Ensino da música em Portugal não corresponde às expectativas de alunos e professores
A aprendizagem das artes do palco tem conhecido um crescimento
sem precedentes no país. Reflexo disso é o número de cursos artísticos e de
escolas de dança, teatro e música que, nos últimos dez anos, não tem parado
de proliferar, sendo um sector que está hoje muito perto de atingir o pleno.
O ensino da música não foge à regra, mas está longe de atingir a maturidade,
debatendo-se com problemas que estrangulam o seu desenvolvimento e nos colocam
na cauda da europa no que respeita à formação musical. É que apesar de o país
possuir uma razoável oferta em termos de especialização profissional, não investe
ainda o suficiente na formação musical de carácter geral dos cidadãos, função
que, apesar de competir à escola, é na prática remetida para o ensino privado.
De acordo com a recente reorganização curricular do Ensino Básico, a formação
musical deveria ter início no 1º ciclo e prolongar-se pelos restantes níveis
de ensino da escolaridade obrigatória, conferindo ao aluno um conjunto de conhecimentos
que, de acordo com as orientações expressas naquele documento, iria bem para
além da capacidade de interpretar um conjunto de notas musicais, saber escrever
uma pauta ou tocar um instrumento.
Assim, de acordo com a listagem de competências essenciais de literacia musical
previstas no Curriculo Nacional do Ensino Básico, no capítulo de Interpretação
e Comunicação, o aluno deveria ser capaz de, no final do 9º ano, "cantar sozinho,
ou em grupo, com precisão técnico-artística, peças de diferentes géneros, estilos
e tipologias musicais; tocar sozinho ou em grupo pelo menos um instrumento musical
utilizando técnicas instrumentais e interpretativas diferenciadas de acordo
com a tipologia musical; preparar e dirigir pequenas peças e/ou espectáculos
musicais de âmbitos diferenciados; participar, como interpréte, autor e produtor
em recitais e concertos com diferentes pressupostos comunicacionais e estéticos
e para públicos diferenciados; investigar e avaliar diferentes tipos de interpretações
utilizando vocabulário apropriado.
Mais: no capítulo da Criação e Experimentação, o aluno deveria saber "compôr,
arranjar e apresentar publicamente peças musicais com níveis de complexidade
diferentes, utilizando técnicas vocais e instrumentais e tecnologias diversificadas;
improvisar melodias, variações e acompanhamentos utilizando diferentes vozes
e instrumentos; manipular os sons através de diferentes tecnologias acústicas
e electrónicas; gravar as suas criações e improvisações musicais; e investigar
processos de criação musical tendo em conta pressupostos, técnicas, estilos,
temáticas comunicacionais e estéticas diferenciadas".
Uma lista de objectivos ambiciosa, mas - como mais à frente se verá -, completamente
desajustada da realidade, já que o ensino não especializado da música se encontra
reduzido à boa vontade de cada professor no 1º ciclo, possui uma oferta diminuta
no 3º e pura e simplesmente não existe no curriculo do ensino secundário. O
único momento de aprendizagem musical efectivamente proporcionado pela escola
resume-se, na prática, aos dois anos de Educação Musical do 2º ciclo do Ensino
Básico. Mas mesmo estes acabam por saber a pouco: a reduzida oferta formativa
posta à disposição dos alunos - nomeadamente no que se refere à variedade de
instrumentos musicais -, a escassez de recursos educativos e a inexistência
de uma sequencialidade da aprendizagem acaba por provocar o desinteresse da
maioria. Para aqueles que querem aprender mais, a alternativa passa necessariamente
pela especialização numa escola de ensino artístico vocacional ou por uma formação
exterior ao sistema de ensino regular, que não fica propriamente barata...
Falta de oferta no ensino geral
Foi o que aconteceu com Gil Ferreira, hoje com 20 anos, aluno
de guitarra da Escola de Jazz do Porto, que confessa ter ficado com uma impressão
"muito negativa" das aulas de Educação Musical. Isto, explica, porque a pedagogia
de ensino era questionável e a oferta instrumental escassa. "O instrumental
Orphe (intrumentos de lâminas) acaba por ser o mais acessível para o início
de uma aprendizagem e financeiramente mais conveniente para o Ministério da
Educação, mas acho que era uma excelente ideia passar para uma Educação Musical
mais "auditiva" e introduzir instrumentos vocacionados para o rock ou o jazz,
como a bateria, a guitarra ou o saxofone", diz aquele estudante.
