Página  >  Edições  >  -  >  Ainda o Ritmo

Ainda o Ritmo

Victorino d’Almeida diz no seu livro “Música” (1993): todos sabemos que um jantar animadíssimo pode transformar-se numa sessão de penoso e indigesto convívio a partir de uma simples frase de mau gosto proferida por um comensal grosseiro ou pouco inteligente: por mais que se tente corrigir a situação, perde-se o ritmo coloquial, como se os conceitos mais elevados se entaramelassem... No quadro “A Ronda da Noite” de Rembrant, sem a figurinha de uma criança loura que aparece surpreendentemente colocada no meio dos militares e demais figuras que preenchem a tela iluminando-a com uma candura desgarrada de todo o contexto, o ritmo daquela cena seria totalmente modificado!”.

Kenji Tokitsu, doutor em Sociologia pela Universidade de Paris, e 7º dan de karaté conta o seguinte episódio no seu livro “La voie du karaté” (1979): “na sociedade japonesa, a capacidade de adivinhar o outro, desempenhou e desempenha ainda um papel muito importante na vida quotidiana. A expressão corrente hara-gei (palavra a palavra: a arte ou a técnica do ventre) significa adivinhar-se um ao outro sem explicitar os pensamentos.

Esta expressão vem da ideia arcaica de que o pensamento reside no ventre. Citarei um exemplo pessoal. Adivinhando que um dos meus amigos franceses queria uma reunião, organizei-a a contar com a ajuda expontânea dele, porque pensava que o meu papel era pôr as coisas em marcha, sendo para mim evidente que ele continuaria, uma vez que ele desejava a reunião embora não mo tivesse dito. É um comportamento à maneira japonesa. Ora, a ajuda esperada não veio, e quando discuti o caso com ele, disse-me: “não te pedi nada” - o que na altura me chocou bastante, enquanto que esta resposta parece natural a um francês. Ele queria a reunião, mas como não tinha tempo de se ocupar dela, não me pediu para a provocar, e comportou-se portanto como se qualquer coisa de agradável tivesse acontecido por acaso. Para um japonês, o desejo deste amigo era tão claro quanto o pedido explícito que ele não fez por incómodo, como é natural avançar para o que desejam implicitamente os outros”.

Nos exemplos apresentados por Victorino d’Almeida, a referência ao ritmo é óbvia, até porque se encontram no capítulo dedicado ao ritmo. O ritmo não é apenas uma questão da arte da música, e os exemplos de índole social e artística poderiam desmultiplicar-se. Quanto ao episódio narrado por Kenji Tokitsu, não poderá também inserir-se num estudo sobre o ritmo? A meu ver pode. Mais: as observações deste doutor em sociologia e mestre de artes marciais, elucidam-nos sobre uma cultura e um contexto histórico-cultural completamente diferentes dos da Europa Ocidental. Na nossa cultura ocidental, o ritmo primordial especializou-se, isto é, tornou-se uma especialidade, enquanto que nas sociedades orientais, o ritmo primordial não perdeu o sentido do colectivo social.

Não seria possível estabelecer as bases de uma sociologia do ritmo? Resposta: sim. Mais: essas bases estão lançadas. No número de Março de A Página de 1994, escreveu-se sobre a Ritmanálise. Mais dois artigos se seguiram. Para quem ler e estiver interessado, aqui vai a referência: Henri Lefebvre, élements de RYTHMANALYSE, Introduction à la connaissance des rythmes, Éditions Syllepse, 1992.

Perdoe-me o leitor que termine este artigo narrando algo da minha própria experiência de músico: no que respeita à chamada música clássica, já nem preciso de ouvir a identificação (quando se trata de música via rádio) dos executantes para percepcionar as dificuldades de uma execução colectiva. E por aqui me fico. Mas, mesmo mesmo para terminar aí vai uma tese: a Educação é uma consequência necessária da educação pelo ritmo.

Guilhermino Monteiro


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Autoria:

Guilhermino Monteiro
Escola Secundária do Castêlo da Maia
Guilhermino Monteiro
Escola Secundária do Castêlo da Maia

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo