:

N.º 113
Ano 11, Junho 2002

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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