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A monodocência coadjuvada

Não irei falar-vos de aferições. E, se não cedo à atracção da ordem do dia é porque nas aferições (como em outros assuntos) a argumentação assemelha-se ao voo da mariposa em torno da luz. Tal como sucede com o insecto, o volteio dura enquanto não se extingue a luz que gera a curiosidade, cessa consumido pelo fogo que o transforma numa cinza que não fertiliza, nem nada.

Falar-vos-ei de algo que tem andado arredado das agendas dos debates, mas que é um tema recorrente nestes meus exercícios de escrita penitencial. Como anda tudo ligado, também se poderá estabelecer uma qualquer relação com o objecto rejeitado.

Em 1990, fiz registo das minhas dívidas relativamente ao modo como vinha sendo assegurada a "coadjuvação em áreas especializadas", nas primeiras "escolas básicas integradas", uma das quais se situava no meu concelho.

Não era a primeira vez que dava conta das minhas preocupações relativamente às fragilidades do regime de monodocência. Ciclicamente o tinha feito, no início da década de setenta, e no lançamento dos programas de "capa amarela" e de "capa verde", na transição para a década seguinte. Manifestei a mesmíssima apreensão, há alguns dias, no decurso de um debate público. Presumo que seja possível voltar ao assunto lá para o ano 2010. Entretanto, deixar-vos-ei com um punhado de reflexões avulsas, que poderão ser tomadas como postulados ou teses para eventuais reflexões.

Primeira proposição: a prática da monodocÍncia contribui, significativamente, para uma redução drástica do currículo real, para o reforço da "guetização disciplinar", e para o reforço de um sentimento de auto-suficiência em tudo contrário à ideia de cooperação e de projecto. A continuidade do regime de monodocência acarreta uma redução drástica do currículo real, a sobrevalorização das áreas nobres (Língua Portuguesa e Matemática), em detrimento das chamadas áreas das expressões, que ficam reduzidas a um conjunto insignificante e desarticulado.

A monodocência no primeiro ciclo contribui para a "guetização disciplinar" característica dos ciclos subsequentes, quando origina imitações da organização em disciplinas. Em alguns "agrupamentos verticais" (que raio de nome!), até já são feitos horários por disciplinas para o primeiro ciclo, talvez efeito perverso da chamada "gestão flexível". Porém, mau grado o velhíssimo apelo às áreas disciplinares no ciclo seguinte e a admissão do pressuposto de um ensino globalizante e integrado no primeiro dos ciclos, a disciplinarização sempre existiu no desenvolvimento de um currículo que sempre esteve reduzido a um terço daquele que sucessivas leis prescreveram.

Atravessámos em total impunidade décadas de currículos amputados, em nome da sacrossanta monodocência. Sob a sua égide, as áreas da formação pessoal e social e de expressão artística ou físico-motora foram banidas, a Língua Portuguesa e a Matemática foram extirpadas de objectivos que uma precária formação nunca permitiram abordar.

Há uma década, o Conselho Nacional de Educação apontava a necessidade de "uma nova organização escolar, orientada para a flexibilização na constituição dos grupos de ensino, e a actuação globalizante dos docentes organizados em equipas educativas". De que modo tem correspondido a coadjuvação para o desenvolvimento de culturas de cooperação? Não terá agido mais no sentido da "substituição"?

Segunda proposição: a coadjuvação em áreas específicas apenas parece contribuir para colmatar lacunas, para introduzir "compensações" curriculares que perenizam o modelo tradicional, para desqualificar profissionalmente os professores generalistas, e para manter culturas profissionais autistas no contexto da educação básica.

Temos andado a insistir numa reflexão em circuito fechado e até mesmo um documento recente divulgado pelo INAFOP reforça a tradição que diz dever ser o ensino no 1º ciclo "da responsabilidade de um professor único, eventualmente coadjuvado em áreas especializadas". E nada se acrescenta que fundamente tal prescrição.

Se já o artigo 8º da Lei de Bases apontava para soluções mais avançadas que as actuais, porque se procura colmatar lacunas apenas nas "áreas de expressão"? Porque não também em Português ou em Matemática?

Do modo como vem sendo desenvolvida, a coadjuvação confirma lacunas na formação dos professores generalistas e contribui para os desqualificar profissionalmente. Contribui ainda para manter o autismo cultural entre profissionais do mesmo ofício separados por vivências em diferentes "ciclos" de uma mesma educação básica, diferentes formações, diferentes estatutos dentro do que deveria ser um estatuto único... Entre muitas situações anedóticas a que poderia recorrer para ilustrar a afirmação, refiro uma que foi descrita, recentemente, por uma professora. Quando o setôr de Educação Musical entrou na sala, a colega "monodocente" encostou-se à parede, para ver como era... Logo o professor "monodisciplinar" sentenciou: - "Quero dar a aula. Agradecia que a colega saísse".

A proposta de "reorganização curricular" refere a necessidade de "reforçar a consistência entre os diferentes ciclos" da Educação Básica. Mas de que modo a manutenção da monodocência coadjuvada contribui para a concretização deste desiderato? Onde existe complementaridade e sequencialidade entre ciclos se, já na formação inicial, correm abaixo-assinados em que os alunos da licenciatura "monodocente" exigem que os seus colegas das variantes sejam proibidos de concorrer a lugares em escolas do 1º ciclo?

É possível ultrapassar dicotomias como monodocência-pluridocência, generalista-especialista, 1ºciclo/2ºciclo, disciplina-área disciplinar, individualismo-cooperação... Na proposta de "perfil geral de desempenho do educador e do professor e perfil específico de desempenho do professor do 1º ciclo do ensino básico" (INAFOP), subentende-se a manutenção de cursos de formação de professores do 1º ciclo. Mas, nas actuais condições do exercício da profissão, como será possível a um professor "generalista" assegurar o "conhecimento específico" em todas as áreas? Se a formação em variantes (português, ciências, educação musical, educação física, inglês, etc.) É um facto desde há muitos anos, se estes professores estão capacitados (pelo menos teoricamente) para leccionar nas escolas do 1º ciclo, porque se continua a formar professores "generalistas"?

As práticas alternativas à monodocência e à coadjuvação poderão ser introduzidas no quadro normativo decorrente do novo modelo de direcção, administração e gestão das escolas. Os agrupamentos (denominação infeliz...) poderão viabilizá-las. Bastará que seja reformulado (com toda a prudência!) o sistema de recrutamento de docentes e criadas equipas pluridisciplinares. Contudo, haverá outros obstáculos para ultrapassar: as características da rede escolar, as características dos edifícios escolares, a formação de professores que ainda temos...

O meu optimismo diz-me que, lá para o ano 2010, o assunto há-de voltar à ordem do dia. Prometo participar (pela quinta vez!) na discussão. Cumprido mais um ciclo de dez anos, já não serei professor no activo, mas creio que também não estarei inactivo.

José Pacheco
Escola da Ponte - Vila das Aves

 


  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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