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Ramiro Teixeira e a ficção portuguesa pós-Abril

NÃO se trata de um balanço exaustivo acerca do que se passou na literatura portuguesa depois de Abril ter chegado, mas na síntese possível ou no modo de definir uma certa escolha pessoal, pelos diferentes percursos, assim se faz um registo sobre o que de novo ou de repetitivo revelaram os vinte e seis anos já passados e vividos em Portugal desde 1974 em termos literários e em especial no domínio da prosa de ficção consolidada que está a democracia, ainda na lembrança de M.Teixeira-Gomes ter sido presidente da República e um dos grandes prosadores deste século XX quase no fim.
Foram realmente longos e alargados os factos acontecidos no domínio da literatura portuguesa pela clara afirmação da sua capacidade de renovação estética, muitos os caminhantes e bandeirantes que ocuparam o seu lugar na prosa de ficção, mas fundamentalmente pelo confirmado sentido de algumas vozes terem engrossado e valorizado os padrões estabelecidos em décadas anteriores, talvez dentro de uma visão muito própria e peculiar: as tendências inovadoras, sobretudo no campo da prosa ficcionista (como aliás na poesia), fizeram-se ouvir e sentir sem qualquer "espírito de grupo", longe de tertúlias ou de capelinhas literárias, numa espécie de "solidão essencial" de no acto criador da própria escrita um escritor procurar descobrir o seu caminho pelo valor literário das obras que publica.
Por isso, a abordagem crítica que Ramiro Teixeira faz sobre a ficção portuguesa pós-Abril, neste seu ensaio breve, e não é, como explica em nota prévia, "um trabalho que possa ser confundido com uma história da ficção neste período, mas deve ser entendido como um mero subsídio", revela-se de grande clareza e atenção pela literatura. Porém, nas coordenadas estéticas de que parte, na soma dos muitos e nomes e títulos referenciados, uns com maior compreensão do que outros, como é natural, Ramiro Teixeira não deixa de estabelecer uma visão que é globalizante do que se passou com a ficção portuguesa nos últimos anos. E por isso ensaia o entendimento perspectivado dos caminhos percorridos, sem deixar de anotar na sua perspectiva as obras e autores que mais têm merecido o seu constante acompanhamento crítico em vários jornais e revistas literárias.
Carlos de Oliveira afirmou um dia que "o que sustenta a obra literária é a sua capacidade de integrar-se no mundo pessoal dos leitores, à força de ir colhendo aqui e ali um amor frustrado, uma ideia indecisa, uma simpatia política; ou a presença da morte, o ódio à espera dum abcesso de fixação, o movimento ainda inerte aguardando o sinal combinado para começar". Assim, no olhar retrospectivo pelos anos de trabalhos e canseiras no plano da ficção, ressalta o exemplo maior da consagração da obra de José Saramago, sobretudo a partir de Levantado do Chão e de Memorial do Convento, que despertou a atenção de muitos leitores, como aliás Ramiro Teixeira não deixa de sublinhar, e abriu caminho à arte literária de um autor que soube encontrar o rumo de uma ficção bem pessoal que se enquadra na intenção ficcional de revisitar ou rever a História na efémera e dúplice visão do "sim" e do "não", do "avesso" e do "direito", do que foi "verdade" e "mentira",sempre no rasto conseguido de na multiplicidade formal e estética de que se serve, incidir ou reincidir na desmontagem das "mitologias" maiores ou menores da nossa História que tem séculos de história e nem sempre se pôde ou quis entender em toda a clareza. E por isso mesmo mereceu com toda a justiça ter sido consagrado em 1998 com o Prémio Nobel da Literatura.
Mas a par do percurso de Saramago, outros escritores merecem uma evidente referência neste período que Ramiro Teixeira abordou, porque os últimos anos foram de profícua criação e valorização da própria bibliografia: Agustina Bessa-Luís com Os Meninos de Oiro, O Mosteiro, A Corte do Norte ou O Vale Abraão, continuou igual a si mesma, sem grandes ousadias formais e sem muito ter despertado a nossa atenção nos últimos romances publicados. Mas o mesmo se não passou com Vergílio Ferreira, por exemplo, que depois de Para Sempre, publicou ainda alguns dos seus mais melhores romances: Até ao Fim, Em Nome da Terra, Na Tua Face ou esse belíssimo romance de despedida Cartas a Sandra, integrado na evidente problemática do nosso tempo, sem deixar de publicar entre 1981 e 1994 os nove volumes da tão polémica Conta-Corrente, mas importante por revelar em muitas páginas de reflexão e de anotação a clara e lúcida abordagem de problemas fundamentais de hoje, com destaque para Pensar, uma espécie de "teoria da arte" em redor do conjunto de toda a sua obra literária, que em 1993 cumpriu cinquenta anos de constante actividade criadora.
