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Alfredo Maia, presidente do Sindicato dos Jornalistas, em entrevista a "a Página" ( segmento 1 de 2 )

"A liberdade de imprensa corre perigo"

Iniciou-se no jornalismo há precisamente vinte anos, no jornal "O Primeiro de Janeiro", do qual chegou a fazer parte do Comissão de Trabalhadores e do Conselho de Redacção. Em 1988 integra a Redacção de "O Jornal de Notícias", onde permanece até hoje e onde é figura de referência como representante dos jornalistas. A "paixão" pelas questões do jornalismo e do sindicalismo leva-o a assumir, desde 1993, funções na direcção do Sindicato dos Jornalistas, do qual se tornou presidente em Outubro do ano passado.

 

P - O relatório do Observatório Europeu da Imprensa referia há pouco tempo que Portugal é um dos poucos países europeus que cumpre na íntegra os princípios de liberdade de imprensa. É um bom sinal...

R - No que diz respeito aos chamados direitos gerais - liberdade de publicação, liberdade de difusão, liberdade de expressão - como normalmente os entendemos, de facto cumprimos. Porém, o Sindicato dos Jornalistas considera que estamos a correr um risco muito sério de criar condições objectivas para que, um destes dias, essa liberdade de imprensa esteja em perigo.

Porque razão?

Por três razões fundamentais: pela crescente precariedade das relações de trabalho, pela concentração de meios e pela apropriação indevida, por parte de uma série de empresas, das criações dos jornalistas, recorrendo à utilização de trabalho sem que ela seja precedida da respectiva autorização do autor e sem que a isso corresponda uma retribuição adicional. Do nosso ponto de vista, estes três factores concorrem para colocar em crise, a prazo, a liberdade de imprensa.

A crescente monopolização dos meios de comunicação social é um dos principais factores?

Sem dúvida. A concentração de meios significa que estão criadas as condições objectivas para que uma empresa, ou um grupo de empresas - ou um grupo de grupos de empresas - possa exercer censura económica sobre os seus jornalistas. Desde logo, porque representa uma concentração do próprio mercado de trabalho e significa que os jornalistas verão extremamente reduzida a possibilidade de alterar as condições de trabalho na empresa ou de resolver um qualquer conflito laboral.

Que condições objectivas existem para contrariar essa tendência? O mercado é quem cada vez mais dita as regras...

É difícil, mas não é impossível. Nós temos vindo a advertir os poderes públicos e a opinião pública para este problema. De resto, o mais que podemos fazer é ganhar a consciência das pessoas, nos diversos níveis de responsabilidade, para os efeitos deste problema.

Nesse sentido, o Sindicato dos Jornalistas tem vindo a reforçar no seio da classe?

Em relação a esta matéria estou convicto de que temos vindo a contribuir para criar na classe uma maior consciencialização. E tanto é, que há já muita gente a inquietar-se com ela. Aqui há uns anos isso não acontecia. Havia muitos camaradas nossos que, inclusivamente, faziam uma apreciação positiva deste fenómeno...

Positiva em que sentido?

Porque supunham eles que seria possível obter economias de escala nas empresas, através das quais seriam gerados melhor salários e melhores condições de trabalho. E isso não aconteceu.

Pelo contrário, há hoje uma tendência em várias empresas e grupos, para alargar o conceito de dedicação à empresa ao próprio grupo. E há claramente a tendência para se impôr aos jornalistas o trabalho destinado não só para o órgão de comunicação a que ele está originariamente vinculado, mas também aos restantes. E em muitas empresas, onde não existe essa imposição, acaba por haver uma utilização de facto desse trabalho, através da sua apropriação, que depois é reutilizado noutras publicações da mesma empresa, ou por empresas por ela detidas ou participadas, ou ainda nas edições on-line.

E isso é considerado um acto ilegal perante a lei?

Do nosso ponto de vista é ilegal e completamente inaceitável.

E qual é a resposta dos grupos económicos face a essa posição?

Neste momento estamos a trabalhar muito activamente ao nível dos poderes públicos, governo e Assembleia da República (AR), com vista à regulamentação de todas estas questões. Desde logo no que respeita aos direitos de autor dos jornalistas e às edições on-line, que é actualmente uma actividade completamente desregulamentada. Ao longo de Janeiro iremos trabalhar naquilo que se poderá chamar um projecto de Proposta de Lei sobre as edições on-line, e, ao mesmo tempo, estamos a "pressionar" a AR no sentido de regulamentar os direitos de autor dos jornalistas.

