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Distância não assusta - difícil é viver perto

Com esta entrada num novo século e num novo milénio temos boas razões para dizermos mal do presente e bem do passado. "Antigamente é que era; noutros tempos é que se aprendia; agora não há disciplina; isto é só falta de educação; eles agora não aprendem nada". (...)

A tentação de enaltecer o passado sempre foi uma fuga a um presente que sentimos que nos ameaça. No reino animal, o ser humano é um dos mais frágeis e fracos. Aprendeu com o tempo todas as estratégias possíveis de busca de segurança. Acima de tudo gostamos, enaltecemos, endeusamos, o que nos pode dar alguma segurança. A própria ideia de divindade e a busca da protecção dos deuses, a subserviência face aos mais poderosos, o desejo de ser como os ricos, os dos que vemos como tendo poder, são formas de procura de segurança.

Desejar o passado é como desejar voltar ao conforto e à segurança do útero materno. É a procura da tranquilidade que se obtém com o deixar de ser. Lá, nesse lugar onde não eramos responsáveis por nada e no entanto éramos tudo, é que se estava bem. Procuramos a segurança rejeitando o presente que nos agride e incomoda.

Amamos as crianças e gostamos dos jovens enquanto são frágeis e não nos desafiam. Temos uma especial ternura pelos bebés, ou melhor, pela sua fragilidade e completa dependência de nós. Gostamos do nosso cão, do nosso gato e até do periquito se o tivermos. De facto gostamos de todos os animais domésticos que não se constituam como um perigo, uma ameaça para nós. Até podemos gostar dos touros desde que eles obedeçam cegamente às instruções do toureiro e se deixem castigar e matar como forma suprema de reconhecimento da nossa aparente superioridade. A morte do touro é apenas uma forma de o homem ocultar a sua enorme fragilidade, de esconder as imensas cobardias e medos perante as pequenas coisas da vida.

Gostamos dos pobres. Gostamos tanto que se eles se mostrarem humildes podemos designá-los por pobrezinhos. Todos nos comovemos imenso com os pobrezinhos, especialmente em épocas escolhidas para a celebração da nossa pena, comoção, afirmação de bondade e de superioridade. Dar aos pobrezinhos é sentir-se um pouco mais seguro, é descobrir que não estamos tão mal como isso. Mas se o pobre levanta o olhar ou a voz, se reclama, perde o direito à compaixão e passa à categoria de malandro mal agradecido, miserável que importa desprezar e abandonar.

Nada nos impede de dizer bem dos mortos. O que parece mal é não dizer bem dos que já partiram, mesmo daqueles que detestámos em vida. O maior patife, ou seja, aquele que nos ameaçava e incomodava em vida, passa pelo menos a ter direito a que dele se diga  - não era tão má pessoa como se dizia.

As vitimas de desastres naturais, especialmente se forem pobres e de países pobres, merecem a nossa maior compaixão. Podemos não fazer nada e normalmente nada fazemos, mas o seu sofrimento é reconfortador. Dali não vem ameaça nenhuma. A nossa simpatia é sem limites para os que sofrem de acidentes vários, os que padecem de fome, sofrem de doenças várias e vivem na ignorância. Deles nada temos a recear. Desde que tudo fique como está e que ninguém apresente estratégias capazes de transformar estes pacatos e submissos seres humanos em cidadãos ameaçadores. Imagine-se o que seria se os pobres metessem pés a caminho e começasse por aí a gritar que queriam ser como nós!

Nós não somos racistas. Os negros e as negras pobres, especialmente as criancinhas, merecem-nos uma forte simpatia e tolerância. Já o mesmo não se pode dizer em relação aos negros ricos, mesmo os competentes, e menos ainda em relação aos negros com poder. Estes só podem ter atingido na vida tais patamares através da corrupção, do roubo, de actos de banditagem e de práticas antidemocráticas. É o que nos dizem os nossos jornais todos os dias. Os ricos brancos, de cultura ocidental, são cumpridores das regras democráticas, criadores de mão-de-obra e produtores de riqueza, uma benção para a nossa sociedade. Já os ricos árabes, hispânicos, alguns asiáticos e sobretudo negros, não passam de bandidos ameaçadores com os quais convém manter uma relação distante e cuidadosa.

Sem nenhum esforço amamos os velhos e as velhas. Amamo-los com menor esforço se os pensarmos como colectivo. A velhice, os reformados, os aposentados, a terceira idade, são tudo entidades que nos são simpáticas e nada ameaçadoras. Se considerados individualmente, este velho ou aquela velha podem não ser tão simpáticos. É que individualmente podem ameaçar a nossa boa existência. Colectivamente apresentam-se-nos parados, sem força, sem energia política e nós amamos e toleramos tudo o que não tem energia política, detestamos e tememos tudo o que a tem.

Listar as organizações não-governamentais e outras organizações "de bem-fazer" é um modo de perceber o que nos assusta, ou que é preciso esconjurar e também o que é necessário neutralizar para que não se transforme em ameaça à nossa segura tranquilidade.

Temos compaixão dos que morrem ou ficam estropiados nas guerras, pelas vitimas da SIDA, pelos que aguardam a execução nos corredores da morte e por todos os desgraçados desde que assumam "dignamente" a sua condição de desgraçados e deserdados da sorte.

