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Leitura, Literatura, Escola e Media

Júlio Roldão*

Há uns anos, mais ao menos há 20 anos, quando eu tinha 20 anos e Abril estava a nascer, ouvi um discurso que me comoveu até às lágrimas e que ainda hoje me faz sonhar quando o recordo. Foi proferido pelo então brigadeiro Vasco Gonçalves, como primeiro-ministro de Portugal, no primeiro congresso dos escritores portugueses. Presidia ao conclave o poeta José Gomes Ferreira, o que dizia que 'viver sempre também cansa'(1). Era um tempo em que Fialho Gouveia apresentava telejornais na televisão, a inevitável RTP, e em que os telejornais eram preenchidos, na integra, com discursos proferidos em sessões como a do encerramento do congresso dos escritores.

Vasco Gonçalves falava com paixão. E não tinha necessidade de dizer que falava com paixão para que a gente, alguns de nós (nem todos, é certo) sentíssemos esse contágio. A rádio, a televisão e os jornais passavam estes discursos de libertação. Eu tinha um pequeno gravador de cassetes, um luxo para a época, e gravei, do meu televisor, com som ambiente, as palavras do Vasco. Lembro-me (está ainda gravado) que Fialho Gouveia justificou o alinhamento daquele telejornal de uma forma diferente. Ele disse que o telejornal dessa noite era, dada a importância do acontecimento, totalmente preenchido pelo discurso que o primeiro-ministro proferira na sessão de encerramento do congresso dos escritores.

Não tarda nada que algum jovem, finalista de algum curso superior de comunicação social, escolha para trabalho monográfico de fim de licenciatura uma 'tese' a defender que, à época, nos quentes idos de 1974 e 75, o Poder político impunha, aos telejornais da RTP, alinhamentos monolíticos como o consagrado ao Congresso dos Escritores Portugueses. Haveria ingerência, seguidismo, ou a opção da RTP e/ou de Fialho Gouveia foi assumida em nome de uma sede, de Norte a Sul sentida, de novas leituras, de novos discursos de outras formas de comunicação?

É preciso voltar um pouco atrás. Ao antes do 25 de Abril, quando alguns de nós nos angustiávamos numa Universidade que - diga-se em abono da verdade - era muito mais literalizada e muito mais humanista e humanizante do que as de hoje. Abel Salazar, mais tarde patrono de uma escola de ciências biomédicas de referência, dizia que o médico que só sabe medicina, nem medicina sabe. E nós, que líamos poesia, em vez do Código do Direito Civil, que sabíamos de medicina legal o que aprendíamos, com Maigret, nos manuais de bolso do Georges Simenon, nós, discutíamos, com 20 anos, à mesa do café, se o 'neo-realismo' tinha ou não sido superado e se o 'Dinossaurus Excelentissimus', de José Cardoso Pires, era ou não a terceira fase daquela escola, literária e cívica, para alguns não-escola.

Foi o 25 de Abril o triunfo do neo-realismo? ('Há uma estética do neo-realismo?', interrogava Mário Dionísio). Antes discutia-se, acaloradamente, se a arte, se a literatura, deveria descer ao povo, quiçá abastardar-se, ou se, diferentemente, deveria ser o povo a elevar-se ao patamar da erudição e da cultura. E no entanto ser culto continua a ser saber onde se está, identificar as forças que determinam o nosso presente e conhecer trilhos possíveis para caminhadas futuras, tal como o definia, em 1933, outro nome de citação obrigatória - Bento Jesus Caraça.

Por alturas de Abril, as faculdades de Direito estavam cheias de poetas, os jornais repletos de universitários que não conseguiam ou não queriam terminar as respectivas licenciaturas, enquanto que às escolas começavam a chegar, para dar aulas, algumas 'teenagers' dos fins dos anos 60.

Para dar aulas? Para as vender e barato. A paixão, essa, tem sempre altos e baixos. Colectivamente, a tribo da esquerda, com todos os clãs, vivia a ressaca da crise coimbrã de 1969, agravada pela mini-crise académica de 1971, quando eclodiu a Revolução do 25 de Abril e o refluxo da inquietude se transformou num fluxo irrepremível. Na teorização destas coisas da vida É de bom tom, e de boa linguagem, dizer, que, em tudo, há fluxos e refluxos. E o contágio foi de tal ordem que até Fialho Gouveia, naqueles idos, dava a cara para dizer, na televisão, que, nesse dia, o importante era difundir o discurso de Vasco Gonçalves.

