Página  >  Edições  >  -  >  Ludotecas: Um Espaço Aberto ao Mundo

Ludotecas: Um Espaço Aberto ao Mundo

O Ricardo tem treze anos e mora na urbanização de Santa Luzia, no Porto. Depois das aulas, e sempre que não tem outros deveres, vai brincar para a ludoteca instalada no piso térreo de um dos blocos de habitação daquele bairro. É um espaço acolhedor, colorido e com uma panóplia de materiais à disposição, incluindo uma pequena biblioteca e uma sala com dois computadores. Naquela tarde, com olhar curioso e atento às explicações fornecidas por uma das duas monitoras ali destacadas, experimentava um novo programa informático que permite a realização de curtas metragens animadas.

Como ele, também outras 114 crianças, dos cinco aos dezassete anos, vêem naquele lugar uma oportunidade de enriquecer os conhecimentos e dar largas à imaginação. Seja através do visionamento de filmes e documentários para troca de ideias, da representação de histórias através de teatro de fantoches, da expressão plástica ou da construção de jogos e brinquedos a partir de material reciclável e de desperdício.

Os temas dos ateliers são escolhidos semanalmente pelas crianças, ao passo que os adolescentes selecionam, uma vez por mês, assuntos do seu interesse para filmes e documentários. No final das sessões há sempre lugar para um debate. De acordo com a educadora de infância e coordenadora da ludoteca, Fátima Bessa, a breve prazo, devido às diversas solicitações dos jovens, será criada uma área de expressão dramática.

O espaço, embora bem distribuído por áreas de actividade, torna-se exíguo quando se pensa no número de frequentadores. Não permite, por exemplo, uma correcta separação por idades, o que 'condiciona de certa maneira o comportamento das crianças', afirma a mesma monitora. A agressividade, aliás, funciona quase como um cartão de visita das crianças mais velhas, e apenas o tempo e a evolução das relações consegue esbatê-la. 'Por muitos conhecimentos técnicos que tenhamos e apliquemos no contacto pessoal, as situações evoluem sempre em termos de relação afectiva', explica.

A ludoteca de Santa Luzia é apenas uma das sete instalações da rede de Associação de Ludotecas do Porto (ALP). Distribuídas essencialmente pela Área Metropolitana do Porto, prestam serviços no Centro de Apoio a Toxicodependentes da Boavista, na Associação do Gabinete de Recreio de Azevedo de Campanhã, no Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral do Porto e no ATL da junta de freguesia de Nevogilde. A ludoteca da Marinha de Silvalde, em Espinho, e a ludoteca-ecoteca do Fontelo, em Famalicão, esta última localizada numa escola do 1º ciclo e gerida em parceria com a associação ambiental QUERCUS, são outros dois espaços em funcionamento.

Até ao final deste ano está prevista a abertura de duas outras instalações, uma delas noutra escola do 1º ciclo de Famalicão e, a médio prazo, está prevista a abertura de mais quatro, de carácter permanente, e uma itinerante. Outros contactos foram entretanto estabelecidos com as autarquias de Lamego, Lousada, Penafiel e Braga, com o pólo de Chaves da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), bem como com três escolas básicas do Porto.

Uma história, dois percursos

Em apenas dez anos de vida, a ALP nasceu e renasceu em duas experiências distintas. A primeira está associada à implantação do movimento ludotecário português, iniciado após 1974, sob o impulso de um médico pediatra, Virgílio Moreira, decidido em congregar algumas autarquias do norte do país em volta desta ideia. Decorrida mais de uma década, em 1987, era estabelecido um acordo entre a Câmara Municipal do Porto (CMP) e a recém criada Associação de Ludotecas do Porto (ALP).

Além de garantir o arranque do projecto e a criação de um quadro técnico mínimo, permitia também a realização de pequenas iniciativas através de um financiamento concedido pelo pelouro da Educação da autarquia portuense. Há dois anos, o acordo expirou e não foi renegociado. Dado não estar prevista uma cláusula de renovação automática, a ALP perdeu os apoios e viveu tempos difíceis.

