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A Lusofonia e os Lusófonos - Novos Mitos Portugueses

Com este título que só não é "aterrador" porque já Eduardo Lourenço, em 1997, tinha feito os primeiros "avisos" sobre o perigo de a Lusofonia com a CPLP (Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa) poder entrar em terrenos movediços (vidé sobretudo "Imagem e Miragem da Lusofonia", ed.Gradiva, 1999), traz agora à colação o escritor, sociólogo e historiador Alfredo Margarido, figura cimeira do ensaísmo africano, no seu recente livro publicado por Edições Universitárias Lusófonas, uma análise em torno do tema em epígrafe.
Mas mais contundente do que Lourenço, sem fazer concessões de estilo e determinado a postular "com crueza - que não é crueldade" - os "mecanismos" que, em seu entendimento, rompidos os laços que "a partir dos anos 60, devido por um lado à guerra colonial, pelo outro à emigração, tinham mantido o país unido ao Atlântico (...) a invenção da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaço, [face ao que] a maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás de nós uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português."
Margarido coloca o dilema português de se "resgatar" da história colonial entre duas dificuldades: uma, interna, que haveria de compensar os malefícios do colonialismo com uma verdadeira cooperação desideologizada (sem visos de paternalismo nem de neocolonialismo), de que a língua portuguesa seria um natural instrumento de comunicação e relacionamento, sem direitos de origem ("a língua pertence àqueles que a falam"); outra, externa, consequência das ligações e compromissos com a Comunidade Europeia, que Margarido considera impeditiva de "qualquer possibilidade de construir um 'espaço lusófono', o que põe em causa a probabilidade de organizar uma autêntica 'lusofonia'.
Não será fácil ao leitor desprevenido sobre as "resistências" dos povos das ex-colónias distinguir, nesta análise, o que é pragmático do que parece escatológico. Com larga vivência nas antigas colónias e contacto estreito com os seus povos, Margarido, apesar de europeu, não se furta à bivalência de se sentir um português-outro, aquele que se diria, com propriedade, um "luso-tropical", se esta designação não tivesse a carga ideológica e instrumental que o salazarismo foi pedir emprestada, nos anos 50, à teoria do sociólogo brasileiro nordestino Gilberto Freyre, mas já com vinte anos de atraso, para iludir o sentido inverso da sua justificação: é que se, para Freyre, o "luso-tropicalismo" servia para "explicar" o Brasil, para Salazar e os seus prosélitos o "luso-tropiocalismo", convertido em primeiro mito da política colonial, "justificava" Portugal sem "explicar" as colónias.
Concorde-se ou não com a visão "iconoclasta" que Margarido tem sobre a eventualidade de novos mitos nacionais, ou de mitos de substituição, para restaurar, a partir de boas intenções, os elos criados ao longo de quinhentos anos de relacionamento (com interdições) entre povos de cinco continentes, num ponto haverá acordo: é que, diante de compreensíveis dúvidas e suspeições do Outro, não bastará um certo e provinciano luso-contentismo, geralmente patente nas aplicações domésticas das ufanias nacionais (Eça dizia que "a alma de um país define-se bem a si mesma pelos heróis que ela escolhe para amar e para cercar de lenda"), para persuadir os parceiros da CPLP de que, pela língua comum, até se poderá constituir um império...moral, entre os outros impérios que o serão ou não.
É verdade que Portugal, por si só, não tem capacidade para exercer qualquer forma de neo-colonialismo, por ser pequeno, pobre e - depois do 25 de Abril - complexado pela (des)colonização que fez das suas colónias, desde o Brasil a Timor. Mesmo como colonizador pouco mais operou do que tirar da terra os seus frutos superficiais, fazendo agricultura e desbastando florestas. Abstraindo da generalização o garimpo no Brasil e o "resgate" de escravos em África, nem aqui se empenhou em explorar capitalisticamente o subsolo rico em petróleo e diamantes, por temer a "cobiça" das grandes potências e, como consequência óbvia, o seu aparecimento em cena de competição - como hoje se constata à saciedade através de uma estratégia negocial que ilude as formas modernas do neo-colonialismo com falsas solidariedades e verdadeiras corrupções.
Todavia, quando os parceiros da CPLP se perguntam o que intenta Portugal com a Lusofonia e os benefícios reais que dela podem esperar, não falta quem, entre eles, se interrogue se a Língua portuguesa não é a semente eterna da exploração, sempre pronta a germinar, deixada pelo colonizador - a despeito de "a língua pertencer àqueles que a falam", como sustenta Margarido, repetindo, por outras palavras, o que já diziam Amílcar Cabral e Agostinho Neto.
Menos céptico, um angolano, o jornalista e escritor João Melo, escrevia há pouco tempo no semanário "Expresso", sobre os "equívocos da Lusofonia": "A operacionalização do conceito de lusofonia (ou seja, a sua concretização na prática, através, sobretudo, de atitudes, manifestações, iniciativas e realizações) é ditada, obviamente, por interesses, pelo que nós, africanos - que já não somos colonizados -, devemos ultrapassar o complexo de vitimização, assumindo, no quadro da lusofonia, uma posição pró-activa, com base num raciocínio estratégico claro, objectivo e abrangente."
Esta adesão implicaria duas condições: a de os portugueses aceitarem sinceramente que a "sua" Língua não seja um dado hegemónico, com reservas "brancocêntricas", e que a Lusofonia se compreenda como um fruto de "mestiçagem", isto é, um resultado do contributo de todos os falantes.
Sobre outras vertentes da "estratégia clara, objectiva e abrangente" que está seguramente na mente dos parceiros, o presidente da República de Moçambique, Joaquim Chissano, fixava, dias antes da 3ª Cimeira da CPLP, realizada, em Julho, no Maputo: "A CPLP não terá futuro se não entrar na cooperação económica."
Tornar consensuais os diversos interesses que só se dilucidarão em base comum de reciprocidade, será, pois, condição "sine qua non" da durabilidade e eficácia da Lusofonia como um projecto de engenharia política. Ora, neste horizonte, Portugal há-de agir com a perspicácia, inteligência e delicadeza que convém a um país pobre e pequeno, que não tem de recorrer aos mitos que lhe deram "grandeza" para convencer os povos que colonizou de que, em todas as situações, presentes e futuras, em que os seus parceiros tenham ou precisem de contar com alguém que inspire confiança e lealdade - estará presente e solidário, com o seu capital de história e de afectos.
"Aviso" sobre os perigos das ufanias obsoletas, pela restauração insensata dos mitos que tiveram o seu tempo e utilidade, é a leitura que Alfredo Margarido nos deixa do livro que se recomenda a todos quantos, resistindo a adormecer sobre o umbigo, embalados pela música daquele luso-contentismo endogénico e conventual, recusam "que alguns dos nossos melhores vícios se transformem em virtudes."

Leonel Cosme
escritor, investigador


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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