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O Crescimento dos Filhos é a Lenta Morte dos Pais

Para José Maria Valcuende e José Luis Fernández,
no seguimento do nosso debate

1. Introdução.

O título é uma hipótese que tenho andado a observar já algum tempo. Parece existir uma estrada de dupla via, dois caminhos que são paralelos entre ascendentes e descendentes dum ser humano, um cruzar-se nas diferentes etapas da vida entre adultos e crianças. Um efectivo avanço das crianças que resulta num aparente declínio dos pais. Parecendo que, à medida que a criança cresce, o adulto inicia esse declinar e não a procura de outros objectivos não entrosados à vida com a qual sempre sonhou ou para a qual se preparara ou que teria sido preparado. Todo o adulto, na nossa cultura, é ensinado que o seu objectivo é fazer crianças, nutri-las, cuida-las, ajuda-las no seu crescimento e educa-las. Ama-las. Ser o peão de pivot, o fantasma do objecto da vida, o apoio necessário para os que andam a aprender. Modelo para filhos, ou para a nova geração, caso filhos não houver. A questão que se coloca não é simples: um dia nasce uma criança e os adultos, alvoroçados, sentem e pensam que o seu olhar deve ser reproduzido; seu pensar, um elo central; as suas palavras, a lei sagrada a ser respeitada. O seu amor, o centro da forma de reproduzir o grupo social. Reprodução com ou sem descendentes, reprodução como memória histórica: o que eu faço é bom, e era melhor ainda, se a geração seguinte fizesse igual. Igual nos sentimentos que me fazem feliz, igual no agir que faz de mim o centro do meu grupo social. Conquistar a minha hierarquia e ultrapassa-la. Parece ser o sentir das pessoas que tenho analisado este verão na Beira Alta de Portugal, em Pencahue, no Chile e as continuadas visitas a Vilatuxe, Galiza. Sítios que dinamizam a minha observação, a minha conclusão e a minha emotividade.

2. O crescimento das crianças.

Faz anos que convivo com as crianças desses lugares. O tempo passa, elas crescem. Os pais parecem ser os mesmos, enquanto amadurecem. Não só não ficam mais velhos, bem como entendem o real. com maior parcimónia Não por anos atrás de anos, terem uma cronologia com um algarismo a mais: o numero é irrelevante, a experiência é o mais importante. O adulto vai entendendo a memória social e o contexto que a cria, que a dinamiza, que a produz, que lhe lembra o que fazer, quando e como. Memória que, desde a via paralela, a geração mais nova observa com curiosidade por investigar esse real. Não é ainda uma experiência acumulada, não é ainda uma experiência amadurecida, é apenas uma experiência que desenha o futuro, que quereria querer encontrar. Quereria querer. Quereria atingir. Atingir para conquistar o seu lugar. Tal e qual o adulto já atingiu criando para si um nicho social dentro do seu grupo. Vias paralelas que se observam: a miudagem que tenta entender esse querer amar, esse querer possuir, esse querer preparar uma vida folgada como recompensa a uma vida de trabalho. O adulto folga-se do sucesso enquanto a miudagem se afasta do cansaço que no sucesso do adulto, vê. O adulto pensa e sente que a sua vida é o lar ao qual a criança deve, um dia, chegar. A criança pensa e sente que esse lar já foi trilhado e é tempo de começar de uma forma diferente. Os seus adultos foram pais bem cedo, as crianças querem adiar a criação para o dia em que tenham uma vida económica viável. Os seus adultos apaixonaram-se quase na puberdade e criaram crianças; estas, por sua vez, começam a distinguir entre paixão e amor: a primeira, como a junção de corpos no prazer de se acariciarem; o segundo, para cimentar uma união que acompanhe duas pessoas numa eventual procriação ou criação, acrescentando carinho à paixão e ao amor. Um terceiro sentimento novo, que permite a organização de uma vida a dois que os acompanhe até o fim dos seus dias. A criança observa que os adultos estão já cansados de estar sempre juntos como as leis canónica e civil mandam, de serem publicamente exclusivos um para o outro, de serem um casal eterno. Mudando assim para a união de facto que substitui a vontade individual e autónoma, pela vontade do Estado e da Lei. Lei que diz que um casal que vive junto durante anos, é um casal unido como que num ritual com testemunhas públicas, divinas ou humanas. A criançada observa que a heterogeneidade do adulto é duma monogamia seriada o divórcio -, ou duma monogamia simultânea- o adultério, de uma das partes ou das duas. Criançada que se resolve assim, pela monogamia retardada e permanente, possível também pela descoberta da analise do genoma que permite saber a cronologia e a história da sua vida. Cronologia que permite saber o tempo real de vida jovem e sadia que se terá, saber nem sonhado pelos seus pais ou ancestrais mais antigos, colados entre eles, na sua ignorância de vida, pelo sacramento no qual confiam para se amar. Eternos no seu andar juntos, gostando ou não um do outro. Criançada que observa que ter filhos logo ao começo da paixão, é matar o possível amor para os criar e o carinho para os manter unidos nas idades da solidão do adulto. Idade onde no ninho já não há pássaros, o síndroma do ninho vazio, esse que leva aos adultos do acasalamento ritual, a querer possuir sua antiga descendência por meio de uma sobre protecção que acaba por destruir o novo lar. Criançada que sabe que é melhor andar pelas vias da vida alternativas e sem compromisso antes de se comprometerem com uma outra pessoa; que a relação começa na experiência da cama para eventualmente acabar com um outro, do seu mesmo ou diferente género, sob o som dos sinos que anunciam a relação que acompanha o carinho que o amor destrançou da paixão. Carinho eterno de cimento de amor surgido das cinzas da paixão, essa que acaba quando são sempre os mesmos dois. Via paralela que aprende, do eterno casal a dois, a perenidade dessa paixão, tecendo carinho do amor. Sem procurar a obrigatoriedade cultural da reprodução humana para se unir, envereda pela ideia de ser o desejo o sentimento central para amar, ter filhos e criá-los. Lição que o adulto pensa andar a ensinar desde a sua via das águas passadas, enquanto a geração da via ascendente bebe do amor para desejar, com ou sem descendentes.

