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Por falar em Formação Centrada na Escola, ou... Projecto Educativo, a Quanto Obrigas...

No último número, em torno da questão da autoridade pedagógica, considerávamos que a possibilidade de o professor a exercer segundo a sua forma tradicional, isto é, tendo por referência legitimatória a sua condição de representante do Estado e o respectivo estatuto, corria riscos de se tornar um anacronismo institucional. A afirmação presumia-se sustentada no reconhecimento do recuo do Estado, relativamente ao desenvolvimento directo do sistema educativo, como consequência do reconhecimento da impossibilidade de continuar a gerir centralmente realidades locais, que se tornaram ingeríveis por força da massificação escolar e da correspondente heterogeneidade social, articulada negativamente com a precarização das famílias e consequente autonomização das redes de socialização adolescente e juvenil, em boa parte, patrocinada pela própria escola e aprofundada pela continuidade da frequência escolar, como alternativa à crise no mercado do trabalho.

Neste contexto, aparece o projecto educativo que se propõe territorializar o sistema segundo uma lógica que é a da resolução colectiva de problemas a nível local. Mas, de facto, e sem ironia nenhuma, o que o projecto educativo parece visar, em primeiro lugar, é resolver os problemas a nível central. O que, em termos de filosofia do projecto, não deixa de comportar uma incómoda ambiguidade, para não lhe chamar perversão, se considerarmos que, na génese da ideia de projecto, o poder de tomar a iniciativa é inalienável do processo da sua construção, na exacta medida em que o projecto nada mais é que realizar coisas interessantes por si mesmas, porque correspondem a interesses auto-reconhecidos.

Ora, ou muito me engano ou é, precisamente, aqui, neste transe de ambiguidade/perversão, que reside a chave da compreensão das dificuldades que vêm rodeando o processo de implementação do projecto educativo nas escolas. Por um lado, ele é parte do sistema global, por outro, não pode prescindir da iniciativa e empenhamento locais, como se de interesses próprios se tratasse.

Na tentativa de descodificar essa chave, procuremos identificar as características formais do projecto, enquanto intencionalidade pedagógica. Um projecto educativo é sempre mais uma filosofia de acção, do que uma técnica. Mesmo quando se centre em problemas concretos, as soluções não se objectivam segundo uma relação meios/fins tecnicamente assegurada. É que os problemas concretos, até quando se procura materialmente identificá-los, são sempre simbolicamente condicionados, isto é, dependentes de quadros de significação próprios que organizam diferentes percepções do concreto. Como os quadros de significação são função da prática social e profissional e dos diferentes interesses nela inscritos, que, por sua vez, a vão modificando, a diversidade de leituras do concreto sobe à medida que se fecham as práticas, constituindo isso o obstáculo central do projecto educativo. Ao mesmo tempo, porém, a sua legitimação de fundo. De facto, o primeiro problema a que procura responder o projecto educativo é o de construir uma linguagem comum no sentido de viabilizar a acção comunicativa, isto é, a abertura à diferença e à interinfluência. Sabe-se como a prática comunicacional no interior das escolas, constitui um problema institucional crónico, para não dizer constitutivo da sua própria cultura organizacional. Desde os modelos de formação inicial e contínua à especialização do trabalho docente, passando pela compartimentação curricular, isolamento no exercício do trabalho e segmentação homogénea do tempo, os professores são condenados a trabalhar sozinhos, resultando daí, frequentemente, uma estranha e contraditória forma de viver a profissão, que se exprime num sentimento de autosuficiência, por um lado e de insegurança, por outro.

Este sentimento é paralisante e agrava-se, nos seus efeitos contraditórios, tendendo para a atrofia profissional, à medida que se multiplicam os factores da incomunicação O trabalho de equipa, que é uma outra característica formal do projecto educativo, propõe-se ser uma forma de restabelecer a comunicação; só que o trabalho de equipa não se faz sem mediação. Esse é o papel dos interesses. Que interesses devem ser esses para que as pessoas sintam necessidade de juntar-se para trabalhar, eis a questão. É aqui que se decide se o projecto educativo é ético ou burocrático. Para que o trabalho seja ético é necessário que ele corresponda à realização de convicções. Para que o trabalho seja burocrático é, apenas, indispensável que conste de registo escrito, de preferência...

Quanto às convicções, que transportem interesses para lá da esfera individual, que sejam reconhecidos no plano profissional, moral e social, o tempo não ajuda... A escola do bem comum, onde muitos de nós nos revíamos, da cidadania e da justiça social, foi desaparecendo à medida que ela ia ficando acessível a todos. Estranha ironia esta... Por outro lado, nem a ciência, nem a técnica bastam para fundar as convicções, sendo em nome delas, (ciência e técnica) que, justamente, se espera o melhor do nosso trabalho. Não há nenhum "penso (mágico), logo projecto" que, cartesianamente, nos valha...O projecto é uma invenção, um trabalho artesanal, onde a obra se vai modelando à medida que vai sendo trabalhada. Pode fazer-se e desfazer-se , avançar e recuar, que nunca será perder tempo: vir atrás é ver à frente. Como na vida de todos nós, afinal. Demasiado miúdo e apagado este trabalho, será... Por isso, nunca ninguém o poderá fazer sozinho. É um trabalho cuja obra é ir construindo convicções, desconstruindo outras, tendo como suporte da identidade própria a participação na identidade colectiva. Como diria DEWEY "o estabelecimento da cooperação numa actividade em que haja parceiros, modifica a actividade de cada um e regula-a pela actividade do próprio grupo".

Ou, parafraseando, J.A. CORREIA, mais perto de nós, o projecto aposta no envolvimento, mais do que no desenvolvimento, mais nas pessoas e na sua difícil arte de existir nos dias de hoje, do que na sua funcionalidade instrumental.

Não sei se a ambiguidade do projecto educativo, a que acima me referia, terá sido reduzida perante o leitor. Admito que sim, como me convém. Em contrapartida, suspeito que terei criado em seu lugar a incompatibilidade. Estranho destino, o do projecto. Como o da utopia...necessária.

Manuel Matos/FPCE


  
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Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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