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Carta ao Senhor Ministro da Educação

Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação

O Partido Socialista, quer nas campanhas eleitorais quer nos programas de governo, elegeu a educação como uma das usas primeiras prioridades. E fez bem.
Nos anos oitenta e na primeira metade da década de noventa uma política educativa orientada sob os desígnios do neoliberalismo e do economicismo, decorrendo e coincidindo ? em parte ? com o período de explosão escolar em Portugal, havia conduzido o nosso sistema educativo pelo caminho da degradação, e a nossa escola a baixos níveis de qualidade.
Em meados dos anos noventa, quando o Partido Socialista assumiu a responsabilidade do governo, a sociedade portuguesa exigia uma escola capaz de responder aos novos desafios do desenvolvimento e à nova procura escolar. Uma escola pública e democrática, capaz de contribuir para a igualização de oportunidades de todas as crianças e jovens. Uma escola ? aberta a jovens e adultos ? capaz de combater os baixos níveis de escolaridade da população portuguesa e de por cobro às diversas formas de analfabetismo que nos envergonham e empobrecem. Mas não foi essa a resposta encontrada.
A sociedade portuguesa não se reconhecia no sistema escolar que tinha. Os pais desconfiavam cada vez mais das escolas frequentadas pelos seus filhos. Os alunos permaneciam nas escolas com apatia, indiferença e uma agressividade e violência crescentes. Os professores, sujeitos a péssimas condições de trabalho, à "lei das rolhas", tolhidos pela burocracia ministerial ? após anos de luta pela inovação e a mudança ? sentiam cada vez mais o que se usou chamar "mal estar docente".
Não é pois de admirar que as promessas feitas pelo Partido Socialista tenham, já em 1995, criado interesse, expectativa e esperança na sociedade portuguesa em geral e nos professores, pais e alunos em particular.
Um ano depois de iniciado o segundo mandato do Governo Socialista, gostaríamos, Senhor Ministro, de poder dizer que as nossas expectativas não foram goradas. Seria sinal de que se tinha percebido a falência das reformas. Sinal de que havíamos entendido a necessidade de reinventar o sistema educativo português, que a Nova Escola estava em construção, que os caminhos da mudança estavam abertos, que podíamos confiar no presente e ter esperança no futuro. Mas não é essa a realidade que vivemos.
A política educativa conduzida pelo seu ministério, Senhor Ministro, tem vindo a caracterizar-se, nuns casos, por uma paralisia inexplicável, noutros, por medidas avulsas e contraditórias.
O Governo Socialista afirmou a avaliação dos alunos como elemento regulador do processo de ensino-aprendizagem de modo a permitir a adequação das respostas necessárias a uma escola pluralista e multicultural. Mas no essencial manteve e até aprofundou o sistema de exames e os modelos de avaliação, herdados dos anteriores governos de Cavaco Silva.
Falaram em escolas mais humanizadas, em escolas de excelência. Seria de esperar que apresentassem um plano de recuperação do nosso degradado parque escolar, com particular relevo no 1º ciclo do ensino básico. Manteve a situação existente, agora travestida com maquilhagem de Internet, incapaz de conduzir aos desígnios por Vossas Excelências proclamados.
Discursaram sobre a autonomia e a criatividade dos professores e das escolas. Consideraram a participação individual e colectiva dos professores como elementos fundamentais à renovação da escola. Mas generalizaram um regime de Direcção e Administração das Escolas que nada fez para combater, antes aprofundou, o espartilho burocrático das escolas, o autoritarismo e a dependência da periferia em relação ao centro.
Afirmaram a necessidade de repensar as formas de acesso ao ensino superior, mas no essencial tudo ficou como dantes.
Ouvimos referirem-se à necessidade de repensar o Ensino Secundário, mas continuam a pensá-lo como mera ponte de passagem entre o Ensino Básico e o Ensino Superior, sem finalidades em si mesmo.
Num tempo em que se pensa que quem não sabe fazer, nada sabe, o ensino profissional e tecnológico continua a ser pensado como o destino dos pobres, como se ainda estivéssemos na velha sociedade industrial, um ensino de charrua, fresadora, arado e máquina de costura por oposição ao lápis e à caneta.
A educação artística é pensada como um postiço da "verdadeira" educação. O Desporto escolar continua ausente, como ausentes estão as práticas e os comportamentos que conduzam à construção de uma cultura de escola, ao espirito de equipa, à entreajuda, à noção de pertença, ao prazer, à saúde, ao gosto. O seu ministério, Senhor Ministro, continua a preferir a ginástica ? doseada ao minuto ? agora designada por educação física.
Proclamaram Vossas Excelências a necessidade de melhorar a qualidade da formação inicial dos educadores e professores. Mas permitiram que se desenvolvesse uma política de formação de professores irresponsável que conduziu a formação inicial dos docentes para níveis de degradação com reflexos negativos no presente e no futuro da nossa profissão, das escolas e da formação dos alunos.
Proclamaram a necessidade de melhorar a formação contínua dos educadores e professores. Mas mantiveram o sistema de créditos e o planeamento e a escolha das acções de formação segundo critérios de elaboração de menus de cantina.
Teorizaram sobre a importância da estabilidade profissional docente. Mas mantêm a contratação a prazo, o "tudo serve para professor", bem como as velhas e caducas habilitações para a docência.
Vossas Excelências têm afirmado a Educação Pré-Escolar e o 1º ciclo como prioridades dentro da prioridade. Mas mantém as crianças deste sectores educativos, quase sempre, sem direito de acesso a uma simples cantina, deixando crianças e docentes dias inteiros, em salas degradadas de onde dá gosto fugir, mas não dá gosto trabalhar ou sequer brincar.
Afirmaram Vossas Excelências a importância do diálogo e da negociação em educação. Mas não deram um passo para medir a representatividade, desfazer a ambiguidade e democratizar o sistema de consulta e negociação.

