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"Quando um aluno masca "chiclet" na aula...

"Quando um aluno masca "chiclet" na aula, quando um aluno não tira o boné, quando um aluno me trata por você, quando um aluno se levanta sem autorização, eu já acho normal".

Este é um passo dum texto vindo a lume no jornal "Público" no passado 21 de Dezembro de 2000 sob o título "Um professor enxovalhado - Testemunho de um docente da Escola Básica 2,3 de Miragaia, Porto. Assina-o Ricardo Nuno dos S . F. Pinto, docente em trânsito na referida Escola.

O passo citado merece alguma reflexão justamente pela "anormalidade" que representa. Então, não há-de ser uma "anormalidade" que eu me sinta forçado a achar normal toda aquele série de comportamentos referidos, sobretudo se eles são provenientes de "alunos entre os 12 e os 17 anos que vêm maioritariamente das zonas socialmente mais degradadas da cidade, como é o caso de Miragaia, da Ribeira ou da Sé", como se lê noutra parte do texto?

Que outros comportamento seriam de esperar de quem nasce e vive "naquelas condições"? O próprio autor o diz: "Os meus alunos são, não raras vezes, filhos de toxicodependentes, alcoólicos ou presidiários. São meninos e meninas que não comem direito, não vestem decente nem habitam em segurança (...). São rapazes e raparigas que a vida tornou adultos, rapazes e raparigas que em crianças foram amarrados com cordas para estarem quietos, queimados com pontas de cigarros para estarem calados ou pura e simplesmente violados. São adolescentes que andam "ao deus-dará" sem o menor respeito pelas normas sociais, no fundo, sem qualquer futuro".

Afinal, toda a questão está aí: em ter de ser "professor", quando, talvez, fosse apenas necessário estar mais próximo da nossa comum humanidade. Como aqui tem sido repetidamente assumido, o drama da escola, hoje, consiste precisamente em adoptar soluções cada vez mais escolarizantes justamente à medida que essas soluções ampliam os seus efeitos bloqueadores. O apelo exacerbado ao exercício da função da disciplina que de todos os lados cerca o professor, desde o proclamado ambiente de "balda" das escolas até à fantasmatização colectiva da violência é um desses efeitos. Daí resulta tanto a responsabilização individual do professor, como a amplificação da sua impotância que, obviamente, se traduz num processo de culpabilização dos alunos que é simétrico do seu não reconhecimento enquanto pessoas. Este processo de culpabilização dos alunos e do seu não reconhecimento enquanto pessoas naturaliza-se sob a forma de um juízo em que as diferenças sociais são assumidas, finalmente, como características pessoais "normais".

Nesta operação de naturalização das diferenças sociais e da sua transformação em diferenças pessoais através da condição de alunos, como categoria universal, desempenha um papel central o pensar-se a escola como uma oportunidade que apaga todas as injustiças, desde que se saiba aproveitá-la. Não andamos muito longe do cinismo se pensarmos que os mais pobres e os mais injustiçados deste mundo são precisamente aqueles que mais têm a esperar da escola. Se o não fizerem o problema é deles...

Manuel Matos
Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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