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Crónica de um reencontro com a escola . . .

A mãe já tinha passado três ou quatro vezes por ali. Começou por olhá-la com insistência. Franziu-lhe o sobrolho. Suspirou de forma mais ruidosa e acabou por lhe mostrar o relógio.
- Tenho de desligar. A gente vê-se no sábado.
- Quase uma hora ao telefone ?
Era a Rita a convidá-la para a sua festa de anos. Já não a via há quase seis meses, lembrou à mãe. Desde que ela tinha entrado para a Escola Profissional. E talvez tenha sido por isso que, em vez do sermão, ouvisse uma pergunta certeira:
- E estiveste uma hora ao telefone só para receber um convite ?
Teria de lhe contar tudo e sabendo a mãe que tinha, Ana sabia também que isso duraria bastante mais tempo que o previsto. Falou-lhe então da felicidade de Rita na nova escola. Gostava bastante das colegas do seu grupo de trabalho, mas aquilo que mais a entusiasmava eram o ambiente, os professores e as actividades que lhes propunham realizar.
- Nunca a tinha visto tão entusiasmada com a escola ? concluiu.
- Deixa-me perguntar-te uma coisa. A Rita nessa escola tornou-se numa boa aluna ?
- Parece que sim, mãe. Mas se é uma miúda esperta, se aprende coisas úteis, se é bem tratada pelos professores, se pode vir a ter um emprego no fim do curso, porque é que pões essa cara de espanto ?
E era verdade. Sempre tinha sido uma aluna atenta e relativamente aplicada, mas os seus resultados escolares nunca tinham sido brilhantes. Os pais interessavam-se pelo que ela fazia, estimulavam-na e apoiavam-na em tudo o que podiam. Eram gente modesta, não a podiam meter em explicações mas estavam dispostos a todos os sacrifícios para ela fazer o curso que desejasse. Sempre respeitaram as suas opções, não só porque confiavam nela, como também porque mesmo que quisessem interferir não saberiam como fazê-lo. Sabiam, apenas, que ela queria ser educadora de infância e que gostava de Matemática e de Ciências. A matrícula no Agrupamento 1 não lhes pareceu, por isso, estranha. As notas do 1º período deixaram-nos, contudo, desanimados. A Rita não tinha tido negativas, mas a quantidade de dez e onzes deixou-os apreensivos. Com aquela média como é que ela entraria na "Universidade" ? Viam-na calada e tristonha e embora continuasse a estudar, a pauta não sofreu grandes alterações no 2º período. Decidiram ir falar com a directora de turma. Ouviram o que já sabiam e sentiram que havia demasiadas hesitações sempre que se falava de futuro. O 11º ano ainda vai ser um pouco mais exigente, sabem ? E no 12º são os exames. Quando saíram da reunião vinham muito mais inquietos e angustiados. A filha estudava o suficiente, era educadíssima com os professores, dava-se bastante bem com os colegas e, pelos vistos, parecia que não andava a fazer nada ali na escola. O que fazer ?
Uma noite, a filha perguntou-lhes o que é que eles achavam se ela se matriculasse numa escola profissional. Uma escola profissional ? Que ideia é essa ? Não queres ser educadora de infância ? As três perguntas saíram de sopetão da boca do pai. Ó filha, tanto sacrifício para quê ? Era a mãe a falar, preocupada e aflita como sempre. Teve de lhes explicar o que era uma escola profissional. Mostrar-lhes quais as diferenças e as vantagens.
- E quem te deu todas essas informações ?
Tinha sido a psicóloga da escola. A directora de turma, depois da reunião que tivera com os pais, marcara-lhe uma entrevista e ela tinha decidido ir. Se os pais estivessem de acordo até poderiam visitar duas dessas escolas para obter mais informações.
Os primeiros tempos da Rita na nova escola, apesar do entusiasmo com que falava das aulas, dos professores e dos colegas, apesar até das boas notas que começava a obter, foram vividos, sobretudo pelo pai de uma forma algo angustiada. Nunca lhe disse nada, mas para ele era como se a filha tivesse reprovado. Não se conformava, também, que ela não tirasse um curso superior. Era o seu sonho. Embora a Rita lhe prometesse que não desistiria dos estudos, não acreditava. Mal ganhasse os primeiros tostões tinha a certeza que nunca mais pensaria em pegar nos livros. A não ser que o curso não lhe garantisse emprego algum e ela se visse forçada, por isso, a continuar a estudar. Nenhum dos cenários, contudo, o deixava descansado. Quando o padrinho de Rita lhe perguntou, um dia, pelos estudos da afilhada, respondeu-lhe, de forma evasiva, que iam bem, mas não mencionou a sua transferência para a nova escola.