A introdução desta oferta poderia fazer sentido se os alunos pudessem ter uma
formação de base consistente e prosseguir o estudo de um instrumento no 3º ciclo.
Mas neste nível de ensino a disciplina é facultativa e são constituídas turmas
apenas quando o número de candidatos o justifica, razão pela qual a Educação
Musical passa habitualmente ao lado da maior parte dos estudantes. Com as recentes
alterações ao curriculo do ensino básico, segundo o qual a segunda língua estrangeira
passa a ser obrigatória, a escolha fica reduzida à Educação Tecnológica e a
outra disciplina da área artística (Educação Musical, Expressão Dramática ou
Dança), permitindo pensar que, em princípio, a música possa começar a ser mais
procurada.
"O que se verificava na minha escola era que os miúdos com maiores capacidades
escolhiam o Francês, os miúdos com mais dificuldades optavam pela Educação Tecnológica,
mas raros eram os que escolhiam Educação Musical", explica Antónia Castro, professora
de Educação Musical na Escola Básica 2,3 de Paranhos, actualmente destacada
pela Direcção Regional de Educação do Norte para o Departamento Educativo da
Casa da Música do Porto, instituição que, apesar de não ter ainda o edifício
sede concluído, desenvolve já projectos de formação e divulgação da música junto
dos estabelecimentos de ensino da região.
Mais grave, segundo esta professora, é a falta de articulação entre o ensino
regular e o vocacional, já que este último se encontra adestrito à Direcção
Geral do Ensino Secundário, mais concretamente ao Núcleo de Ensino Artístico,
mas inicia-se no 2º ciclo do ensino básico. E o NEA, de acordo com Antónia Castro,
"não tem contacto" com o Departamento do Ensino Básico. Uma das situações denunciadas
pela Associação Profissional do Ensino da Música, da qual faz parte, que defende
uma estrutura no ministério que funcione em rede, através da qual os diferentes
intervenientes do sector da música possam falar e fazer-se ouvir.
É assim que, fora do ensino regular, aqueles que decidem enveredar por um ensino
especializado da música no ensino público começam por não ter a vida facilitada.
Mas as dificuldades não acabam aqui. Se um aluno decide ir para o conservatório,
por exemplo, tem de estar preparado para um autêntico vai-vem entre a escola
de ensino regular, onde recebe a formação geral, e a escola onde recebe a formação
especializada.
Foi o que aconteceu com Diogo Vida, 24 anos, que iniciou a sua formação aos
12, em piano clássico, numa escola particular, e entrou mais tarde para o conservatório.
Hoje é aluno da licenciatura de jazz da Escola Superior de Música e das Artes
do Espectáculo (ESMAE), agregada ao Instituto Politécnico do Porto, e recorda
essa época como um período em que precisou de fazer "muita ginástica de encaixe
de horários" e inúmeras viagens entre as escolas, que se tornavam um martírio
em hora de ponta. Apesar de ter concretizado parte das suas aspirações, pensa
nos colegas que não tiveram a mesma oportunidade e considera que "a formação
musical deveria fazer parte da formação geral de cada indivíduo, tal como o
Português ou a Matemática", única forma de termos um público "mais esclarecido".
Outro dos entraves que se depara aos alunos que pretendem ingressar no ensino
público especializado do 2º e 3º ciclos do Ensino Básico é a idade de ingresso,
que se processa nos mesmos moldes do ensino regular. Porém, na opinião de Isabel
Rocha, presidente do Conselho Executivo do Conservatório de Música do Porto,
aos 10 anos começa a ser tarde para iniciar um músico e pode reflectir-se negativamente
na sua carreira. Assim, a aprendizagem da maioria dos instrumentos deve iniciar-se
entre os 6 e os 8 anos de idade, caso dos instrumentos de teclas, como o piano,
de cordas, como o violino ou o violoncelo, ou de sopro, como a flauta de bisel
ou a flauta transversal, e no caso do canto ela só deverá fazer-se entre os
16 e os 18 anos, altura em que a voz atinge a maturidade.
