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Conflitos e tensões na profissão docente

tema para polémicas e reflexões *

Com o desenvolvimento dos sistemas educativos, o pessoal docente está a ganhar cada vez mais peso entre a população activa, de tal modo que a sua remuneração é o principal elemento nos custos da educação. Paralelamente, as cada vez maiores expectativas da sociedade face aos sistemas educativos ampliam as missões da Escola. Para completar o quadro, a introdução massiva das novas tecnologias nos processos de aprendizagem tornou mais complexa a profissão docente.
Curiosamente, no entanto, as políticas orçamentais restritivas tendem a comprimir os salários do pessoal educativo, aumentar a sua carga de trabalho e introduzir a flexibilidade e a precariedade na sua gestão; isto, ao mesmo tempo que a qualificação e as competências que lhes são exigidas não param de aumentar, considerando-o um elemento decisivo para a qualidade da educação e para a sua eficácia.
Esta contradição é motivo de fortes tensões e conflitos.


I. Uma profissão submetida às evoluções e expectativas da sociedade

A pressão sobre a profissão docente tem origem fora do sistema educativo (expectativas sociais) e no seu interior (transformação dos saberes e dos modos de aprendizagem; diversificação da população estudantil).

1) A pressão económica e o dever de êxito para todos
O papel do saber, dos conhecimentos, da inovação e da investigação no crescimento e no desenvolvimento económico, a sociedade do conhecimento e a educação ao longo da vida, aumentam a pressão social sobre os sistemas educativos e os professores. O aumento contínuo do nível educativo e o acesso de todos a uma qualificação profissional reconhecida e a uma certificação de qualidade convertem-se numa forte exigência social.
O desemprego e a exclusão ameaçam primeiro aqueles que não adquiriram uma educação de base suficiente e que, por isso, tenham dificuldades para aceder a uma educação permanente de qualidade. Os professores vêem-se obrigados a ter 'zero defeitos'. Espera-se que a Escola proteja contra o desemprego e a exclusão, que leve à qualificação, à inserção e ao emprego.
O dever dos professores de assegurarem o êxito a todos os jovens, aumentando simultaneamente a qualidade da educação para todos (jovens e adultos), torna mais complexa a profissão docente.

2) A pressão social e a ampliação das responsabilidades
A Escola tem uma função cada vez mais importante na distribuição dos papéis sociais; o desejo de ascensão social e o medo de rupturas sociais aumentam as exigências de êxito. Êxito escolar e êxito social estão relacionados.
À Escola compete dar resposta a todos os problemas que a sociedade não consegue resolver: transmissão e socialização; ensinar e educar; transmitir conhecimentos e desenvolver capacidades intelectuais; transmitir valores e recrear laços sociais; preparar para a qualificação profissional e para a inserção social e profissional. Para responder a estas exigências, as profissões da educação têm de ampliar o seu campo de intervenção; tornam-se mais complexas.
Devemos interrogarmo-nos para saber até onde chegam as missões da Escola e as responsabilidades do pessoal educativo. Em todo o caso, a qualificação das profissões da educação deve ter em conta estes novos papéis, sobretudo no desenvolvimento de equipas pluriprofissionais.

3) A evolução dos conhecimentos e a exigências de profissionais criativos
Ensinar é trabalhar com alunos sobre conhecimentos que evoluem sem cessar e que estão organizados em disciplinas com fronteiras mais ou menos estáveis. Com frequência, os jovens têm que percorrer uma grande distância para se apropriarem de conhecimentos fundamentais; por outro lado, a sociedade exige aos professores que os seus alunos não fracassem, que todos dominem saberes elaborados e evolutivos, que desenvolvam uma atitude crítica e que, em situações imprevistas, sejam capazes de resolver problemas complexos.
Os professores têm que transmitir saberes actualizados, pondo em evidência as suas múltiplas utilizações na vida.
Com a educação ao longo da vida - que se converteu numa necessidade -, há que transmitir saberes mais pertinentes, iniciar a pesquisa de informação e de conhecimentos (recorrendo aos meios de comunicação mais modernos) e estimular o gosto pela descoberta e a actividade intelectual permanente.