Com a mãe era diferente. Rita lia-lhe alguns dos textos que tinha que estudar. Mostrava-lhe os trabalhos individuais e de grupo que tinha feito ou onde tinha participado. Falava-lhe, como nunca antes o fizera, das aulas e das actividades da semana. Para Maria da Graça, a filha estava diferente. E para melhor. Fosse aquela escola o que fosse, nunca vira a filha assim. Nem lhe passava pela cabeça que uma escola pudesse ser uma coisa tão importante na vida de um aluno.
Foi na festa de Natal que os alunos do 2º ano ficaram incumbidos de organizar que as dúvidas do pai se começaram a dissipar. Encontrara um ambiente caloroso e humano. Conheceu outros pais, viu o espectáculo interessantíssimo que os miúdos souberam produzir com cuidado e imaginação e, no fim, partilhou a pequena ceia que tinha sido preparada com o contributo de todos. Os professores assistiram à festa. Pôde, finalmente, conhecê-los, falar com alguns deles e perceber porque é que a filha se mostrava tão implicada na vida daquela escola. Voltou para casa mais apaziguado com os seus medos, mas prometeu a si mesmo continuar atento. Quando recebeu a informação relativa à avaliação do 1º período decidiu ir falar com o Director de Turma. Queria saber a que é que aquelas notas correspondiam. Parecia-lhe fruta a mais. Como era possível uma tal transformação ? Seriam os professores daquela escola minimamente exigentes ? Expôs com a maior franqueza possível as dúvidas que tinha ao seu interlocutor e a conversa que tiveram foi, para ele, memorável. Confrontou-se com uma outra forma de ver a escola, de entender os alunos e as suas possibilidades e até de definir o que se entendia por sucesso escolar. Se os jovens conseguirem compreender porque andam nesta escola e para que é que estudam, trabalham e organizam actividades então é porque estamos no bom caminho, dissera-lhe compenetradamente o jovem professor. Para isso, é necessário que aquilo que aprendem e executam faça sentido e os estimulem quer do ponto de vista pessoal quer do ponto de vista da sua formação, concluíra. Quanto às notas verificou que não foram dadas de forma leviana. Correspondiam aos testes que tinham feito, à qualidade da participação nas aulas, ao nível dos trabalhos produzidos, ao empenho que demonstravam e a mais um ror de coisas que nunca lhe tinham passado pela cabeça que uma escola pudesse valorizar. Por isso, saiu da escola com a sensação que a filha estava bem entregue.
Era sábado. A festa estava um pouco mais calma, quando as duas se sentaram, finalmente, a conversar um pouco.
- Mas afinal, em que é que essa escola é diferente daquela onde eu ando ?
Rita sabia quais as diferenças, mas não tinha a certeza se era capaz de responder à pergunta. Não eram só os programas, as actividades e o facto de se ter uma formação mais específica que as distinguiam entre si. Tão pouco era uma escola perfeita. Lá também havia professores que só sabiam despejar a matéria, alunos completamente passados e, como em muitas escolas, as condições e os meios estavam longe de responder ao que eles necessitavam.
- Para mim, pelo menos, a diferença é grande. Se antes, estudava para não reprovar, agora estudo e trabalho para aprender. E compreendo porque é que estudo o que estudo e porque é que faço o que faço.
Apetecia-lhe dizer que também ela, Ana, estudava para aprender, mas sabia que não era completamente verdade. Estudava, sobretudo, para obter a média suficiente que lhe permitisse entrar numa Universidade. E muitas vezes não sabia porque é que estudava o que estudava e porque é que fazia o que a obrigavam a fazer.
- Ó Ana, tu lembras-te quantas vezes nos disseram que um dia, mais tarde, compreenderíamos porque é que nos obrigavam a ler coisas sem sentido e a fazer os exercícios mais chatos do mundo ?
Já lhe tinha perdido a conta.
- ... Na minha escola isso não acontece.
Ana olhou-a, perplexa, e quase lhe apeteceu perguntar se a escola onde ela andava era mesmo uma escola de verdade. A ela, francamente, não lhe parecia.

Ariana Cosme / Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
Universidade do Porto

 


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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