Reforma polémica
São estas e outras especificidades que ficaram por contemplar
na reestruturação dos Conservatórios Nacionais, através do Decreto-Lei 310,
de 1983, que acabou com a sua lógica e flexibilidade organizacional, em troca
daquilo que Isabel Rocha classifica como uma "uniformização administrativa".
Assim, os Conservatórios Nacionais de Música, onde se ministravam os cursos
gerais e superiores de música não conferentes de grau, passaram a funcionar
como escolas do ensino básico e secundário, contrariando a lógica de funcionamento
dos seus congéneres europeus.
Nessa altura, e obedecendo à reorganização do sistema, foram criadas as Escolas
Superiores de Música, integradas no ensino politécnico, que modificaram por
completo a estrutura de habilitações para a prática profissional e para a docência.
"Foi aí que começou a "guerra", explica Isabel Rocha, entre um ensino pensado
e estruturado para a formação de "grandes músicos e professores de música",
cuja principal preocupação não era a de conferir habilitações, e um ensino que
caminhou para o "academismo".
"Essa reforma foi mal feita, mal posta em prática e criou divisões entre os
músicos" afirma por seu lado Fausto Neves, responsável do Departamento Educativo
da Casa da Música, na opinião de quem os responsáveis governativos não compreenderam
a especificidade deste tipo de ensino. "Com a honrosa excepção correspondente
ao período em que funcionou o Gabinete de Ensino Técnico Artístico e Profissional
(GETAP), os interlocutores fazem questão em dizer que não percebem nada de música",
refere, sublinhando que "o próprio governo quando faz investimentos quer resultados,
mas não sabe muito bem no que está a investir e quais os resultados que quer
atingir". Como consequência, "o investimento é mal aplicado e os resultados
nem sempre são satisfatórios".
Com a criação das duas escolas superiores de música, em Lisboa e no Porto, os
alunos finalistas passaram a sair com um diploma de habilitação que aos professores
formados nos conservatórios lhes tinha sido negado. Ele próprio foi coordenador
e professor de um CESE na fase de instalação dos primeiros cursos superiores
de música, mas a eventual inscrição como aluno estava-lhe vedada por falta de
habilitações. Ou seja, foi criado um diploma com equivalência a nível superior,
numa primeira fase de bacharelato, mas essa valência não foi atribuída a todos
os professores que tinham a habilitação própria do conservatório. "Uma autêntica
barbarie", considera, que criou problemas ainda hoje por resolver, nomeadamente
de acesso a quadros.
No entanto, no que respeita a este capítulo, há razões para acreditar que a
contenda possa estar perto de um final, já que se encontra em adiantado estado
de negociação com a Secretaria de Estado da Administração Educativa o projecto
de Decreto-Lei sobre o estatuto e recrutamento do pessoal docente do ensino
especializado da Música e da Dança, ao qual se seguirá, a devido tempo, a criação
dos respectivos quadros efectivos. De acordo com Isabel Rocha, é uma "proposta
globalmente positiva", onde se consagra, entre outros aspectos, o recrutamento
e selecção dos professores a nível de escola. Ou seja, "será finalmente dado
um suporte legal à prática que desde sempre permitiu que os Conservatórios escolhessem
o perfil que mais convém à defesa do seu próprio projecto".