Uma nova direcção tomou posse no final de 1996 e deu início a um outro período na vida da associação. Munida de uma grande determinação em relançar o projecto, tem-se esforçado por celebrar um novo protocolo com o pelouro da Habitação e Acção Social da CMP e trabalhado na reorganização interna e divulgação das suas acções. Entretanto, alargou também o seu campo de intervenção: além do acompanhamento técnico e das habituais iniciativas de animação em períodos festivos, o novo elenco directivo decidiu apostar na realização de acções de formação nos domínios da sensibilização do jogo e da actividade lúdica, da expressão plástica, dramática e do cinema de animação (ver caixa).

Teresa Roquete, educadora de infância licenciada em ciências da educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto, assume a coordenação da equipa de formação técnica da ALP e é uma das duas educadoras ali destacadas pelo Ministério da Educação. Numa referência indirecta à estratégia assumida pelos anteriores responsáveis, afirma que 'o conceito e a filosofia do movimento ludotecário deve acompanhar a evolução operada no contexto sócio-económico e educativo português e, necessariamente, sofrer tranformações ao nível da sua actuação'.

Um novo conceito

Por oposição a uma lógica dominante de jogo-trabalho, em que se procura fazer uma utilização pedagógica sistemática do jogo e em que a informação é recebida e memorizada de forma mecânica, e no âmbito de uma educação que, considera, deve ser 'libertadora', faz a apologia do jogo-prazer enquanto elemento facilitador de processos de personalização e socialização, cumprindo, assim, a sua função educativa, social e cultural.

Neste sentido a escola poderá constituir-se como um dos principais pólos para a dinamização das ludotecas, tendo em conta as possibilidades abertas pelo entrecruzamento entre o ensino formal e a aprendizagem lúdica. O educador cumpre aqui um papel diferente, porque favorece uma integração civilizacional através de recursos que permitem à criança o acesso e a apropriação da informação de forma a que ela mesma construa os seus processos de organização mental e social. Importa, acima de tudo, 'fomentar uma atitude positiva de prazer perante a vida, valorizando mais os processos de aprendizagem do que os produtos e, sobretudo, incentivar tomadas de consciência que possibilitem a liberdade de escolha', diz ainda.

A este respeito, e apesar de considerar idênticos os princípios orientadores, afirma que a principal diferença entre os ATL e as ludotecas reside no facto de os primeiros se terem submetido a uma lógica de educação formal e instituído práticas em continuidade com as práticas do ensino. 'Nós queremos trabalhar com as escolas em linha de complementaridade, não de submissão', explica.

O principal objectivo, no entanto, passa por trabalhar em parceria com outros agentes e instituições locais de forma a assegurar a continuidade dos projectos iniciais. Para isso, a ALP tenta assegurar redes de relação inter-institucionais, não só a nível das instituições educativas mas também com associações recreativas e culturais, equipamentos de carácter assistencial e outros, de forma a conceber acções que façam convergir objectivos comuns a todos estes agentes e rentabilizar os recursos existentes na comunidade.

Mas para concretizar estas ideias 'não basta haver um discurso', defende. 'Importa existir uma prática de execução de projectos originais, articulando práticas comuns e respeitando as especificidades da comunidade. Partindo desses elementos e aproveitando os recursos comunitários existentes, será então possível 'organizar um serviço que vá de encontro aos verdadeiros interesses das populações abrangidas'.

A iniciativa deverá partir sempre, por isso, dos promotores locais (institucionais, particulares ou outros), com os quais a ALP estabelece um protocolo de parceria. O conhecimento ministrado aos futuros ludotecários - na sua maioria educadores de infância, educadores sociais, professores do 1º ciclo, animadores sócio-culturais, técnicos de serviço social, inclusivamente pessoas sem formação específica em qualquer uma destas áreas - é efectuado pelas equipas de formação (constituída por duas educadoras), e de animação (uma animadora sócio-cultural e um animador especializado em cinema de animação), para o que contam ainda com o apoio de uma psicóloga. Através de um processo de formação continuado, efectua-se o levantamento das características da comunidade e da população infanto-juvenil residente, bem como a formulação do projecto inicial.

Posteriormente, e após estarem criadas as condições mínimas para que avance pelas mãos da equipa ludotecária, é dado a cada uma delas apoio técnico na criação e desenvolvimento de projectos educativos e planos de actividades, havendo também espaço para uma análise conjunta sobre a planificação, avaliação e readequação de estratégias.

Uma vez por mês, todas as equipas ludotecárias reúnem-se para troca de experiências e saberes, contando com a intervenção de grupos de investigação sobre a actividade lúdica em geral ou em vertentes específicas desta. Esta avaliação conjunta do desempenho é um dos aspectos mais importantes desta sinergia de esforços, já que, acima da planificação e desenvolvimento de iniciativas pontuais, se revela fundamental para a uma prática de auto-crítica essencial ao trabalho de grupo.

Negativo é o facto das condições de trabalho das equipas serem ainda, em muitos casos, precárias: os contratos são estabelecidos a termo certo, trabalham em períodos lectivos e extra-lectivos e não viram ainda o seu estatuto profissional oficialmente reconhecido.

Segundo Teresa Roquete, a ALP já encetou negociações com o ME no sentido de se estudarem modalidades de reconhecimento e de acreditação da profissão de ludotecário, que poderão passar pela criação de cursos com especialização, através de protocolos com instituições de ensino superior, ou por acções de formação continuada. Para este efeito, a ALP possui já uma bolsa de formadores acreditados pelo Conselho Científico e Pedagógico da Formação Contínua e está em vias de se associar a uma instituição de formação para a prossecução desses objectivos.

Caixa:

Fernando Saraiva é um dos técnicos da equipa de animação da ALP. Realiza, desde há sete anos, um trabalho que se poderá considerar pioneiro no nosso país: transmitir às crianças e jovens frequentadoras de ludotecas o gosto pelo cinema de animação e ensinar-lhes os truques por detrás dos 'bonecos'. Para isso, usa aparelhos ópticos simples, como o caleidoscópio, ou o animatógrafo, uma caixa de formato circular na qual se encontram dispostos desenhos sequenciados, que parecem mover-se quando a rodamos através de uma fonte de luz. Um princípio rudimentar do cinema que auxilia a compreensão de alguns dos segredos do movimento das imagens

Aos poucos foi conseguindo reunir adeptos e formar equipas de pequenos cineastas. Com a sua ajuda, já ganharam dois prémios, além de diversas menções honrosas, em certames de cinema de animação: o prémio para jovem cineasta, com o 'Furacão Gulliver', e o prémio especial do júri no festival nacional de vídeo de Ovar. Este ano decidiram adaptar a 'Flor Azul', livro de Ilse Losa, e fazê-lo concorrer à secção competitiva do CINANIMA.

A plasticina e os materiais de desperdício são os elementos de eleição para a criação dos cenários. É um processo bastante rico, tanto pelo gozo do trabalho de equipa como pela descoberta das possibilidades oferecidas pelos materiais, diz Fernando Saraiva, já que 'as crianças não estão muito habituadas a explorar este tipo de capacidades na escola'

Para dar conhecer o trabalho desenvolvido ao longo dos últimos anos e pô-lo em prática com as escolas, serão criadas, a breve trecho, duas salas no Coliseu do Porto.

Na primeira, o visitante poderá contactar directamente com as peças, mexe-las e ver como funcionam, num princípio de descoberta interactivo e lúdico. Estarão ainda patentes todas as maquetas construídas e utilizadas até hoje pelos cineastas. Numa outra sala ficará instalado um estúdio de animação destinado à produção e realização de filmes, um espaço polivalente onde se poderá também experimentar o funcionamento das máquinas, desta feita mais sofisticadas, e onde se trabalhará na realização.

Na altura, será enviado às escolas um prospecto explicativo, a partir do qual os professores poderão contactar Estúdio de Cinema de Animação da Associação de Ludotecas do Porto (ANILUPA), o órgão responsável pela gestão do espaço, e marcar visitas gratuitas. A formação para osprofessores também foi pensada, havendo planos bastante concretos para que ela se prolongue de Julho a Outubro do próximo ano.

Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo