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Retratos de Vidas Paralelas

Há histórias de vidas que se conhecem dos cafés e ruas da cidade. Histórias que se ouvem repetidamente no quotidiano, se lêem nos jornais e se vêem na televisão, mas que contadas em tom de confidência a um desconhecido se tornam mais pessoais. E mais sentidas. Depois há as amizades, mais ou menos superficiais, que se estabelecem com essas pessoas. Mesmo quando apenas tomamos café ou bebemos uma cerveja para conversar, mas com as quais, quase sem querer, se estabelece uma relação implícita. É o caso das pessoas cujas histórias são descritas no texto, que relatam, de uma ou outra forma, vivências com uma característica comum a todos elas: fazem parte de uma minoria cujo único sentido se orienta quase exclusivamente à volta do consumo de drogas pesadas ou álcool, e para quem a vida é pensada sempre em termos de dia seguinte. Uma minoria que, aos poucos, vai alargando o seu leque de elementos para se ir tornando numa legião de deserdados da vida.

OBJECTIVO: SOBREVIVER

Uma dessas pessoas é C.A., 34 anos, "desempregado de profissão" como prefere dizer. Isto, porque desde que ficou "agarrrado à poeira", há quase quinze anos, nunca mais conseguiu arrranjar uma ocupação remunerada. Na zona de Francos, onde reside, é conhecido por "meio-saco", apelido que tanto poderá significar pessoa baixa como pessoa de pouca confiança. No que respeita a C.A., o adjectivo pode ser aplicado nos dois sentidos. O andar arrastado, a roupa suja de dias e a tez amarelada da face, característica de um fígado doente, habituado a anos consecutivos de heroína consumida por via intravenosa, traçam um retrato de degradação a que é impossível ficar alheio.

Os dias de C.A. são passados da mesma forma que os anteriores. Depois de acordar, e antes do almoço, desloca-se sempre à consulta para recuperação de toxicodependentes onde lhe é entregue a dose diária de metadona, substância não tóxica, alternativa à heroína, utilizada no tratamento. A dose, porém, será vendida mais tarde num dos cafés onde costuma parar, a um outro qualquer toxicodependente, trocada por comprimidos ou um "pacote". O mais caricato é saber que todas estas transações são medidas em gotas de "produto", ou seja, de metadona, como explica de forma pormenorizada. Ao longo da tarde e à noite C.A. dedica-se a outra tarefa: servir de intermediário na compra de heroína ou haxixe, função a partir da qual retira sua percentagem antes da entrega ser consumada. É desta forma que, diz, "consigo fazer algum dinheiro para mim e ficar com um ou dois pacotes de heroína para consumo". Isto, além dos trocos que, aqui e ali, vai pedindo a quem passa.

Ao longo da conversa foi também possível descobrir-lhe sonhos. Apagados pelos sulcos marcados na cara e pelas mazelas das feridas nos braços, é certo, mas sonhos. Como, por exemplo, gerir o seu próprio bar. "É uma coisa em que venho pensando há muito tempo, mas precisava de bastante dinheiro. Pode ser que um dia...". Outro das suas ambições era ter tido era um filho. "Um puto a quem pudesse ensinar a não fazer as mesmas coisas que eu fiz". Mas nesta altura compreende ser um pouco tarde para tal. Além disso, confessa, tem receio de ter contraído o vírus da SIDA a partir da troca de seringas com outros toxicodependentes. "Há dez anos não se ouvia falar disso e era de qualquer maneira". Por recear o resultado, nunca efectuou nenhum teste de rastreio.

Um modo de vida que, à primeira vista, não o parece incomodar, tal é o à vontade com que fala da questão e a relata como se abrisse as páginas do seu diário. Ou talvez seja a proximidade de vizinhança que o faça sentir-se mais confortável.

SUSTENTO DE FAMÍLIA

Mas se falar com C.A. se revelou tarefa relativamante fácil, já entrevistar J.L., 29 anos, traficante de haxixe e consumidor desta e outras drogas, foi mais difícil. Depois de antecipadamente se ter combinado uma conversa em que o anonimato foi exigido como única condição, a vontade de falar só foi puxada a troco de um café, um croft e duas cervejas, sorvidos ao longo do encontro. Que "isto das entrevistas não é qualquer um que dá", justifica-se. Escolhido o local apropriado -"as paredes têm ouvidos", assegura-, J.L. foi desenrolando a sua história e os motivos que o levaram a optar por este modo de vida.