4)Os métodos de aprendizagem e as novas tecnologias
As práticas educativas têm que adaptar-se à diversidade da população estudantil, das suas motivações, das suas experiências, das suas expectativas e dos seus projectos; têm que integrar as tecnologias mais sofisticadas para melhorar a sua eficácia; têm que permitir que os saberes adquiram maior sentido junto dos alunos e que estejam mais relacionados com os problemas com que se confrontam; têm que integrar os resultados das investigações didácticas nas ciências da educação...

5) A pressão sobre os custos da educação e a produtividade do pessoal
Com o ensino de massas e a sociedade do conhecimento, o investimento educativo torna-se crucial para o desenvolvimento das sociedades.
Os governos tendem a evitar a necessidade de dotar os sistemas educativos com maiores créditos e mais meios humanos aumentando os efectivos por classe, diminuindo as horas de trabalho em pequenos grupos e aumentando o tempo de serviço e as tarefas do pessoal...


II. O que continua a ser essencial na profissão docente

1) O professor como desenhador de conteúdos e a exigência de uma alta formação académica
O docente tem que trabalhar o sentido dos conhecimentos ensinados e motivar os alunos para quem esta ideia não seja clara. Trabalhar os conhecimentos com os alunos é o núcleo central da actividade docente.
É necessário convencer os jovens de que é através da actividade intelectual que garantem o seu êxito, de que o verdadeiro saber não é um conjunto de conhecimentos memorizados para recitar, mas um saber crítico adaptável a situações diversas. Da parte dos professores, é indispensável um bom domínio dos conhecimentos científicos.
Ao mesmo tempo, o professor deve conseguir que os alunos adquiram valores sociais e cívicos fundamentais para a coesão social e para a vida democrática das sociedades.
Neste sentido, ensino e educação são duas faces inseparáveis da profissão docente. Incitando o aluno a enfrentar as conquistas humanas, a compreender o seu sentido e a apropriar-se dos seus princípios, o professor ensina e educa. Ao mesmo tempo, tem em conta os problemas de todo o tipo com que os alunos se deparam na procura de soluções.
Com o desaparecimento de instâncias propiciadoras da criação e manutenção de relações sociais e da transmissão de valores (dificuldades na vida familiar e dos aglomerados habitacionais, degradação da vida política; ...), os professores e o restante pessoal da educação são chamados a lidar com a quase totalidade das funções educativas da sociedade: participam na luta contra todas as pragas sociais (droga, violência, ...), na educação sexual (luta contra a sida), na educação para a saúde, na luta contra a pobreza, a xenofobia e o racismo. A Escola deve ser capaz de recrear laços sociais no sentido da socialização - aprender a viver juntos em sociedade.
Tudo isto exige equipas pluriprofissionais com múltiplas competências, assim como um profundo diálogo com os alunos.

2) O professor desenhador de situações de aprendizagem e a exigência de uma alta formação didáctica e pedagógica
O professor tem que saber manejar a cada vez maior heterogeneidade dos alunos a todos os níveis (social, cultural, étnico) e fazer desta heterogeneidade mais ou menos limitada um factor de êxito e de socialização para todos; deve ser capaz de exercer a sua actividade em situações diversas e de combinar o ensino de massas com o acompanhamento individualizado em pequenos grupos; deve realçar as capacidades de reflexão dos alunos, o que implica reflectir sobre as suas próprias práticas.
O professor não é apenas o especialista de uma ou várias disciplinas, mas o especialista dessa ou dessas disciplinas num determinado contexto e para um determinado nível de ensino. Do mesmo modo, o professor dispõe de uma certa autonomia para elaborar, desenvolver e modificar (em função das necessidades dos diferentes públicos) as estratégias de ensino-aprendizagem mais adequadas - obviamente, respeitando o quadro regulamentador definido pelas autoridades competentes. Nesta perspectiva, a coerência das aprendizagens exige um trabalho colectivo por parte do pessoal docente.

3) O professor comprometido na evolução dos sistemas educativos e a exigência de participação
O professor confronta-se com a evolução acelerada dos conhecimentos e das técnicas. Por isso, deve ter em conta o desenvolvimento de outras fontes de informação externas à Escola (televisão, internet, ...) e as modificações na relação dos jovens com a informação, a cultura e o conhecimento.
A profissão docente não se confina às paredes da sala de aula. Os professores têm que ser actores na concepção dos programas e das práticas profissionais; e têm que poder participar, também, em actividades de investigação.