Merecedores da nossa compaixão e interesse são todos os que nesta vida caminham cabisbaixos e agradecidos. A estes, mas só a estes, estamos mesmos dispostos a ensinar-lhes alguma coisa. Dispostos mesmo a que se aproximem um pouco da nossa excelência. Da nossa sabedoria e importância. Mas se levantam a cabeça e se exigem ser tratados como são, temos o caldo entornado. Se o caso ocorre na escola, esta, de suave e calma, transforma-se no que julgamos ser uma cultura de violência.

Perde o Mundo a serena tranquilidade com que deixa escorrer o tempo quando o débil, o fraco, o pobre, a vitima, o marginalizado, o negro, o cigano, o árabe, o jovem estudante (...) se revolta contra o que queremos fazer dele e reivindica ser como é, pior ainda, quando se atreve a reclamar o direito de ser como nós.

Pais e filhos, maridos e mulheres, professores e alunos, sogros e noras, tios e sobrinhos, vizinhos, viverão num estado de permanente simpatia e harmonia, se ocorrer andarem cabisbaixos, condição essencial de confirmação permanente de segurança mútua. Somos uma sociedade de paz e de tranquilidade quanto mais estivermos isolados, e ao mesmo tempo arrebanhados, olhando, e aceitando, o domínio das estrelas da televisão. Que melhor contributo queremos para a nossa tranquilidade do que a banalidade servida de forma cuidadosa, gota a gota, pela comunicação social?

É um problema social sempre que algum desmancha prazeres levanta a crista. Tudo se torna aparentemente desagradável, anárquico, desestabilizador, ameaçador, quando alguém se lembra de levantar a dúvida. Pior ainda se alguém se afirma divergente. Perante situações tão desagradáveis pode muito bem acontecer dar-se o caso de o pai bater no filho, o marido na mulher ou mesmo o aluno no professor. Presume-se que seja por isto que nos educaram para andarmos todos cabisbaixos e caladinhos, evitando perguntar porquê.

Na política há adversários e inimigos. A simpatia, a compaixão, o amor, são sentimentos mais fáceis de ocorrerem em situações de distância. Já o ódio ocorre mais facilmente em situações de proximidade. Os adversários pertencem às famílias políticas que nos são distantes. Já os nossos inimigos são quase sempre da nossa família política. Basta acompanhar de forma leve a vida política portuguesa para que o quotidiano se encarregue de provar esta evidência.

Os adversários, para além de não serem nossos directos concorrentes, olham-nos de longe. Os inimigos, para além de nossos concorrentes directos, olham-nos de frente e de perto. Já os que merecem a nossa protecção e nem adquirem a categoria de inimigos nem adversários, olham-nos de baixo para cima. De baixo somos olhados pelas crianças, pelos pobres e pelos cães. De frente somos olhados por alguns dos nossos companheiros políticos, por alguns colegas de trabalho, por alguns animais selvagens e, curiosamente, por vezes, até pelo nosso gato o que o torna menos simpático que o nosso cão.

A escola do passado, aquela que vai merecendo elogios e parece até ter deixado saudades, é a escola que já não nos ameaça. Já não nos olha de frente, nem sequer de longe, quando muito olha-nos debaixo. Dela podemos esquecer ou lembrar só o que quisermos ou nos interessa.

Essa escola do passado é também a que tinha como uma das suas bases de sustentação a distância. Distância entre professores, entre alunos, entre funcionários, entre alunos e professores, entre professores a funcionários, distância entre pais e escola... cada coisa no seu lugar, cada um no seu sítio. Distâncias a evitar ódios (e vida).

Essa escola do passado era hierarquizada sentindo-se todos na obrigação de olhar para cima, como que em acto de devoção e submissão. Uma escola segura. Cumpridora de normas, preconceitos, regulamentos, em que a norma era caminhar lado a lado sem levantar demasiado a cabeça, sem por em dúvida, sem ameaçar, porque acima de tudo ninguém questionava o que ali se ensinava, porque se ensinava, e para que se ensinava.

Nessa escola do passado sabia-se o que se queria, por isso não interessavam as perguntas. Sabia que queria seleccionar, que é como quem diz, separar os jovens para os diversos patamares do trabalho e da hierarquia social. Poucos destinados a olhar de cima para baixo. A maioria escolhida e condenada a olhar sempre de baixo para cima e a caminhar de cabeça baixa.

 

A escola de hoje é complexa e também por isso ameaçadora. Comparar a escola de hoje com a do passado é como comparar sacos de areia com sacos de farinha. Em comum só têm o saco. A escola que agora temos é esta. Incerta, indefinida, com rumos por traçar. Uma escola de todos e para todos, de muitas culturas que se ameaçam na medida em que se afirmam. É aqui e hoje que somos chamados a caminhar de cabeça levantada. Pôr em dúvida, questionar, criticar, propor outros caminhos (...) ainda que tudo isso seja por vezes menos simpático e se constitua em ameaça, insegurança e até algum ódio. O que não vale a pena é refugiarmo-nos na exaltação da velha escola como quem já só vive para lembrar velhos amigos ou inimigos desaparecidos.

Por agora, a escola de hoje ainda pode ser um espaço aberto, de encontros e desencontros. Espaço onde ainda se pode aprender a olhar de frente e de perto. A cultivar proximidades.

Escolher o mais fácil é fechar as portas e ir para a Net. Esta fornece a distância máxima, não questiona, não assusta, utiliza o disfarce, afirma o individualismo virtual e até permite fechar a porta da nossa casa aos vizinhos e amigos e ir para a Net fazer e produzir amizades e saberes virtuais.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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