É um compromisso que a AR tem desde Janeiro do ano passado, quando aprovou por unanimidade o Estatuto do Jornalista e a Lei 1/99, de 13 de Janeiro, através do qual os deputados se impunham a si próprios um prazo de 120 dias para aprová-la. Esse prazo já expirou e o parlamento não fez o "trabalho de casa", tendo produzido apenas uma audição ao Sindicato dos Jornalistas e a uma das associações empresariais. Mas em 2001, em princípio, deveremos ter os direitos de autor regulamentados.

Mas aqui coloca-se, desde logo, o problema do plano prático da sua aplicação. E neste sentido há que sublinhar que os direitos deverão ser defendidos, em primeira análise, pelos próprios beneficiários, isto é, os jornalistas. O nosso trabalho enquanto organização sindical é o de consciencializar os jornalistas para a necessidade de assumir plenamente esses direitos. Fazemo-lo na convicção de que apenas na plenitude dos seus direitos, os jornalistas poderão realizar com inteira responsabilidade o conjunto de deveres e o mandato de confiança que a sociedade permanentemente lhes exige.

A criação da Alta Autoridade para a Comunicação Social veio melhorar a comunicação entre os poderes públicos e os jornalistas?

A Alta Autoridade não tem competência nesta matéria. É um órgão da administração que visa assegurar o cumprimento de procedimentos normativos. Claro que existem também algumas competências que mexem directamente connosco, e evidentemente que a partir do momento em que forem regulamentados aspectos novos, designadamente as edições on-line, competirá à Alta Autoridade verificar e fiscalizar o seu cumprimento.

Que balanço se pode fazer do desempenho da Alta Autoridade para a Comunicação Social?

Faço um balanço globalmente positivo. O problema com que hoje se confronta a Alta Autoridade é o de ter cada vez mais competências e de elas não serem acompanhadas pelo crescimento dos respectivos meios. Tem um "staff" diminuto e tarefas cada vez mais complexas, que exigem, por sua vez, um "staff" mais adequado.

E isso não pode constituir, de certa forma, um perigo para o desempenho da profissão?

É sempre um perigo quando a administração não está dotada de instrumentos que a habilitem a exercer plenamente as suas atribuições e competências. É um perigo para o exercício da profissão e para a própria sociedade.

Qual é o perfil do jornalista hoje? Parece ser uma profissão em voga...

Sim, é uma profissão atraente... basta ver os barómetros de popularidade profissional que são publicados regularmente em alguns órgãos de comunicação social. De facto, na opinião da maioria dos inquiridos é a profissão de maior prestígio e a mais "desejada" pela opinião pública. O próprio imaginário cinematográfico e televisivo foi-se encarregando de criar uma imagem atraente da profissão - que por vezes não corresponde à realidade.

Qual é então o perfil do jornalista actual?

Os jornalistas são cada vez mais jovens e o número de mulheres tem vindo a acentuar-se. Ainda não temos os dados estatísticos dos últimos estudos que fizemos, mas, de facto, é possível verificar a presença de um crescente número de mulheres na profissão. Depois, os jornalistas possuem uma crescente formação específica na área do jornalismo. Nem outra coisa seria de esperar, com a proliferação de cursos de jornalismo e comunicação social, principalmente a nível privado.

Estas circunstâncias tendem a alterar o quadro que se verificava há uns anos, onde esse aumento de qualificação partia de proveniências muito diversas: letras, direito, e mesmo áreas de carácter científico, como medicina ou engenharia. Sucedia que muitos jovens iniciavam a sua profissão enquanto frequentavam a faculdade e muitos não concluíam os estudos. Com os cursos de jornalismo e de comunicação social essa tendência de dispersão da formação inicial veio diminuir, não significando, no entanto, que a profissão continuará a ser, no futuro, um mosaico de proveniências.

Como classificarias a qualidade da formação ministrada?

O Sindicato dos Jornalistas tem alguma responsabilidade em termos de formação - desde logo porque integramos o Centro Protocolar de Formação de Jornalistas - e temos até responsabilidade na criação do curso de jornalismo da Universidade de Coimbra. Neste momento estamos a fazer uma apreciação da formação, mas temos, de um modo geral, uma apreciação positiva da formação que é ministrada.

E queria aproveitar para desfazer um pouco a ideia que alguns dos nossos camaradas, e parte da opinião pública, têm de que um jovem que sai de um curso de jornalismo deveria chegar a uma redacção e saber fazer uma notícia ou uma reportagem. Muitos dos nossos camaradas, quando acolhem esses jovens, vão pelo caminho mais fácil, que é o de criticar.

