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Dois pesos e duas medidas para a abstenção

1.- O Dr. Jorge Sampaio foi reeleito presidente da República Portuguesa no passado mês de Janeiro por larga maioria. Não foi surpresa para ninguém. Se surpresa houve foi o facto de quase metade (49,1%) dos eleitores potenciais terem decidido não comparecer nas urnas de voto. É a percentagem mais alta desde a instituição do sistema democrático em Portugal. O caso causou alguma comoção. Foram encomendados "estudos científicos" para averiguar as razões ou motivações dessa falta de comparência, considerada "excessiva", "anormal", "preocupante", ou até "alarmante" pelos encomendantes, que foram vários. Aguardemos pelos resultados desses estudos, se vierem a público.

2.-Há, porém, uma questão que não depende dos estudos encomendados. É uma questão prévia, uma questão teórica de grande alcance, que não se esgota, por isso, em nenhuma conjuntura política. Mais, é uma questão em que todos temos pelo menos algumas qualificações para nos podermos pronunciar: a abstenção é sistémica ou anti-sistémica ? Se preferirem: a abstenção é (tanto como o voto) um elemento estruturante, um factor de regulação interna do sistema de governo conhecido por "democracia", ou, ao invés, um elemento desagregador, um factor de desregulação desse sistema?

3. - Embora seja um exercício arriscado para o espaço curto desta rubrica, vou tentar explicar porque é que a segunda resposta - a de que a abstenção é nociva para a democracia - conduz inevitavelmente os seus proponentes a um beco escuro e sem saída, exactamente aquele a que foram conduzidos pelo seu próprio pé os muitos detractores da abstenção. De caminho, procurarei mostrar que "não nada há de mais prático do que uma boa teoria" (a frase, salvo erro, é de Kurt Lewin), no caso em apreço uma teoria da democracia isenta dos contra-sensos e contradições da que goza dos favores de muitos políticos e politólogos.

4.- Refiro-me, neste caso, à teoria segundo a qual a democracia é o governo do povo, que o povo (isto é, o conjunto da população adulta) é o único e verdadeiro governante. Este é o lado doutrinário da teoria, o mais enganoso, porque é evidente que em parte alguma é o povo quem governa. Quem governa são os governos e os partidos políticos que os apoiam. É para isso que existem e é isso que fazem, na esmagadora maioria dos casos coadjuvados por poderosas organizações de interesses económicos. A consequência principal deste facto, do ponto de vista prático, é a de obrigar a teoria da democracia como governo do povo a abandonar a premissa em que assenta, substituindo-a pelo princípio mais prosaico de que ao povo cabe escolher, por voto maioritário, os seus legítimos representantes (leia-se: os seus governantes) nos órgãos de Estado.

5. - Olhemos então para os 49,1% de abstencionistas à luz da concepção segundo a qual a democracia é o governo do povo. Obviamente, se quase metade do povo não se dá sequer ao trabalho de ir escolher os seus representantes, de duas uma: ou o povo se está a afeiçoar à ideia de que nenhum partido político ou nenhum dos seus chefes o representa condignamente (e, nesse caso, para que servem os partidos políticos e os políticos mais ou menos profissionais?), ou o povo está a desinteressar-se da democracia. Em democracia, porém, o verdadeiro e único governante é o povo. Deveremos então concluir que o povo decidiu desgovernar-se ?

6.-Perante este dédalo de paradoxos, compreende-se que a inquietação e o embaraço reinem nas hostes daqueles que vêem na abstenção o inimigo a esconjurar. É óbvio, porém, que se trata de um inimigo imaginário. As dificuldades teóricas em interpretar os resultados da abstenção desaparecem se adoptarmos uma outra concepção de democracia. Esta: o sistema democrático é aquele em que os governados, que são a imensa maioria, têm o poder constitucional (a constituição em causa não tem que ser necessariamente um documento escrito) de substituir os governantes sem terem de recorrer à violência, sem terem de pegar em armas, sem terem de travar lutas cruentas e, no limite, uma guerra civil, sem necessidade, em suma, de arriscarem a sua liberdade ou até a sua própria vida para o conseguirem.

7.- Deste ponto de vista, a democracia é um mecanismo destinado, antes de mais, a impedir a instauração de uma ditadura (é o seu lado preventivo) e a limitar os danos causados pelo abuso ou mau uso do poder detido pelos governantes (é o seu lado correctivo). Pode parecer pouco. Mas quem viveu sob uma ditadura, ou quem não tenha tido essa experiência mas olhe, com olhos de ver, o que se passa por esse mundo fora, sabe que é muitíssimo, um bem precioso.

8.- Olhemos então, de novo, para os 49,1% de abstencionistas nas eleições presidenciais, mas desta vez à luz da teoria que acabou de ser enunciada. Estavam em liça 5 candidatos, todos homens de partido, que representavam todo espectro partidário com representação parlamentar e até, num caso, sem representação parlamentar. Três deles justificaram repetidamente as suas candidaturas com o palpite de que o presidente cessante "já estava (re)eleito". Para bom eleitor meia-palavra basta. Não estavam realmente na corrida presidencial. As suas corridas eram outras. A disputa resumia-se, pois, a 2 candidatos: o militante do PS que proclamava ser "por todos nós", e o militante do PSD que dizia ser "o candidato dos não-socialistas", duas impossibilidades lógicas. Creio ser esta uma base suficiente para explicar tão elevada abstenção.

9.- Seja como for, o ponto é este não precisamos de fazer o elogio da abstenção para entender que democracia e adrenalina, não estão necessariamente ligadas. As eleições não têm que ser empolgantes. A democracia não se confunde com os desportos radicais. É apenas um mecanismo (o melhor que se inventou até à data) para vivermos em liberdade sem termos que matar os nossos governantes e, sobretudo, sem termos que nos matar uns aos outros por causa deles - nós, os governados, ou se quiserem (e com devida vénia), o povo.

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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