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Democracia e Gestão da Escola Pública

O caráter autoritário, burocrático e antidemocrático da administração do ensino público, como parte de uma administração denominada pública no Brasil, não é apenas conjuntural, mas estrutural, pois depende de políticas públicas que por sua vez decorrem de uma desigual correlação de forças entre as elites do poder e a população. Administrar a educação e a escola é muito mais implementar decisões políticas já tomadas do alto do que produzir decisões relacionadas à educação. Duas tentativas históricas de romper esta lógica merecem ser consideradas.

A primeira tentativa de romper com esta lógica no campo da administração educacional no Brasil, foi em 1935, quando Anísio Teixeira então Secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal, ao entregar o cargo ao Prefeito Pedro Ernesto, publicou o relatório de seu trabalho, sob título de "Educação para a democracia: introdução à administração educacional". Neste relatório, Anísio Teixeira considerava a educação escolar a base de uma sociedade democrática. Escola e democracia constituíam uma unidade indivisível. Por outro lado, Anísio Teixeira convivia com uma realidade social profundamente desigual: o sistema educacional dualista, uma escola erudita para a burguesia e outra profissionalizante e em número reduzido para os filhos dos trabalhadores. Anísio Teixeira pretendia uma administração democrática, mas sua formação liberal e o pensamento de John Dewey como suporte ideológico não garantiram a consolidação de um projeto educacional democrático.

A segunda tentativa de romper com esta lógica, foi no contexto das greves do magistério público na segunda metade da década de 1970, em pleno regime da ditadura militar, quando o capitalismo se encontrava na fase de expansão continental, materializada pela rede de bancos e de empresas estrangeiras que se implantava no país, época denominada pela mídia como a do milagre brasileiro. A questão democrática se tornou uma questão de soberania. Os movimentos sociais desencadearam amplas lutas pela democratização do Estado e da Sociedade, suscitando a criação de partidos de esquerda, de sindicatos e da Central única dos Trabalhadores, culminando com a proclamação da Constituição Cidadã em 1988 e as eleições gerais. A democracia constituía a grande esperança de emancipação.

O movimento de democratização do Estado e da Sociedade fortaleceu as reivindicações dos sindicatos em três dimensões: a) organização política das classes trabalhadoras; b) enfrentamento do arrocho salarial produzido pelo esgotamento do fordismo e do estado de bem estar social através de greves anuais; c) eleição direta para dirigentes de escolas, universidades e associações científicas, controle das verbas destinadas e aplicadas na educação e participação na elaboração das políticas públicas de educação.

Participação enriquecedora

Na escola pública algumas práticas de participação começaram a enriquecer o cotidiano escolar. O processo eleitoral de dois em dois anos para eleger dirigentes escolares, introduziu a disputa política, substituindo o velho sistema clientelista de indicações de diretores de escola pelos políticos locais. O Conselho de Escola e Comunidade composto por membros representativos da escola e da comunidade fortaleceu a participação nas decisões administrativas e pedagógicas. O retorno dos Grémios Estudantis Livres abriu uma perspectiva para a educação política dos alunos. O direito de filiar-se a um sindicato e de organizar associações de pais e de professores veio contribuir para mudar a cultura autoritária da escola. O pensar, o decidir e o fazer coletivos começavam a democratizar a escola. Este é período denominado de transição democrática das décadas de 80 e de 90.

Embora estas práticas de democracia representativa tenham sido conquistadas no bojo dos movimentos de democratização do Estado e da Sociedade, a sua eficácia, a partir de 1995, no contexto das políticas (neo)liberais de educação, está sofrendo críticas dos governos e desconfiança dos educadores. No âmbito da gestão, a mais recente Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional é omissa em relação à participação popular e tímida quanto à participação dos professores, funcionários, pais e alunos. No cenário nacional, os governos embalados pelas políticas (neo)liberais alardeiam que esta escola pública está falida, porque não há verbas capazes de mantê-las, e a escola do futuro deverá ser uma escola em parceria com as empresas e com a comunidade. Em contrapartida, os focos de resistÍncia em cenários regionais, quer pela iniciativa de sindicatos, de administrações municipais e/ou estaduais de partidos de oposição e de grupos ativos do Movimento dos Sem Terra (MST) vêm produzindo um número expressivo de escolas públicas que assumem o compromisso de fortalecer a idéia da construção de uma sociedade democrática de massas. Nestas escolas a participação popular é intensa.

Numa das escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, no município de São Gonçalo, onde realizo uma pesquisa sobre a participação das classes populares na gestão da escola, alguns fatos ocorridos no cotidiano confirmam a participação das classes populares, apesar da interferência das políticas (neo)liberais implementadas pelo governo estadual. No entanto, dirigentes, professores e funcionários sentem dificuldade em reconhecer esta participação. Dialogar com as famílias e com as crianças das classes populares, registrar seus saberes e suas culturas, ouvir suas vozes e compreendê-las, pressupôe uma reeducação dos educadores, uma postura aberta ao outro enquanto sujeito, conforme escreveu Paulo Freire: a participação do povo deve ser "um estar presente na História e não simplesmente nela estar representadas ".

Abertura à diferença

Ouvir e compreender as falas dos pais, das mães e de seus filhos é o primeiro passo para desencadear um movimento de participação popular na escola pública. Quando um pai ou uma mãe pede à direção para discutir a disciplina da escola, na realidade eles pretendem demonstrar sua discordância com as práticas de disciplina vivenciadas na escola. Um senhor aposentado, antigo porteiro de edifício, mas que estava sempre presente na escola na hora do recreio, como colaborador voluntário, ao final de uma das reuniões da Associação de Apoio à Escola para prestação de contas, pediu ao grupo que se discutisse a disciplina nos recreios. A coordenadora da reunião imediatamente lhe disse que não poderia discutir a disciplina, porque ainda não havia discutido com as professoras.

Um ano depois, em outra reunião, convocada a comunidade para discutir o estatuto do funcionário público e o regimento escolar, surgiu de novo a discussão sobre a disciplina nos momentos dos recreios. As professoras alegavam que não poderiam participar dos recreios, porque deveriam almoçar e preparar as aulas da tarde. As mães retrucavam que não tinham condições para participar dos recreios dos alunos, por diferentes motivos: cuidar das crianças, fazer almoço, buscar filhos em outra escola. De repente, as mães começaram a se levantar, e uma delas disse: "Sou viúva, pedia esmola para alimentar meus três filhos. Agora não peço mais, porque me disseram que se continuar pedindo esmola, o governo pode tomar meus filhos. Trago eles para estudar aqui. Se um deles machucar, processo o Estado." A diretora presente na reunião respondeu à mãe: "Se você processar o Estado, sou eu responsabilizada pelos danos causados ao seu filho". A mãe voltou a dizer: "Coloquei meus filhos aqui para ser educados. Os meus filhos não vêm à escola para brigar e machucar. Vocês precisam reivindicar do governador mais funcionários. O recreio é da responsabilidade de vocês. As mães se levantaram e a reunião praticamente se encerrou. No segundo semestre letivo, a direção conseguiu dois professores de educação física para organizar jogos e permanecer com os alunos no momento do recreio.

Nesta mesma escola, o "dia das mães" foi comemorado de forma inteiramente nova. As salas se tornaram salão de beleza, e as mães se revezavam fazendo cabelo, unha, limpeza de pele umas das outras. Neste mesmo dia, foi organizada uma reunião com diversas líderes para discutir a violência contra as mulheres. Professoras, mães e dirigentes comunitárias se uniram para estudar formas de como agir em situações de violência contra a mulher. Há um movimento de se formar um grupo permanente para denunciar as formas de violência que as mulheres vêm sofrendo em família e na comunidade.

A minha atual pesquisa nessa escola pública vem permitindo descobrir práticas de democracia direta no cotidiano da escola, principalmente no que se refere à atuação de novos sujeitos individuais e coletivos na luta pelos direitos violados. Novos espaços de reflexão e de construção coletiva de conhecimentos estão sendo criados, as oficinas pedagógicas em lugar de mesas redondas, palestras ou conferências. A primeira oficina que despertou a comunidade e a escola foi a oficina de gestão democrática. Os alunos presentes discutiram a possibilidade de organizar o grÍmio. Os adultos passaram a examinar as diferentes formas de participação existentes na comunidade. Representantes de professores, de funcionários e de pais já estão pensando como organizar o Conselho de Escola e Comunidade.

A segunda oficina coordenada pela Professora Marília Lopes de Campos, da Secretaria Municipal de Educação de Angra dos Reis, levou os participantes para o mundo da História Local. A construção coletiva do mapa falante da escola instigou a todos os participantes a registrarem a história do bairro e dos bairros mais próximos. A realização destas duas oficinas incentivou os professores da escola a construírem novas oficinas no decorrer deste novo semestre letivo. Estão previstas oficinas de avaliação, de artes, de geografia e de matemática.

A participação de pais e mães em alguns assuntos administrativos da escola está estimulando professores e professoras a exigirem seminários e materiais didáticos produzidos pela Secretaria Estadual de Educação. Enquanto estes não chegam as oficinas cumprem o papel de abrir novos caminhos de construção coletiva dos conhecimentos, e principalmente de diálogo com a comunidade. A atuação de novos sujeitos individuais e coletivos no movimento de participação do cotidiano escolar já começa a desconstruir a lógica autoritária e burocrática da gestão da escola pública.

João Baptista Bastos
jbastos@bridge.com.br
Universidade Federal Fluminense - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil


  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

João Baptista Bastos
Univ. Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasi
João Baptista Bastos
Univ. Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasi

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