E é por aí que o trabalho ensaístico de Ramiro Teixeira avança: dentro de uma pessoal hermenêutica, fixa as coordenadas de obras marcantes no plano da ficção portuguesa e faz uma demorada e justa referência a José Cardoso Pires que enriqueceu a sua bibliografia activa com dois romances de qualidade: Balada da Praia dos Cães e Alexandra Alpha, o primeiro a incidir no tempo salazarista pela denúncia de um crime político ocorrido nos anos 60, enquanto o segundo rememora o tempo português já depois do 25 de Abril. Ou Augusto Abelaira, com Bosque Harmonioso, que prosseguiu no caminho de uma ficção marcada pela mesma ambiguidade e ironia narrativas, enquanto por sua vez Fernanda Botelho ressurgiu com Esta Noite Sonhei com Brueghel, onde se reafirma a capacidade literária de outros romances como A Gata e a Fábula ou Lourenço é Nome de Jogral. Por seu lado, David Mourão-Ferreira, concluída uma obra poética ao longo de mais de quarenta anos de ofício, mergulhou na ficção com o romance Um Amor Feliz, que por direito o colocou entre os prosadores portugueses mais importantes, enquanto Maria Velho da Costa retomou o sentido de uma singular escrita ficcional com Lucialima e Missa in Albis e Urbano Tavares Rodrigues, repetindo os rumos de uma ficção sempre bem expressiva, se apresentou com a trilogia Filipa Nesse Dia, Violeta e a Noite e Deriva, em que de novo está presente a nocturnidade narrativa entre o amor e a morte que caracteriza a sua vasta obra dividida entre a novela, o conto e o romance.
Porém, no longo rol de obras e nomes que valorizaram as próprias bibliografias, mesmo que tenha esquecido algumas outras obras (Jornada de África de Manuel Alegre, O Menino Novo de Virgílio Martinho ou À Flor da Pele de Vasco Rodrigo Lobo), salientemos que Ramiro Teixeira se atreve a abordar, no plano crítico, autores e obras de que determina as suas linhas de força e as situa dentro dos padrões estéticos e literários que são conhecidos, embora por vezes haja autores que, por razões de marquetingue editorial ou jornalístico, são colocados num plano de todo não justificado. Claro que a literatura ficcionista não se limita aos valores já afirmados e ao longo dos anos essa corrente se engrossa e renova pela afirmação de outras vozes que, repetimos, sem nenhum "espírito de grupo" aparecem com novos livros, ganham o seu próprio estatuto, merecem a atenção da crítica e dos leitores. E isso mesmo Ramiro Teixeira não deixa de pôr em relevo, atento como se mostra ao percurso da nossa literatura de ficção dos últimos anos, nas diferentes formas de afirmação, e sem deixar de apontar o dedo às obras que nem sempre têm a qualidade literária apontada por certa crítica.
E, aqui chegado, confesso que também considero não existir forma de afirmação literária, antes ou depois de Abril, que não passe abertamente pela denúncia do que acontece à nossa volta, já que um escritor deve ser, como lhe cabe, o arauto que fala um pouco mais alto por aqueles que não têm voz. E, se essa denúncia ou protesto chega ou não chega aos céus, é lá com os deuses. Mas nesta faixa ibérica, com oitocentos quilómetros de mar e outros tantos anos de História, para quem tenha boa consciência da nossa realidade social e cultural só resta enveredar por uma trajectória literária de denúncia e combate, porque a História acabará depois por fazer a necessária separação das águas entre os que disseram não ou tantas vezes clamaram sim. Mas sabemos que em muitas circunstâncias a História (ou o tempo) tem ensinado que muitos dos que foram bons passaram a ser maus, ou o contrário.
Ora, pelo seu sentido desenvolto, crítico e por vezes acutilante, este ensaio de Ramiro Teixeira cruza-se ou bifurca nisso mesmo que pela minha parte tenho repetido: ser a literatura uma essencial razão de estar vivo e nunca ter sido, como proclamo, um diletante das coisas literárias. E daí haver na minha galeria de estima e admiração, como na galeria de Ramiro Teixeira, alguns escritores que admiro e de quem não gosto, a par também daqueles de quem gosto e não admiro. Mas não há nisto qualquer contradição porque tem sido na literatura que me descubro e realizo em mais de quarenta nos de ofício, orientado mais pelos afectos e a amizade sem outras contrapartidas. Assim, se acaso outras razões não houvesse, bastava este reencontro crítico com o sentido literário do excelente ensaio de Ramiro Teixeira para poder clamar, como Cesariny, que

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura.
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come.

Serafim Ferreira
Crítico Literário

Ramiro Teixeira
FICÇÃO PORTUGUESA PÓS-ABRIL
Ed. Escritor / Lisboa, 2000.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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