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A arte de ser português

Fernando Pessoa dizia que "o português é capaz de tudo, logo que não lhe exijam que o seja, porque somos um grande povo de heróis adiados". E não sei se de todo tinha razão. Mas sabemos que não são poucos na história da nossa cultura os nomes e as obras de quem sempre desejou remar contra a maré e emendar o rumo da nossa própria navegação. Porque de longe sempre se levantam as vozes daqueles que, no acto de definirem as tendências naturais e históricas, no plano da cultura e da política, da realidade social e geográfica, desta "arte de ser português", a seu modo contribuíram para o entendimento dos mitos e razões que da nossa identidade cultural a cada passo tanto se fala. E se a essa vaga de um modo de "pensar claro" houve vozes que quiseram, na insistência das próprias motivações filosóficas e históricas, aliar o espírito de quebrar ou vencer algumas barreiras, tudo se pode encarar ou interpretar a outra luz dentro da nossa plena integração europeia. Mas trata-se ainda de contos largos, que dão origem às ideias mais contrárias ou se configuram como razões de outros interesses ou posições. Não é disso que importa aqui falar. Mas, a propósito da releitura do livro de Fernando Ilharco Morgado ? O Leme e a Deriva (1989) -, impõe-se levantar algumas pistas em redor dos problemas da nossa sociedade. De ontem e de hoje, claro: muito velhos e antigos se manifestam os "vícios" da portugalidade, se a entendermos nesse sentido de onde vimos, quem somos e para onde vamos?, porque antiga e repetitiva é a herança da nossa secular dependência, velhos e antigos são os males e os vícios históricos que nos definem entre outros povos, e muito abordados têm sido essas questões desde Herculano, Antero e Oliveira Martins até Pessoa, António Sérgio ou Pascoaes.

Mas se a história das nossas "dependências" económicas e culturais está feita, se porventura a definição e entendimento dos nossos males e bloqueios culturais está determinada, não deixa ainda de ser interessante que a voz de Fernando Ilharco engrosse essa corrente pelo esforço lúcido e inteligente de "repensar" a nossa identidade, mesmo com o risco de ser um "discurso" já conhecido, repisando outras posições e atitudes ideológicas que, no correr dos anos, se não tem calado ou silenciado na leitura crítica dos problemas da sociedade portuguesa. No entanto, em O Leme a Deriva, que agora relemos com o mesmo prazer, revela-se uma posição firme de compreender o que de facto mudou depois do 25 de Abril, se acaso mudou alguma coisa de essencial. É um esforço sociológico sensível e optimista, que analisa todas as nossas dependências e mitologias, das descobertas à emigração, da dependência económica de séculos até à tão apregoada "vaga de felicidade" trazida pelos ventos da comunidade europeia, das razões da história ou da brandura dos nossos próprios costumes, enfim da herança de uma consabida pobreza e dos diferentes mitos sebastiânicos e saudosistas de quem soube erguer e perder um vasto império. Mas se ainda fala com algum sentido optimismo dessa nossa "comunidade lusíada" nas páginas deste livro, Fernando Ilharco Morgado deseja sobretudo indicar o caminho que nos trouxe a este porto, quando de todo parece que perdemos o leme e à deriva prosseguimos no esforço da nossa afirmação histórica e cultural.

Mesmo por ser uma interpretação linear da sociedade portuguesa, das origens à actualidade, O Leme e a Deriva é um ensaio que se lê e relê com agrado e interesse: na intenção de querer revelar (ou relembrar) as "pistas" ou indicar os "passos errados" das nossas andanças colectivas, nos mitos maiores e menores da própria história nacional, Fernando Ilharco faz isso com a consciência atenta de quem sabe do que fala e afirma-se como o "acto único" de acentuar assim as possíveis assimetrias que, no domínio económico e político, a integração europeia mais pôde evidenciar em diferentes aspectos da vida colectiva. Claro, sempre estivemos na Europa e, por entre as loas entoadas à integração nestes anos de um certo "eldorado" para os nossos males de raiz, há ainda quem teime em apregoar que a nova panaceia nos trará finalmente a "felicidade", mas a verdade é não será pelo acertar do passo ou do relógio pelas horas de Bruxelas ou de Estrasburgo que hão-de desaparecer os tiques do nosso proclamado "provincianismo", e relembrando ainda o que disse Pessoa, podemos repetir com ele que "o provincianismo vive de inconsciência, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos".

Por isso, não há dúvida de que a atitude denunciadora dos nossos males e dos nossos vícios patente neste livro de Fernando Ilharco Morgado acentua, com toda a clareza, a posição por si assumida, ou seja, a de querer engrossar essa corrente de vozes e de posições de quem quer (ainda) remar mesmo contra a maré e se não cansa de apontar a dedo o que de mais errado continua neste "reino de bagatelas". E o Autor assim o declara: "Na mobilização de todas as forças produtivas, poderão ser criadas as condições indispensáveis, não só económicas e técnicas, mas também morais e psicológicas, para que a confiança em si próprios e nos verdadeiros interesses se estabeleça entre os portugueses, sem o que não será possível vencer a dura batalha da concorrência, caminhar para o desenvolvimento e revitalizar a nossa cultura" (pp. 158-9).

Ou ainda nessa reafirmada vontade de poder ser o nosso fado ou destino colectivo como povo que tem realmente o peso da sua história, a deseja preservar e manter mesmo que seja, no rasto camoniano, pelos "caminhos de vida nunca certos / que aonde a gente põe sua esperança / tenha a vida tão pouca segurança".

Serafim Ferreira
Crítico literário

Fernando Ilharco Morgado
O LEME E A DERIVA, ensaio.
Livros Horizonte / Lisboa, 1989.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 101
Ano 10, Abril 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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