Sobre isso temos uma posição muito clara: nenhum jovem licencado em direito sai da faculdade e no dia seguinte está na barra do tribunal. Nem pode. Tem de fazer um estágio e ser acompanhado, do mesmo modo que um jovem licenciado em medicina não está apto a exercer no dia em que termina a sua formação.

Em relação aos jornalistas é a mesma coisa: é preciso haver previamente uma emersão na realidade, que é um trabalho muito complexo. Ninguém pode dizer, mesmo ao fim de 20 ou 30 anos de profissão, que está apto a responder a todos os desafios que a profissão lhe coloca.

Como é que uma profissão com um grau tão elevado de responsabilidade social consegue conviver com níveis de precarização de trabalho alarmantes?

Essa é uma excelente questão, mas eu aproveito para chamar a atenção para o seguinte: as nossas preocupações com a precariedade no emprego não se baseiam num qualquer instinto corporativo ou de classe, estendendo-se antes à forma como esta sociedade está a encaminhar-se para recriar complicações às pessoas.

A precaridade não é um fenómeno exclusivo dos jornalistas, nem tão pouco das profissões menos qualificadas. Pelo contrário, o que se verifica é que ela atinge profissões qualificadas e mesmo altamente qualificadas: médicos, engenheiros, biólogos... Há uma série de profissões que estão desprotegidas em relação a direitos fundamentais, como o direito ao emprego. E essa é uma questão que nos deve preocupar a todos.

Como é que este estado de coisas chegou também ao jornalismo? Porque há uma série de pessoas que dirigem empresas de comunicação social que ainda não ganharam consciência dos perigos que isto representa para as próprias empresas.

Estás a tentar dizer que são meros gestores...

Não. São pessoas que ainda não se compenetraram dos riscos que isto envolve e não têm a noção de que isto significa igualmente violar as regras da concorrência. Isto, porque o empresário de comunicação social que cumpra com as suas obrigações, isto é, tenha os jornalistas - e os restantes trabalhadores - no quadro, assuma para com o fisco e para com a segurança social as correspondentes obrigações, está em desvantagem no mercado perante outro que não cumpre nenhuma destas regras ou as cumpra parcialmente.

E qual é o papel do Sindicato dos Jornalistas na denúncia dessas irregularidades?

O nosso papel tem sido o de insistir com os poderes e com as respectivas associações empresariais para que estes problemas sejam ultrapassados o mais rapidamente possível. Quando chegamos a situações de conflito, em que já não há mais nada a fazer, a inspecção do trabalho assume o seu papel.

E existem muitas situações de conflito actualmente?

Existem algumas, sim.

Do universo de jornalistas portugueses, quantos se podem considerar em situação precária?

Estamos a falar de que tipo de precariedade: precariedade das relações de trabalho ou precariedade dos salários? Porque há dois tipos de precariedade, e cada uma mais preocupante do que a outra, sendo que, em ambas as situações, os efeitos são basicamente os mesmos: a censura económica, o condicionamento dos exercícios dos direitos, etc...

Diria que em termos de precaridade do vínculo laboral temos um contingente que poderemos estimar entre 20 e 30 por cento. O nosso objectivo é reduzi-lo o mais possível.

A outra situação é muito mais complexa e não podemos adiantar números, estando directamente relacionada com a precariedade dos salários. Isto, porque a generalidade das empresas está já muito longe das tabelas das convenções colectivas de trabalho, remunerando, de um modo geral, acima da tabela convencionada, e, em muitos casos, de uma forma não declarada.

E isso deve-se a quê?

Deve-se à obstinada recusa das associações patronais em actualizar a tabela. Evidentemente que também se deve ao facto de, durante dez anos, termos tido um governo que se recusava a publicar portarias de extensão e portarias regulamentadoras do trabalho. A administração abdicava das suas competências em regular a actividade quando as partes não se entendiam.

Fruto da crescente precariedade, quer da relação laboral quer do salário, as empresas foram criando dificuldades aos jornalistas para que eles pudessem exigir a actualização da tabela. Até ao momento, não houve condições para actualizar a tabela.

Quando é que haverá condições? Ou melhor, como é que haverá condições?

Estamos a trabalhar muito activamente nisso. O nosso objectivo é restabelecer a normalidade contratual e criar condições para ques as tabelas sejam revistas, e, quando isso acontecer, elas serão melhoradas.

Que papel tem hoje a imprensa regional, tendo em conta que somos um país de poucos leitores e no qual mesmo a imprensa nacional tem dificuldades em se afirmar?

