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Manuel Pereira dos Santos em entrevista a "a Página"

Há quem tente pôr os professores na ordem

Licenciado em Física - Ramo Científico, pela Universidade do Porto, em 1977, Manuel Pereira dos Santos viveu, desde então, um extenso percurso a nível académico e sindical. Regeu diversas disciplinas de cursos de licenciatura e mestrado da Universidade do Minho e foi várias vezes orientador científico de estágios integrados da Licenciatura de Ensino de Física e Química, e presidente da respectiva Comissão de Estágios. Desde 1997, é Professor Catedrático de nomeação definitiva, no Departamento de Física da Universidade do Minho. É também membro da Sociedade Portuguesa de Física (SPF), e ao longo da sua carreira participou já em várias escolas e conferências, nacionais e internacionais, sendo co-autor de dezenas de artigos científicos em revistas da especialidade,
No que toca à actividade sindical, é sócio do SPN, integrando desde 1990 a sua Direcção, no sector do Ensino Superior. É membro do Conselho Nacional da FENPROF, integrando a Coordenadora do Departamento de Ensino Superior, e faz parte, desde 1996, da Comissão Negociadora Sindical para o Ensino Superior da PRC (Plataforma Reivindicativa Comum), em representação desta federação. Desde 1996 tem assegurado a representação internacional da FENPROF no sector do Ensino Superior, mormente no Comité Sindical Europeu para a Educação (CSEE/ETUCE) e na Internacional de Educação, IE(E).


P - Que apreciação global faz do anteprojecto de padrões de qualidade da formação inicial de professores, proposta pelo Instituto Nacional de Acreditação Formação de Professores (Inafop)?

R - O documento divide-se em três partes - a primeira relativa aos princípios genéricos, um capítulo algo extenso e repetitivo; uma outra parte remete para o curriculo e funcionamento dos cursos; e uma terceira relacionada com as instituições -. No entanto, evita a parte fundamental, que passa pela definição, em concreto, do perfil de cada professor, em termos de grupos disciplinares, que remete para a responsabilidade do governo. Globalmente, o documento nunca se assume como uma proposta de alteração da legislação existente, embora seja incompatível com a actual legislação.

P - É então necessário definir um projecto para o perfil profissional dos professores...

R - Já houve muitos projectos... Eu próprio faço parte, desde 1986, de uma comissão de avaliação da Universidade do Minho, com o objectivo de reestruturar a nossa licenciatura em ensino de Física e Química. Mas enquanto não houver uma decisão proveniente do topo, devidamente negociada, que defina claramente esses parâmetros, não vale a pena irmos para a frente, porque arriscamo-nos a que haja uma discrepância entre o que for aprovado e o que nós próprios definimos.
A única versão próxima de um projecto acabou por ser publicada nos últimos dez dias da tutela de Manuela Ferreira Leite, mas acabou por ser anulada por ter sido publicada à revelia de qualquer negociação. Neste momento, o que existe é um elenco de cursos, geralmente indexados pelos títulos, que conferem habilitações para a docência.

P - Existem, ao mesmo tempo, alguns pontos positivos, nomeadamente a proposta de consulta às organizações de professores...

R - Sim, esse é um elemento positivo, já que é uma das primeiras vezes que se fala em consultar as organizações profissionais de professores.

P - Apesar de não referir em concreto se se trata das organizações sindicais ou profissionais...

R - Sim, nesse aspecto é uma proposta genérica...
As organizações de professores têm tentado interpelar o governo no que se refere a questões profissionais, mas não se têm conseguido fazer ouvir, exceptuando em questões absolutamente imprescindíveis. Eu próprio ouço, há mais de vinte anos, a Sociedade Portuguesa de Física pedir a separação da Física e da Química a partir do final do ensino básico - nomedamente por razões que se prendem com a qualidade do ensino prestado em cada uma das áreas. Não sei qual é a posição da Sociedade Portuguesa de Química, mas em relação a esta questão, por exemplo, todos os governos têm sido completamente surdos.

P - Porque razão a definição do perfil de professor aparece neste anteprojecto como uma competência exclusiva do governo?