Nesse dia ('raiava o Sol na madrugada do dia 14 de Agosto de 1383'(2)), o poeta e escritor José Gomes Ferreira saudou com entusiasmo a presença de Vasco Gonçalves no encerramento do congresso dos escritores, lembrando que um primeiro-ministro só pode ser benvindo a um conclave daquela natureza quando se vive e pode fruir uma liberdade conquistada. Como que em resposta, o brigadeiro-chefe do Governo exortou os presentes a criarem em liberdade, sob a inspiração inesgotável das populações, e a falarem da vida e a cantarem o amor, com a certeza de que isso é que era estar com Abril. Tudo isto sem temores de que alguém (os do Movimento das Forças Armadas, por exemplo) pudesse querer impor algum dirigismo.

Cito de cor (na verdadeira acepção da palavra, porque cito do coração) para lembrar que Vasco Gonçalves deambulou, nessa histórica intervenção do Congresso dos Escritores Portugueses, sobre as questões da forma e do conteúdo, uma polémica que atravessou a esquerda. 'O conteúdo é sempre o mesmo. Não pode haver um conteúdo diferente para os mais letrados. A forma é que pode variar', disse o então primeiro-ministro confessando-se um homem dessa geração generosa que militou no neo-realismo português.

'A GRÂNDOLA NA BOCA

DE PATIFES E PEDREIROS'(3)

Vinte anos mais tarde, em entrevista ao jornalista João Rita, grande amigo meu, Orlando de Carvalho, professor e poeta que identificou 'a Grândola na boca de patifes e pedreiros'(3), vinte anos mais tarde, Orlando de Carvalho, que foi secretário de Estado da Reforma Educativa no 1º Governo Provisório, lembrou nas páginas de 'a Página' que - cito - 'as esperanças acumuladas e os desejos que se procuravam realizar aparecem discutidos e contestados como se o 25 de Abril não tivesse autenticidade e quase pudesse ser posto em causa'.

É verdade, como igualmente reconhece o professor Orlando de Carvalho, intelectual injustamente esquecido, que no 25 de Abril terá havido um predomínio, uma sobredeterminação do ideológico sobre o prático, sobre o pedagógico. É convicção dele (e ele é um protagonista de Abril cujo pensamento deve, também, constituir referência) que a pedagogia necessária à realização de alguns dos objectivos da Revolução foi sacrificada a certos aspectos ideológicos. Não se terá criado uma consciência social, uma consciência cívica. Ter-se-á tentado impô-la, 'à tort et à traves', como ele próprio gosta de sublinhar.

Não quero fugir do mote inicial desta conversa, mas aproveito esta nova leitura dessa entrevista de Orlando de Carvalho (publicada em Abril de 1994, no vosso jornal 'a Página'), quiçá a mais longa entrevista jamais publicada nesse mensário, para realçar a ideia, também adiantada pelo professor de Coimbra, recentemente jubilado, segundo a qual é preciso conquistar a consciência de que as liberdades cívicas precisam de uma componente social, sob pena de se tornarem ineficazes e, sobretudo, sob pena da população não sentir as vantagens da própria liberdade política. 'Se não for acompanhada de vantagens mínimas, no plano social, a liberdade política torna-se num flatus vocis'.

Recordo, de novo, 1974 e o discurso de Vasco Gonçalves aos escritores, quando ele diz que o conteúdo não pode variar em função do destinatário. Sublinho, novamente, a máxima de Abel Salazar segundo a qual o médico que só sabe medicina nem medicina sabe. Folheio, por último, a entrevista de Orlando de Carvalho ao jornal 'a Página' para assinalar uma interrogação hoje, mais do que nunca, na ordem do dia. 'Talvez estejamos a lançar para o mercado ondas e ondas de licenciados que caminham para uma espécie de proletariado intelectual (...) semi-analfabeto, tanto no aspecto técnico e cultural como no aspecto cívico'. Estatisticamente a população está mais escolarizada mas isso não significa, realmente, que haja uma escolarização autêntica.

Seria agora a altura de me debruçar sobre a escola democrática versus escola meritocrática, sobre a escola inclusiva, sobre a necessidade de promover estratégias que visem a igualdade de oportunidades de sucesso, muito mais do que as de acesso, sobre as autonomias conquistadas ou consentidas... Mas, seguindo os ensinamentos de Brecht, o primeiro acto político para quem discursa (ou faz teatro, que é quase o mesmo) é saber quem está na sala e eu sei que aqui estão alguns dos especialistas nestas matérias. Não passe pois o sapateiro além da chinela.