A imprensa regional tem um papel extraordinário na formação das populações e das regiões, das suas culturas, do reflexo dos seus anseios, sobretudo num quadro em que assistimos cada vez mais à generalidade dos media em orientar o seu conteúdo pela mesma agenda. E a agenda é excessivamente centrada num conjunto de acontecimentos que ocorrem à volta do Terreiro do Paço, seja ele de Lisboa ou do Porto. E os anseios, as dificuldades, as iniciativas e a criatividade das populações locais têm cada vez menor expressão. Isto significa que a imprensa regional tem um campo vastíssimo para explorar e que ainda não conseguiu explorá-lo completamente.

Torna-se é cada vez mais difícil a sobrevivência económica de muitas dessas publicações, face à crecente concentração dos meios de comunicação social...

Sim, mas esse não é um factor exclusivo...

Depois, muitas autarquias dinamizam a imprensa regional mas acabam por a caciquizar...

Isso está relacionado com uma outra questão, que é a realidade económica do espaço em que a imprensa regional intervém. Isto é, se uma publicação ou uma rádio intervém num espaço económico local ou regional que é activo e produz riqueza, que sabe orientar a sua própria estratégia comercial e de marketing para se relacionar com essas populações, o problema da caciquização dos media locais por algumas autarquias tende a diminuir. E também é certo que ganha maior independência económica.

Ou seja, se um órgão de informação local, ou mesmo nacional, depende do fluxo de publicidade originário de uma única fonte, evidentemente que vê a sua independência condicionada, significando, portanto, que esse órgão não tem condições para garantir o seu próprio crescimento.

Por outro lado, existe a concorrência dos jornais on-line que ultimamente têm conhecido um grande desenvolvimento. Que papel lhes está reservado num futuro próximo?

Neste momento o papel dos jornais on-line é o de piratear a criação dos jornalistas. Não quero ser injusto e reconheço que existem uma série de edições on-line que têm produção própria. Achamos que essas devem ser distinguidas muito claramente.

Mas há uma boa parte das edições on-line que ou se limita a reproduzir trabalhos originalmente feitos para jornais, rádios ou televisões ou se apropria de criações alheias. Há uma série de portais que se limitam a ir "pescar" aqui e ali materiais de diversos órgãos de informação. Evidentemente que, em alguns casos, existem acordos nesse sentido, mas há exemplos de verdadeiro plágio. A situação actual é, portanto, de completa desregulamentação.

O Sindicato dos Jornalistas está a trabalhar no sentido de regularizar essa situação?

Era o que dizia no início da nossa conversa: estamos a trabalhar no sentido de chamar a atenção dos poderes públicos e exigir às empresas que ponham cobro a isto, mas sobretudo estamos a trabalhar, sempre pela positiva, no sentido de sermos nós próprios a contribuir para a regulamentação desta actividade.

Em Janeiro julgo estarmos em condição de apresentar o que podemos chamar uma proposta de projecto de lei para regulamentar esta actividade, afirmando que a produção e difusão de informação só pode ser feita por sites que se assumam como empresas jornalísticas, que tenham o mesmo regime de registo e de responsabilidade civil e criminal que têm os jornais, as rádios e as televisões.

Então neste momento não há qualquer responsabilização pelos conteúdos divulgados?

Desde já vamos afastar essa palavra: conteúdos. O jornalista faz notícia, reportagem, crónica, comentário... não faz conteúdos. Esta expressão serve unicamente a essa organização tentacular que está a constituir-se a partir da exploração de materiais para edições on-line no sentido de diluir a sua importância.

Qualquer pessoa individual ou colectiva tem de proceder ao registo da publicação, tem de depositar cópias ou arquivá-las por processo idóneo, e tanto o director como a empresa são responsáveis civil e criminalmente pelas suas actividades. Numa edição on-line isso não acontece, porque é fácil apagar a informação e deixar de haver provas de que ela existiu. Não estamos com isto a defender um estado policial, mas achamos que os cidadãos têm o direito à protecção à sua integridade.

As edições on-line colocam outro problema: a intrusão de um intermediário na relação de confiança que se estabelece entre o jornalista e as fontes. Em muitas edições on-line os textos não são transpostos integralmente ou, em alguns casos, limita-se a uma síntese. E isso acarreta riscos muito grandes. Quem vai responder depois perante a justiça: é o autor do trabalho ou um qualquer intruso a esse trabalho?

De qualquer forma, pensas que as publicações on-line alguma vez irão pôr em perigo os "velhos" jornais de papel?

Penso que não. A tendência dos jornais on-line - e isso está demonstrado em diversos estudos - é o de servirem de veículo promocional do próprio suporte de papel, tendendo a assumir-se como um produto autónomo.

Entrevista conduzida por: Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Alfredo Maia
Jornalista
Alfredo Maia
Jornalista

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