R - É certo que compete ao governo ou à Assembleia da República a responsabilidade última de publicar legislação. Mas não acho que tenha de ser o governo a criar grupos de missão para definir o perfil concreto de um professor, seja ele de física ou de engenharia. Isso caberá às respectivas ordens e associações profissionais. Em relação ao perfil genérico, sim, consultando, entre outras organizações, as associações sindicais. Basta que, em termos organizacionais, se defina o tipo de documento e de perfil que se pretende estabelecer.
Neste momento existe uma avaliação instituída pela Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CNAVES), que avalia todo o sistema, quer se trate das universidades, quer se trate dos politécnicos, sejam do sector público, sejam do privado. A grelha é ligeiramente diferente para o politécnico e para o universitário, adaptando-se conforme o perfil dos cursos, mas é rigorosamente idêntica para o sector privado e para o sector público. Aliás, o anterior ministro da educação, Guilherme d?Oliveira Martins, garantiu publicamente que esta era uma questão de princípio do governo, e que, neste capítulo, não haveria lugar a quaisquer alterações.
É um sistema de avaliação um pouco "pesado", mas, partindo da experiência dos cursos em que estive envolvido, consegue identificar os problemas. Não se preocupa especialmente com o modelo de formação em causa - embora faça algumas sugestões - mas analisa concretamente os programas, o seu cumprimento, as condições laboratoriais, etc...
Por outro lado, o INAFOP ignora completamente esta experiência e pretende efectuar uma outra avaliação. Isso leva-me a pensar que existirá uma certa tentativa do INAFOP em tornar-se numa "ordem de professores". E quando discuto isto com colegas favoráveis à instituição de uma tal ordem, digo-lhes sempre que ela teria de incluir os professores de todos os níveis de ensino, do pré-escolar ao universitário, com todos os graus académicos que isso implica, o que é particularmente complicado, porque existe uma hierarquia de competências pedagógicas e disciplinares muito diferenciadas, e, transversalmente, pode abranger um espectro muito largo, desde os professores de música aos professores de português ou de engenharia.

P - Não está previsto qualquer mecanismo de coordenação?

R - Não. Não está nada previsto que permita a coordenação entre ambas, quando é um facto que grande parte do trabalho de avaliação está feito pelas comissões de avaliação. E esse é que deve ser o elemento central para a acreditação dos cursos, porque esta nova avaliação iria pôr em causa o sistema de avaliação dos cursos das universidades e dos politécnicos. O INAFOP poderá avaliar outros aspectos em que a avaliação se revela pouco eficiente. Não me oponho a que se observe quais as condições in loco para o funcionamento dos cursos, por exemplo, embora as comissões de avaliação também o tenham feito.

P - O que acontece no caso de as avaliações se revelarem contraditórias?

R - É óbvio que se o INAFOP não avalizasse as avaliações feitas por comissões nacionais, com um perfil reconhecidamente idóneo, isso constituiria, muito provavelmente, motivo de riso. A prazo, resumir-se-ia a uma relação de forças: ou o governo imporia o INAFOP ou seria difícil que duas entidades que emanam decisões do ministério da educação entrassem em conflito por não saberem gerir a sua especificidade.

P - O anteprojecto prevê num dos seus pontos que o INAFOP se pronuncie sobre os órgãos de gestão, os recursos financeiros e as parcerias estabelecidas, facto que, aparentemente, viola a lei de autonomia. Qual é a sua posição?

R - Sim, esse é um dos aspectos em que considero que o INAFOP não deve ingerir-se. Não me parece que avaliar a democraticidade dos órgãos de gestão ou os meios financeiros deva ser da sua competência. E quem avalia a democraticidade dos órgãos do INAFOP?

P - Defende a alteração do actual quadro legal...

R - Sim, é necessário até para o próprio funcionamento dos cursos.

P - Mas como é que a avaliação dos cursos está baseada num quadro legal que não é o vigente?

R - Aquele documento é, em alguns casos, demasiado genérico, noutros se calhar demasiado específico, e sobretudo não está situado. Não se refere se se propõe uma análise dos cursos existentes, ou se se trata de uma proposta de reformulação das portarias que estabelecem estes cursos - e isso também é um problema porque está relacionado com a autonomia. A formação deve ter um tronco comum, mas pode conter especificidades locais. Não é forçoso os professores de física, por exemplo, serem formados exactamente com o mesmo perfil.

P - De que forma pode a universidade intervir na formação contínua?

R - Nesta altura não existe praticamente nada de concreto nesse campo. Com a excepção dos mestrados, as universidades ainda não têm uma política muito clara daquilo que deve ser uma formação continuada. E os docentes em geral também não. Em termos de formação ao longo da vida, e exceptuando o que está estabelecido em graus académicos, o que se tem feito na Universidade do Minho é pouco e muito pontual. A universidade ainda não tem uma perspectiva construída, e não sei de que forma conseguirá dar resposta às pessoas que procuram formas de formação contínua para além dos cursos actualmente disponíveis.
Pode ser uma oportunidade perdida de nos dirigirmos a outro tipo de públicos, até porque se sabe que a população escolar irá diminuir num prazo de cerca de cinco anos...

P - Mas como é que se poderia fazer essa abertura das universidades? Como se conseguiria coordenar na universidade os dois tipos de formação?

