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"Si vivi vicissent qui morte vicerunt"

Em Agosto, fui até Cabo Verde. O embalo das mornas, o gosto da cachupa, as casas de rés-do-chão sem reboco e sem telhado, a miséria digna de um povo sempre à espera da chuva, são as mesmas de há trinta anos. Em 1971, na hora di bai, as saudades do que era uma província ultramarina gravaram marcas indeléveis que apelavam a um regresso às ilhas. Mas foi um regresso amargo a lugares que guardava na memória, foram memórias desfeitas num regresso desencantado.
De passagem pelo Tchão Bom, visitei o Campo do Tarrafal. Lá estava o mesmo banco de pedra da fotografia tirada há três décadas, o mesmo fosso, o mesmo portão de ferro, as mesmas barracas. Nos idos de setenta, uma mistura de curiosidade, alguma audácia e inconsciência dos riscos que corria, abriu-me o acesso ao conhecimento directo (ainda que limitado) de tenebrosos segredos de uma ditadura mascarada de evolução na continuidade de uma curta primavera marcelista. Desta vez, foi diferente. O acesso ao campo esteve isento de perigos.
Na presença de lugares há muito percorridos, penetrei espaços na primeira visita interditos, perdi-me em deambulações de passos e reflexões. Tudo me parecia tão distante, tão absurdo. Não restavam vestígios do sofrimento. Onde se teria escondido a morte, companheira de exílio, destino do preso atirado para a caldeira húmida de uma cela de isolamento?
- "Mi dá caneta, sior?!"
As vozes das crianças mendicantes arrancaram-me daquele torpor, e a emoção do reencontro cedeu lugar a uma estranha tristeza. A indiferença do grupo de turistas que me acompanhavam era igual à indiferença dos meus companheiros de viagem de há trinta anos. Enquanto uns teciam comentários boçais àcerca do lugar, outros confessavam "nunca terem ouvido falar do Tarrafal"... Para que o sentimento de intensa revolta que me assaltava não me levasse a cometer algum desmando, remeti-me ao silêncio e afastei-me do grupo, até à conclusão da visita.
Se não houvesse uma placa afixada à entrada do campo da morte a evocar tempos sombrios, seria como se nunca tivesse existido um lugar onde o melhor deste povo foi sacrificado por ter alimentado ideais de liberdade e democracia. Se, como Cícero dizia, "tivessem triunfado em vida os que triunfaram na morte" ou se os vivos fizessem justiça à memória dos que condenam à indiferença, talvez vivêssemos hoje tempos menos sombrios. Ilustrarei com um exemplo (entre muitos possíveis) o paradoxo onde radica esta afirmação.
Na sede do concelho em que vivo, Carneiro Pacheco é nome de uma rua e de um centro comercial (para quem, eventualmente, não saiba quem foi a criatura, acrescento ter sido Ministro da Instrução, entre 1936 e 1940). Carneiro Pacheco foi personagem central da fase mais tipicamente fascista da ditadura. Foi um dos maiores responsáveis pela consolidação de mecanismos de repressão (citava amiúde o ditado que diz que "o medo é que guarda a vinha"). Carneiro Pacheco é celebrado na toponímia local e na cultura de ignorância e indiferença que lhe sobreviveu e que se reproduz, apesar e contra vivermos tempos ditos de Democracia.
Carneiro Pacheco (triste sina a de ter o mesmo apelido...) encarnava na perfeição o "espírito do Tarrafal", nome do lugar para onde o professor Adolfo Lima foi degredado com outros professores que apenas cometeram um "crime": o de querer educar pela e para a liberdade. Que eu conheça, não há uma só escola com Adolfo Lima como patrono...
Há dois anos, estive a trabalhar durante algum tempo em Viena de Austria. No luxuoso hall de entrada de uma instituição que tive oportunidade de visitar, deparei com três quadros rodeados por molduras douradas com mais de um século. Eram imensos, dominavam o espaço, suscitavam a contemplação. Depois de uma observação atenta das telas, li as inscrições em gótico que davam conta dos nomes dos personagens representados nas pinturas. À esquerda, em pose majestática, estava o imperador Francisco José. À direita, esplendorosa, a princesa sua esposa. Ao centro, numa pose natural e simples, um homem e uma criança. Quem seria o humano merecedor de figurar entre os mais amados e respeitados da ¡ustria de um século glorioso? A placa indicava um nome: Jacob Rodrigues Pereira.
Senti, de imediato, um assomo de nacionalismo lusitano que não suspeitava pudesse consumir-me. Mas, também de imediato, cresceu em mim uma tristeza do tamanho de um país em que se contará pelos dedos aqueles que saibam quem foi Jacob Rodrigues Pereira (o apelido terá alguma coisa de austríaco?).
Que a curiosidade conduza o eventual leitor desconhecedor do que foi o homem e a obra a procurar o esclarecimento. Talvez encontre, não só resposta para o meu enigma, mas a surpresa do (re)encontro com outros personagens que, a serem conhecidos e celebrados, contribuiriam para a reflexão necessária sobre os contornos da nossa cultura pessoal e profissional.
Permiti ainda que acrescente a este texto a subtileza de um pormenor que atesta o quanto os portugueses são dos melhores pedagogos do mundo e que dispomos de uma herança cultural (por desvendar) de que nos podemos orgulhar enquanto professores.
Na década de setenta, espantei-me com o gesto pioneiro de um Freinet que, no início dos anos vinte, teria transformado o estrado de símbolo de poder em biblioteca. Até ao dia em que, num outro livro, descobri que Adolfo Lima tinha feito o mesmo em... 1910.
É imperioso e urgente que os professores reelaborem culturas, reencontrem caminhos. Quanto mais não seja, para que os "românticos da educação" do nosso tempo (que poderão chamar-se Ana, Margarida, Lúcia, Eugénia, Arlete, Palmira, Ester, Rosa, Alzira, Daniel, Fátima, etc., etc., etc. ...) não se vejam forçados a fazer caminhadas solitárias e marginais.

José Pacheco
Escola da Ponte/Vila das Aves


  
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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