Senhor Ministro

Esta política de ziguezague, de indefinição, de medidas avulsas, de «inovação» e «desinovação» permanente, ao sabor do espontaneísmo e voluntarismo dos burocratas e de outros seus colaboradores, de contradições, de ausência de clarificação das linhas de rumo, de irresolução de situações urgentes e gritantes, de promessas não cumpridas, não fazem mais do que arrastar as nossas escolas para o fosso da degradação, acentuando o desencanto e agressividade dos alunos, a desilusão e desconfiança dos pais, o mal estar dos educadores e professores.

Senhor Ministro

O tempo da irresolução chegou ao fim, como ao fim parece ter chegado a nossa tolerância e paciência. É tempo, Senhor Ministro, de responder ao mal estar e aos desafios de muitos professores e de clarificar o que pretende da escola portuguesa.
Pode Vossa Excelência certamente contar com os professores para uma possível avaliação e revisão global da Lei de Bases. Não no sentido restrito que alguns lhe querem dar, mas no sentido de ir ao encontro dos novos desafios económicos, sociais e culturais, da nova procura escolar, das necessidades de desenvolvimento da nossa e de outras sociedades.
Pode contar connosco, para delinear as linhas de força em que deve assentar a formação de educadores e de professores de todos os níveis e sectores de ensino.
Como pode contar, com a nossa disponibilidade para encarar a construção de uma carreira única que ligue a educação Pré-Escolar ao ensino universitário, com respeito pelas diferentes especificidade e desenvolvimentos de cada sector de educação e ensino.
Com Vossa Excelência Senhor Ministro, estão os professores certamente dispostos a repensar a sua formação inicial, profissionalizante, contínua, complementar e especializada. Dispostos a por um ponto final na irresponsabilidade e na ideia das formações concebidas como negócio.
Com o Ministério da Educação estamos disponíveis para decidir as medidas que permitam aos sindicatos, enquanto representantes dos professores, participar na definição das condições de ingresso na profissão docente. Para nós, Senhor Ministro, só existem duas formas de ingresso na profissão, ou se é profissionalizado ou se ingressa em estágio profissional. Não se pode ingressar na profissão docente só porque se precisa de emprego e se possui um diploma qualquer.
O Senhor Ministro está certamente de acordo connosco que não faz sentido impor regras de qualidade às frutas e legumes e deixar ao acaso a produção e comercialização de materiais pedagógicos. Vossa Excelência tem a garantia da nossa disponibilidade para participar nas decisões e nos órgãos que decidir criar para conferir acreditação aos materiais de natureza pedagógica, nomeadamente aos manuais escolares.
Tem Vossa Excelência a mesma disponibilidade da nossa parte, para participar em órgãos de acompanhamento relacionados com a Direcção e Gestão das Escolas ou da Formação Inicial e Contínua, dos Educadores e Professores.
Com o Ministério da Educação, os educadores e professores estão certamente dispostos a percorrer os caminhos necessários que conduzam a uma maior autonomia das escolas, ao alargamento das suas capacidades de organização, incluindo a gestão do espaço e dos tempos escolares, bem como das condições de exercício autónomo da profissão docente.
Queremos dar, Senhor Ministro, todos os passos necessários para ajudar a desburocratizar o funcionamento do sistema e estabelecer as pontes que permitam a cada elemento de cada território educativo sentir e saber, que as escolas também são suas. Exigimos, Senhor Ministro, participar na avaliação das escolas, das suas condições de vida e de trabalho, da sua utilidade social.
Senhor Ministro, permita que lhe peça que clarifique os espaços de auscultação, diálogo e negociação entre as organizações representativas dos docentes e o seu Ministério. Desafio-o, Senhor Ministro ? com a participação dos professores ? a elaborar uma solução que, democraticamente, permita medir a representatividade sindical e, simultaneamente, clarifique direitos e deveres das partes nos processos negociais e assegure a participação e o controle dos docentes nas soluções encontradas. Já chega, Senhor Ministro, de ambiguidades e de ausência de práticas democráticas.
Saiba Vossa Excelência que os professores andam tristes e os alunos distraídos dos estudos
. Mas pode o Senhor Ministro contar com os educadores e professores para construir as soluções que alegrem o ambiente escolar e o transformem num espaço onde aprender e ensinar para a cidadania dê prazer.
Para uma política de continuação da irresponsabilidade e degradação da nossa escola, caduca, contrária ao sentido do desenvolvimento da nossa sociedade, pode Vossa Excelência contar com a nossa firme oposição.
Senhor Ministro, terminou o tempo de esperar para ver. Soou o toque da campainha que assinala o fim da tolerância. Decida . Entra, ou fica lá fora?

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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