Até cerca dos 21 anos, foi trabalhando em diversas firmas como paquete e conseguia amealhar o suficiente para levar uma existência tranquila. Não sabia o que eram drogas e vivia com os seus pais. Um dia "não sabe o que lhe deu na cabeça" e resolveu participar num furto a um estabelecimento. Nada correu como estavam à espera e eis que, de um momento para outro, se vê a braços com uma pena de prisão de três anos e meio. Ainda tentou recorrer judicialmente, dado ter sido o seu primeiro delito e não ter antecendentes criminais, mas de nada lhe valeu. A primeira visita a casa, em liberdade condicional, só aconteceu seis meses antes da sua libertação.

"Foi na cadeia que as coisas começaram a correr mal. Uma pessoa conhece quem não deve e aprende o que não devia aprender", conta, com a Lá dentro heroína, o haxixe ou os "drunfos" são os paraísos artificiais de que a maior parte dos presos se serve para escapar à realidade quotidiana. "Quando uma pessoa vem para fora já não consegue largar. Principalmente a heroína, que nos agarra a sério".

Com os conhecimentos que travou no interior da prisão foi fácil chegar ao tráfico de estupefacientes. Começou a vender aos poucos, a princípio apenas para pagar a heroína que consumia. Depois de ter conhecido a sua actual mulher e ter tido dois filhos, J.L. começou a ver que não tinha outro alternativa senão começar a traficar para subsistir e alimentar a sua família. "Se para uma pessoa com estudos já é difícil arranjar emprego, para quem sai da cadeia é muito mais", Além disso, e apesar do risco que corre, conta que o dinheiro que consegue fazer num mês "equivale a dois salários médios". Quando se pergunta quanto representam dois salários médios, J.L. prefere remeter a questão para o segredo dos deuses. Uma questão de ética profissional, supõe-se.

E é assim que, até um destes dias em que J.L. perder a sua estrelinha da sorte, se vai sustentando uma família e um vício, este último adquirido num local que se pretende seja de reinserção. Afinal, como tantas outras pela cidade.

"O JUSTICEIRO"

L.P. é outra das personagens citadinas que vive de expedientes ilegais e não possui trabalho fixo. Tal como C.A., também ele tem 34 anos de idade, metade dos quais passados entre muros de prisões. Ficou conhecido como "O Justiceiro", apelido retirado da série televisiva, quando uma tarde resolveu experimentar um porsche em exposição num stand, saíndo directamente pela vitrina e sem licença do vendedor. Depois "dessa e outras cavalgadas do género", conta, "passei haxixe durante alguns anos e foi durante essa altura que fiquei viciado em heroína". Acabou por ser preso novamente e, quando saiu, uma das coisas que mais lamenta é ter-se desfeito da sua colecção de "compact-discs", trocados na sua totalidade por heroína, já que dinheiro e emprego escasseavam.

Mas, apesar de aos poucos ter conseguido "largar" a heroína, foi ficando "agarrado" ao álcool. Um facto por demais evidente quando se repara nos tremores que percorrem a sua mão, levando de um trago o terceiro brandy pedido nessa tarde. A voz, essa, também não se assemelha à de alguém que beba propriamente sumol. Habitualmente, L.P. não é uma pessoa a quem se consiga chegar facilmente. A experiência de vida marcou-o a ponto de não revelar muita da sua existência. Fala, porque sim. Também porque, indisfarçavelmente, sente uma pontinha de orgulho em contar todas estas "malvadezas". Os "bons velhos tempos"...

Só a custo, e a partir de informações anteriormente recolhidas junto de um amigo comum e da garantia de anonimato, confidencia que, actualmente, o dinheiro para o "copo" e para a ajuda em casa arranja-o através de expedientes menos claros, como a venda de relógios, "compact-discs" e outros electrodomésticos de proveniência duvidosa, comprados por preços de pechincha, que mais tarde se encarrega de revender com lucro. "Os meus pais já estão reformados e não é agora que vou arranjar um trabalho. De qualquer maneira, e com o passado que tenho, era bastante difícil. Por isso, a vida tem de se ir fazendo destas coisas".

Perspectivas de um futuro diferente não parece ter muitas. À semelhança, aliás, dos outros dois intervenientes. Uma minoria?

Ricardo Jorge Costa


  
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Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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