PEQUENO LOUVOR

DO PÚBLICO DA POESIA

Não passo além da chinela mas passo por cima de umas tantas folhas, e de outras tantas citações, até chegar a esta, que me parece oportuna e que é do poeta italiano Nanni Balestrini, de quem Alberto Pimenta traduziu, pelo menos, o poema 'pequeno louvor do público da poesia', publicado no nº 47, de Fevereiro de 1997, da Revista Crítica de Ciências Sociais, que aqui se recomenda face à impossibilidade de incluir, numa intervenção destas, notas de rodapé com referências bibliográficas(4).

Cito pois Balestrini para dizer que 'cá estamos nós outra vez // sentados em frente do público da poesia // sentado em frente de nós ameaçador // fitando-nos e esperando a poesia'. Escreve ele logo a seguir que 'na verdade o público da poesia não é ameaçador // se calhar nem está todo sentado // se calhar algum está também de pé // porque acorreu entusiástico e numeroso// // Ou talvez haja umas tantas cadeiras vazias // mas os que vieram são os melhores // fizeram este grande esforço só mesmo por nós // porque é que haviam de ameaçar-nos // // O público da poesia não ameaça rigorosamente ninguém // pelo contrário é atencioso generoso atento // prudente interessado devotado // ávido mirífico um pouco inibido//.'

E mais adiante, que o poema é longo e eu não o posso dizer todo para manter algum suspense, diz o poeta que 'o público da poesia é infindo variado não se pode circunscrever // como as ondas do mar profundo // o público da poesia é bonito altaneiro insaciável temerário // olha de frente impávido e intransigente // // vê-me aqui a ler-lhe esta treta // e acha que é poesia // porque este é o nosso pacto secreto // e a coisa é do agrado de ambos'.

Na verdade não posso continuar porque o verso seguinte diz - cito - 'como sempre não tenho nada para lhe dizer'. Modéstia sim mas nem tanto. (Em Coimbra, um professor de Direito, e de direita, que já morreu, costumava dizer, para os alunos, que em determinada reunião de romanistas compareceram nada mais nada menos do que cinco génios, acrescentando que a extrema modéstia o impedia de dizer o nome de um dos cinco). Eu sou, como sabem, jornalista e tenho algumas autoflagelações a apresentar numa autocrítica que não pretende actuar como um tira nódoas da 'Johnson', passe a publicidade.

Falta ainda dizer tanto. É já um lugar-comum dizer que o audiovisual explodiu em Portugal sem que a cultura tradicional do livro estivesse disseminada. É óbvio que numa situação destas o livro, a leitura ('a do prazer errante', convém citar Barthes) ficam sempre prejudicados e sob o comando, superficial, da denominada cultura dos olhos, passiva, que prescinde do desenvolvimento do pensamento e da reflexão. Numa tal situação seria desejável desenvolver a Imprensa, a Imprensa escrita (passe o pleonasmo). Mas não uma imprensa puramente informativa, temperada com um ou outro comentário apressado.

Será que existe, em Portugal, no Ocidente, uma tal Imprensa? Francesco Alberoni, que cito amiúde nestas andanças, deu, em tempos, uma entrevista ao jornal El País onde confessava que o discursos da libertação já não passa pelos órgãos de comunicação de massas, nomeadamente pelos jornais. Confrontado com a contradição de estar a dar uma entrevista a um jornal, Alberoni disse acreditar que aquilo que ele verdadeiramente queria dizer talvez conseguisse 'passar', e ser identificado por outros, por reconhecimento. Um reconhecimento idêntico ao das cumplicidades existentes entre os primeiros cristãos. Para o escritor italiano, o discurso da libertação estará, agora, somente nos livros. Em alguns livros.

Boa deixa para a questão literária. Dito assim, 'questão literária', até parece polémica do século XIX. Desta vez, sim. O tema não é para mim. Quem os senhores verdadeiramente esperavam, qualquer dos três escritores inicialmente previstos para esta sessão, é que poderia aqui trazer uma ou outra pista de reflexão sobre a matéria, para as discutir convosco, inter pares(5). Eu não, eu apenas posso dizer que não partilho da ideia de que a literatura, em Portugal, está em crise, ou que o romance esteja moribundo. Bem pelo contrário, subscrevo a tese da renovação evidente da ficção romanesca em Portugal a ultrapassar antigas e inevitáveis elitizações na comunicação literária. Disto também falou, há 20 anos, Vasco Gonçalves na intervenção proferida no Congresso dos Escritores Portugueses.


PELA URGÊNCIA

DA DISSIDÊNCIA


Há tempos (mais outra citação) o meu camarada de profissão Serge Halimi, perguntava no Le Monde Diplomatique que poderiam os jornalistas e intelectuais 'fazer num Mundo onde os 358 milionários mais ricos detêm maior riqueza que metade da população do planeta'. Num Mundo onde um país como Moçambique cativa para a defesa o dobro do orçamento para a Educação e para a Saúde, apesar de um quarto das crianças moçambicanas morrerem de doenças infecciosas antes de atingirem os 5 anos de idade.

'´Como podem - cito - os jornalistas e os intelectuais denunciar estas situações e propor soluções alternativas quando são aqueles milionários, os Bil Gates, os Murdoques, os Ted Turner, quem detêm os jornais e as editoras para onde escrevemos, as rádios onde nos exprimimos e os canais de televisão onde aparecemos'.

As interrogações e as dúvidas de Serge Halimi vão mais longe. Cito mais uma vez: 'Neste mundo global e totalitário, podemos nós ainda, jornalistas e intelectuais, jogar o papel do contra-poder, dar voz aos sem voz, reconfortar os que vivem na aflição e inquietar os que vivem no conforto'?

Estou a chegar ao ponto quente. E a reconhecer, como muitos outros dos meus pares, que os meios de comunicação social de massas e os governos estão a transformar-se em brigadas de aclamação e apoio dos mercados financeiros onde a ortodoxia liberal está a tornar-se totalitária. Dentro de três anos, a continuarmos assim, no teatro de guerra ideológica em que os media se transformaram, ou estão a transformar-se, o jornalista de sucesso, com aceitação no mercado, dirá que modernidade é livre-troca, moeda única, privatização, comunicação, Europa, a Europa da livre-troca, da moeda única, das desregulamentações e das privatizações, da comunicação. Ao contrário, a não modernidade, o arcaésmo será, para eles, o Estado Providência, os sindicatos ou até mesmo o povo, acusado de estar sempre inebriado com o populismo.

Podemos duvidar dos mercados? Não quero ser demasiado pessimista neste alinhavo de reflexão que vos deixo. Há alguns ventos de esperança e de mudança nos horizontes. Este ano, quando esperavamos e desesperavamos por um Nobel da Literatura que falasse português, a Academia Sueca surpreendeu-nos com Dario Fo, herdeiro da tradição da Comedia dell'Arte, dramaturgo completo que escreve para representar e para o fazer sem grandes meios externos, privilegiando o papel do próprio actor, do histrião. Isto é reconhecer como válido o que tem sido tido como marginal. Se essa inquietude constante, que tantos sempre quiseram esvaziar e enquadrar, essa agitação, e até esta propaganda, merecem destaque, então algo de novo está a nascer.

Termino com os últimos versos de Nanni Balestrini, na tradução de Alberto Pimenta, escritos em caixa alta, com a urgência que as maiúsculas emprestam aos textos que servem: CONCLUSÃO // A POESIA FAZ MAL // MAS POR SORTE NOSSA // NÃO HAVERÁ NUNCA NINGUÉM DISPOSTO A ACREDITAR NISSO.

Se isto é verdade, então devemos, pelo menos no que toca ao jornalismo, apostar no valor da dúvida e na urgência da dissidência.

Viana do Castelo, 20 de Novembro de 1997

*Júlio Roldão, autor deste texto (proferido, em Viana do Castelo, numa sessão pública do Sindicato dos Professores do Norte), é jornalista no Jornal de Notícias, onde exerce o cargo de editor da Informação Nacional.

notas de rodapé

acrescentadas pela Redacção de 'a Página'

(1) Verso de um poema de José Gomes Ferreira

(2) Primeiras palavras de um texto,

sobre a Batalha de Aljubarrota,

de um livro de leitura da 3ª classe,

adoptado antes do 25 de Abril.

(3) Verso de um poema de Orlando de Carvalho

(4) Esta referência só tem sentido

no contexto de uma intervenção oral

como a proferida e aqui reproduzida na íntegra.

(5) O Sindicato dos Professores do Norte convidara,

por esta ordem, para desenvolver o tema

'Leitura, Literatura, Escola e Media',

o escritor José Saramago, o professor Paulo Sucena,

e o poeta José Manuel Mendes.


  
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Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

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