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Miniconcursos

(a roleta russa no ensino)

São 14,15 da tarde e o calor aperta. No pátio interior da escola secundária infante D. Henrique, no Porto, mais de uma centena de candidatos ao miniconcurso aguarda vez para requisitar o horário que lhes pode dar acesso a um lugar numa escola. Alguns conversam, outros lêem, outros simplesmente desesperam. Todos os anos, invariavelmente, a cena repete-se

Rosa B. chegou cedo. A experiência do ano anterior bastou-lhe para não querer aguentar, mais uma vez, algumas horas em pé. Mas não teve sorte. Tal como ela, muitos outros candidatos pensaram no mesmo. "Bom, estou a ver que não fui a única a prevenir-me", afirma, resignada, olhando em frente numa tentativa de calcular quanto tempo ainda iria ali permanecer. "É muito aborrecido porque já não vou conseguir chegar a tempo a um compromisso que tinha marcado, mas paciência...".

Tal como ela, também a Marlene Martins, de 22 anos, procura ali uma oportunidade para começar a sua vida profissional, deambulando pelo corredor à procura da sala que foi improvisada para esclarecer eventuais dúvidas.

Apesar de admitir que é quase impossível conseguir colocação à primeira, lá vai dizendo que "vale sempre a pena arriscar". Até que ponto não sabe, porque, como já sabe, é muito difícil arranjar um horário completo e nada lhe garante que a escola o vá completar. Apesar de ter uma boa nota de final de curso, o seu grupo disciplinar não é dos mais afortunados, já que matemática e ciências foi a área que mais candidatos deixou de fora no miniconcurso deste ano: mais de quatro mil.

"Se não conseguir nada no 3º ciclo, sempre poderei candidatar-me ao 1º e a 2º. Fiz o estágio no ano passado e penso que aí tenho algumas hipóteses", diz com um sorriso tímido. Apesar de saber que pode vir a ser colocada numa escola situada longe de casa - vive nos arredores do Porto -, não hesita em dizer que "ia para qualquer lado". A sua principal crítica dirige-se à falta de informação disponibilizada pelo ministério. "É que basta uma pequena falha para comprometermos todo o processo", diz, enquanto se afasta para uma das salas para averiguar o que deve fazer de seguida.

Foi o que aconteceu com Laurinda Lopes, de 27 anos, designer de equipamento - professora apenas porque "as empresas não oferecem condições de trabalho compatíveis com as suas qualificações" -, que há dois anos ficou excluída por deficiente preenchimento dos dados referentes ao bilhete de identidade.

No ano passado ainda conseguiu um horário de seis horas no curso tecnológico do 12º ano, mas só tinha uma aluna. "Foi frustrante". Este ano concorreu à segunda fase dos concursos nacionais, com habilitação própria, mas não foi seleccionada. "Voltei a tentar, desta vez através do miniconcurso, mas não tenho muitas esperanças. A minha área de docência é cada vez menos procurada". Confessa que não lhe dava jeito ficar fora do Porto, porque está a tirar o doutoramente na faculdade de arquitectura, mas se arranjar colocação garante que iria "para qualquer escola do norte do país.

Um processo "terceiro mundista"

O miniconcurso é uma autêntica "lotaria", como alguém já o descreveu. Os professores podem apresentar a sua candidatura em vários dos centros de área educativa, de forma a garantir colocação, mas só podem manter a candidatura num deles - habitualmente onde se fica melhor colocado -, sem garantia, porém, de que ali conseguirão lugar. Para saber em que local obtêm melhor colocação, muitos candidatos desdobram-se através de familiares e amigos para terem acesso às listas provisórias. Houve pelo menos um caso onde um dos candidatos, professor de educação física, teve de distribuir a família por locais tão distantes como Évora, Beja ou Bragança. Outros ainda trocam procurações com colegas para não terem de se deslocar tão longe.

Menos divulgado é o facto de algumas escolas chegarem a não enviar as vagas de colocação para os respectivos centros de área educativa e "facilitarem-nas", após o miniconcursos, a pessoas conhecidas, através de um mecanismo similar à contratação directa. Uma atitude bastante pontual, é certo, mas importante para se perceber até que ponto o sistema começa a criar pequenos vícios para dar resposta a um problema que atinge proporções crescentes.