4) O professor, as outras profissões da educação e o trabalho em equipa
Para dar resposta ao conjunto de missões confiadas à Escola, a acção dos docentes deve ser complementada por outros profissionais especializados: psicólogos e conselheiros de orientação; médicos, enfermeiros e conselheiros de saúde; animadores escolares e assistentes sociais; pessoal administrativo e de manutenção, ...
A educação converte-se, assim, num trabalho de equipas multiprofissionais, onde cada um coloca o seu conhecimento e as suas competências ao serviço dos alunos, ajudando-os a resolverem os seus problemas.


III. O estatuto das diversas profissões da educação

O corpo docente e as outras categorias profissionais que trabalham no ensino são um eixo da evolução do sistema educativo, o que supõe um profissionalismo constantemente renovado.
Na medida em que a educação é responsabilidade directa dos poderes públicos e do serviço público, o pessoal tem, maioritariamente, um estatuto de funcionário, de agente do Estado ou de colectividades públicas, com suas exigências, obrigações e regras deontológicas, mas, também, com as suas garantias e protecções.
Ao mesmo tempo, tanto os sistemas educativos públicos como o sector privado, integraram elementos de gestão de recursos humanos procedentes da economia de mercado.
Seja qual for o modo de gestão, pública ou privada, o profissionalismo dos docentes e do restante pessoal da educação apoia-se em dois eixos:
autonomia ou independência no trabalho de adaptação permanente do ensino às necessidades dos alunos e da sociedade, inclusive se este trabalho se faz cada vez mais de forma colectiva no seio de equipas;
elevado nível de qualificação que fundamenta este trabalho de adaptação permanente em bases mais científicas, em relação com a investigação.
Para levar a bom termo as suas missões, o pessoal da educação reivindica regras estatutárias que reconheçam esta alta qualificação e esta autonomia ou independência.

1) Condições de serviço
Na definição do serviço dos docentes é necessário ter em conta o conjunto das tarefas: cursos, preparações, correcções, concertação com o restante pessoal e com os pais, diálogo mais profundo com os alunos, participação na vida da respectiva escola, em trabalhos de investigação e acções de formação contínua, ...
A questão mais difícil é encontrar a unidade de medida da carga real de trabalho e da crescente dificuldade da profissão docente.

2)Condições de remuneração
Os professores devem gozar de salários, tempo livre e carreiras profissionais que tornem a profissão docente tão atractiva como outras profissões que exigem o mesmo nível de qualificação. Uma das questões que se colocam é a consideração do esforço individual realizado pelos professores.

3) Formação inicial e contínua
Os professores necessitam de uma formação universitária de alto nível com iniciação à investigação, de formação sobre a didáctica das disciplinas, de uma reflexão colectiva a partir de experiências profissionais no terreno. Necessitam cada vez mais de uma formação contínua ao longo da carreira e devem poder participar em acções de investigação.

4) Condições de emprego
O pessoal da educação necessita, ao mesmo tempo, de segurança de emprego (que os proteja da precariedade) e de mobilidade profissional e geográfica (se o desejarem).

Conclusões para um aprofundamento do debate

O conceito de formação ao longo da vida parece estar destinado a moldar os sistemas de educação e formação.
O investimento na educação e na formação será cada vez mais crucial para os indivíduos e para as sociedades; e, inclusivamente, para o futuro da humanidade. É necessário um esforço quantitativo e qualitativo.
Os profissionais da educação serão cada vez mais solicitados a configurar o futuro. Mas estão já a ser chamados a evoluir num sentido que ainda não está definido - os interesses em jogo são consideráveis, e frequentemente contraditórios.
É urgente aprofundar o debate, precisando o futuro que se pretende construir.


* N.R. Sob o título "Quais são as evoluções da profissão docente? Que tipo de professores necessitam as nossas sociedades?", a versão original deste texto (recolhido e adaptado por António Baldaia) é da autoria de Elie Jouen, Monique Fouilhoux, Ulf Fredriksson e Yves Baunay, e foi publicada no boletim «Questões de Debate» (Internacional da Educação), em Setembro do ano passado.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 105
Ano 10, Agosto/Setembro 2001

Autoria:

Ulf Fredriksson

Yves Baunay

Elie Jouen
Secretário-Geral Adjunto da Internacional da Educação
Ulf Fredriksson

Yves Baunay

Elie Jouen
Secretário-Geral Adjunto da Internacional da Educação

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