R - São públicos algo diferenciados, mas não é impossível. Há recursos que se podem ?reutilizar? . O problema maior prende-se com a disponibilidade e com os horários. As pessoas que procuram a formação contínua procuram cursos curtos e em horários nocturnos ou de fim-de-semana, e os docentes não conseguem compatibilizar isso com horários de dez ou doze horas por semana de aulas. Isto leva a outro grande problema: o financiamento. Para começar, a questão de o estado assumir ou não o finaciamento, ou parte, da formação contínua - hoje não o faz. Por exemplo, a universidade não recebe subsídios para ministrar mestrados, que têm de ser pagos pelas propinas dos alunos.

P - Concorda com o sistema de créditos?

R - Não conheço em detalhe o sistema de créditos - habitualmente vocacionado para o ensino secundário -, mas posso dizer que não concordo com a sua filosofia geral, porque dá a impressão de se andar a "comprar" pontos com base em cursos cujo interesse é, por vezes, questionável. Não pretendo com isto afirmar que eles não tenham interesse, mas a oferta em termos de formação contínua é habitualmente muito genérica e pouca dela é dirigida a um perfil específico e disciplinar dos professores.
Claro que qualquer acção de formação deve ser minimamente creditada, mas existem muitas formas de avaliar os alunos para além de pô-los a fazer testes: desenvolvendo formas de as pessoas poderem valorizar esse tempo, ouvindo e interessando-se por assuntos novos, por aspectos que complementem a sua formação, que a actualizem, e que, por outro lado, lhes permita desenvolver capacidades, mais do que de conteúdos. Nas minhas aulas de mestrado, por exemplo, preocupo-me menos com os conhecimentos teóricos demonstrados nos testes e mais com o desenvolvimento de interesses, de aptidões, de capacidades na execução de tarefas práticas e com a própria atitude mental dos alunos. Penso que para um público de pessoas adultas, este esquema é mais compensador, porque pode, inclusivamente, ser aplicado nas próprias aulas.
O sistema exclusivo de teste e exames não é o melhor, embora nas licenciaturas, onde as turmas são, infelizmente, muito grandes, talvez não seja possível recorrer a outro método. Porém, nas turmas de mestrado, habitualmente reduzidas, não se justifica a utilização desse esquema.

P - Há algum outro aspecto sobre a formação de docentes que gostasse de salientar?

R - Há um outro aspecto, relativo à formação inicial, sobre o qual a UM reflectiu há cerca de quatro anos, sob proposta do Conselho Académico, através de um grupo de trabalho que eu próprio coordenei, que elaborou um documento final sobre o 5º ano das licenciaturas em ensino destinadas ao ensino secundário e, eventualmente, ao ensino básico. O resultado desse trabalho foi globalmente aprovado por aquele órgão e penso que, inclusivamente, pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas. Mas o facto é que desde essa altura que se encontra nas gavetas da Secretaria de Estado do Ensino Superior.
Uma das propostas fundamentais passava por estabilizar a rede de escolas onde a UM faz orientação de estágios. A UM conseguiu o apoio da Direcção Regional de Educação do Norte e de algumas escolas no sentido de fazer um contrato com cerca de 50 escolas desta zona geográfica. Havia também que estabilizar os orientadores das escolas e seleccioná-los através de algo similar a um contrato plurianual por concurso público. É impensável que um orientador possa ser alguém que dois anos antes fosse ainda estagiário, independentemente da sua qualidade. Isto implica também dignificar o trabalho quer dos orientadores de escola, quer dos supervisores das universidades - a nível salarial, do número de alunos que orientam, da especificação de funções...
Existe igualmente a necessidade de se ter uma perspectiva transversal dos saberes. Por exemplo, um aluno a estagiar em física poderá beneficiar de alguma orientação a nível do português, para conseguir adequar o discurso aos diferentes níveis etários e sociais dos alunos.
Há ainda uma outra questão, que se relaciona com o peso do estágio na média final do curso. No caso da UM é de um terço, quando não devia ser mais de um quinto, já que é um dos cinco anos curriculares. O facto de o peso ser tão elevado leva a uma espécie de "corrida às notas", num ambiente de grande ?stress? e competitividade.
Em resumo, sobre a questão básica que me colocou, diria que o projecto do INAFOP não acrescenta quase nada ao que tenho visto nos últimos quinze anos... e fica-se pelas generalidades.
Além disso, creio que é fundamental agora, e em antecipação, repensar o esquema de funcionamento, os objectivos e os públicos-alvo das universidades (e politécnicos), de modo a incluir todo um conjunto de novos interesses e públicos que "regressarão", em condições totalmente diferentes, reaprender nas universidades. E, ou nós conseguimos adaptarmo-nos para cumprir essas novas funções, ou outras instituições (eventualmente menos credíveis, mas mais comeciais) o farão por nós.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Manuel Pereira dos Santos
Professor Catedrático da Univ. de Évora
Manuel Pereira dos Santos
Professor Catedrático da Univ. de Évora

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