De acordo com os últimos números divulgados, este ano vão ficar fora da escola entre 28 e 30 mil professores - dezoito mil dos quais profissionalizados -, um número sensivelmente superior ao do ano anterior. Na segunda fase de colocação, ou seja, antes do miniconcurso, obtiveram lugar três mil docentes, e, segundo os cálculos da Fenprof, serão admitidos mais sete mil através desta fase regional de concurso. O total de professores contratados no sistema rondará os 12 mil.

Confrontados com estes números, não admira que alguns tenham mesmo optado por ir ensinar para o outro lado do mundo, em Timor Lorosae. O primeiro grupo integrava 48 professores e partiu já em Setembro. Um ano afastados da família e dos amigos, mas preferível a um ano de desemprego.

"Este processo é completamente terceiro-mundista", diz João Paulo Silva, coordenador do departamento de professores contratados do Sindicato dos Professores do Norte. "As pessoas são obrigadas a estar numa fila durante quatro ou cinco horas para terem acesso a uma fotocópia com um horário, e depois mais quatro ou cinco para a entregar. Numa altura em que se fala tanto da sociedade da informação, admira-me como ninguém no ministério ou nas delegações regionais se tenha lembrado de os disponibilizar na internet...". Foi o que ele próprio e outro dirigente daquele sindicato fizeram. Digitalizaram a informação disponibilizada em papel pelo ME e puseram-na em consulta através da 'homepage' do SPN. Como seria de esperar, o número de consultas foi elevado, na ordem das centenas de visitas.

Professores pouco reivindicativos

Ao mesmo tempo que uns esperavam para concorrer, outros apresentavam-se na escola para preparar o ano de estágio que têm pela frente. "Só de pensar que vou ter de passar por tudo isto no próximo ano, dá-me quase vontade de desistir...", diz Teresa Simões, de 22 anos. Talvez por ser originária de uma cidade do interior, a Covilhã, a Teresa sente o problema dos professores deslocados mais de perto.

"Muitas escolas no interior não têm professores em número suficiente porque a maioria quer ficar na sua área de residência ou próximo das grandes cidades. Talvez se houvesse um incentivo à fixação dos professores as pessoas encarariam estes concursos de uma forma mais positiva".

Ao lado da Teresa está o Rui Silva, também com 22 anos, que concorda com esta opinião. "Aliás, tal como acontece com os médicos, que são subsidiados para prestar serviço em áreas do interior. Mas nós nem sequer temos direito a subsídio de deslocação..."

Estes dois estagiários criticam ainda o facto de muitos professores não profissionalizados ocuparem os lugares daqueles que seguiram a via de ensino. "Um professor licenciado em matemática e profissionalizado está muito mais apto a dar aulas do que qualquer engenheiro ou técnico, que provavelmente nem se sentirá vocacionado para ensinar", diz a Teresa.

Ainda por cima, o número de alunos é cada vez menor e o número de professores não pára de crescer. E já existem perto de oito mil com horários zero. "Torna-se tanto mais incompreensível quando se sabe que Portugal é o país da europa com maior número de alunos por turma", diz o Rui, sem saber que, por determinação do ministério, a fasquia subiu ainda mais este ano, para os 26 alunos. "As oportunidades de sucesso educativo seriam seguramente maiores se cada professor tivesse no máximo vinte alunos", opina a Teresa. Outra hipótese seria pôr os professores não colocados a dar apoio educativo aos alunos. "Porque não?", questiona-se, por seu lado, o Rui.

Outra questão que fica no ar refere-se às condições em que trabalharão os professores contratados, sabendo-se que a média dos horários colocados em miniconcurso é de cerca de 12/13 horas semanais e que o horário completo de um docente é de 22 horas. Salários baixos, acumulação com horários de outras escolas ou segundos empregos é o que, seguramente, espera a maioria.

"O que não se compreende, acima de tudo, é que os professores nesta situação não exerçam maior pressão junto do ministério no sentido de este dar uma resposta mais capaz", diz João Paulo Silva, ele próprio um ex-professor contratado, mais de uma vez sujeito a todo este processo. Agora, enquanto dirigente sindical, faz todos os esforços para convencer os colegas a unirem-se e a reivindicarem melhores condições de trabalho. Pelos vistos, em vão. "Telefonamos às pessoas, garantimos-lhes transporte e alimentação, e mesmo assim nunca conseguimos reunir mais de meia centena de manifestantes. Provavelmente é uma questão cultural, mas quer-me parecer que a minha geração não está habituada a lutar pelos seus direitos".

Texto: Ricardo Jorge Costa
Fotografia: A Página


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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