Sob o signo da incerteza
Actualmente, a oferta de formação no ensino superior estende-se
ao ensino universitário e politécnico e às escolas particulares e cooperativas,
mas "ninguém sabe ao certo qual a valência de uns cursos e de outros", explica
ainda Fausto Neves. A princípio, as escolas superiores de educação conferiam
o grau de bacharelato, mas recentemente conseguiram introduzir Cursos de Ensino
Superior Especializado (CESE) com licenciaturas bi-etápicas, ao mesmo tempo
que as universidades abriram valências para ensino. No mercado de trabalho,
os alunos das universidades estarão hipoteticamente à frente dos alunos das
ESE's, porque estes últimos têm formação de executantes. Ou seja, parte-se do
princípio de que um professor não precisa de tocar bem um instrumento e de que
um executante não necessita de dar aulas, o que, na sua opinião, é "perfeitamente
disparatado" já que são raros os executantes que vivem de concertos. "Todos
os músicos necessitam, em um ou outro momento, de se dedicar ao ensino".
A somar a estas incongruências, falta também uma ligação mais à vida profissional.
As orquestras queixam-se habitualmente de que as escolas não fornecem alunos
nem em quantidade nem em qualidade, levando os seus responsáveis, que na sua
maioria são professores no ensino superior, a captar alunos logo no 1º ano para
estas instituições, acabando por atrasar-lhes a conclusão da formação académica.
Dessa forma, diz Fausto Neves, é complicado para uma escola superior ou uma
universidade ter uma orquestra ou um coro, porque "os alunos passam a vida a
correr de umas aulas para outras".
Então, que política traçar para o sector? Na opinião deste docente, deveria
existir um "diploma de capacidade profissional", sendo que as entidades empregadoras,
fossem elas orquestras ou escolas, não poderiam contratar pessoas sem essa qualificação.
A única excepção seria aberta aos protocolos com escolas para estágios profissionalizantes.
A nível do ensino básico, a par de ser necessário reconhecer que a escola pública
regular não tem, actualmente, qualquer hipótese de fornecer uma formação musical
apropriada, deveria haver um tronco comum na formação geral do indivíduo, que
se iniciasse no ensino pré-escolar do ensino básico, e a partir daí abrir o
leque de opções. Uma escolha não definitiva, mas paralela, através da qual o
aluno pudesse ter acesso a um ensino profissionalizante, que pudesse sempre
ser recuperado com outro curso, e a partir do 9º ano ter então acesso a uma
formação profissional.
Neste contexto, Neves considera que as escolas profissionais são porventura
a experiência "mais interessante", já que têm liberdade de elaborar o seu próprio
curriculo a nível da componente musical, quer prática quer científica, bem como
a nível dos programas das disciplinas do ensino regular, pensados em função
de um ensino profissionalizante.
Com tantas complicações no sistema educativo português, a formação no estrangeiro
nunca é posta de parte. Quer com o objectivo de prosseguir a formação quer como
alternativa à oferta de formação nacional, estudar noutro país é o sonho de
muitos estudantes de música, realizável apenas por aqueles que têm meios financeiros
para o fazer e que são admitidos nos estabelecimentos de ensino a que concorrem.
Apesar de a competitividade ser maior, as oportunidades de trabalho são mais
aliciantes e enquadram-se geralmente numa actividade e cultura musicais mais
desenvolvidas.
A irregularidade das oportunidades de trabalho, porém, é sempre uma realidade
bem presente naqueles que escolhem a música como profissão. "Ser músico corresponde
a viver sob o signo da incerteza. Apenas aqueles que são excepcionalmente bons
ou os que conseguem colocação em orquestras ou em bandas de maior dimensão conseguem
viver quase exclusivamente da música", refere M.B., um jovem aluno de 21 anos,
inscrito no curso de Composição da ESMAE, que preferiu manter o anonimato, cuja
ambição é integrar uma orquestra sinfónica e viajar em digressão pelo mundo.
Sabe que o espera um trabalho árduo: "É um curso difícil e nem sempre acaba
como sonhamos. Nessas alturas sabemos que temos sempre o ensino como uma espécie
de "seguro de vida".
Uma opinião reiterada por Diogo Vida, ao afirmar que quem pretende ter uma carreira
artística em Portugal tem de apostar não só no seu projecto musical como também
no ensino. "Viver só da música, com um grupo de Jazz, ou uma banda de Pop, ou
Rock, é muito difícil. O mercado cresceu, existem mais editoras, agências de
espectáculos e escolas, mas o número de intérpretes e executantes também aumentou
e há mais concorrência".
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