3. É a lenta morte dos pais.

Será a ideia dos pais desaparecerem? Ou a ideia natural dos mais velhos morrerem primeiro? É o sentimento da memória social que separa as águas de duas gerações diferentes, em rotas de subida e descida pelas vias da vida? Ou, não será apenas apagar o exemplo do adulto no andamento pelos trilhos da vida? Parece ser certo o facto dos mais velhos traçarem o exemplo. Parece ser certo dos mais novos fixarem as novas regras. Porque há novos dados. Tal como os Romanos que não souberam usar a lei de Arquimides de levar a água para dentro da casa por baixo da terra, construindo muros como canais para a elevar até ao fogão. Tal e qual a nova geração tem aprendido que autonomia e individualidade, vontade e objectivo de vida, são as vias subterrâneas, privadas e intimas, para a felicidade. A criança cresce no caminho contrário ao do seu adulto. Cresce até ao ponto de não se reconhecer nos seus ancestrais mais imediatos na produção da vida. Esse feito que tenho denominado reprodução e que hoje, como já referi nesta revista no mes de Julho, eu denominaria transição. A geração denominada dos pais tenham descendentes ou não -, procurava e queria a reprodução. A geração mais nova, quer ser transição. Entende-se como transição. Não entre nascer, crescer e morrer, mas sim em como será a vida com a analise da sua nova possibilidade cronológica, da descoberta do genoma humano e da sua possibilidade de o estudar e de o entender. De saber como a sua vida vai decorrer. O saber cientifico de hoje, bem como o saber da gestão da economia para o lucro de todos por igual, sem trabalho em demasia. A clonagem da vida à qual estão agora agarrados os novos seres. Ainda em Pencahue os adultos continuam a falar calados por temor ao velho ditador, julgado como agora está e isolado da população à qual tanto matou provocando o silêncio dos adultos. Os mais novos já não querem saber desse medo: desejam e têm o direito de viverem a sua vida sem olhar sempre para o passado. Falar as calmas as palavras que pensam e fazer o que sentem: já não há perseguição. Não entendem esse conceito e, menos ainda, o sentimento de um saber no experimentado. Há toda uma transição entre ascendentes e descendentes. Ou, esse outro que diz, algures em Pencahue, em Vilaruiva ou em Vilatuxe, que o pensamento católico continua a condenar as opções sentimentais das pessoas quando não ajustadas à Tradição da Patrística, tal e qual lhe parece ler no Catecismo de 1991. Leitura adulta mal feita, Tradição e Patrística sempre manipulada pelos objectivos das pessoas que desejam governar as suas vidas e impor esse entender no meio do seu grupo social. Como, de facto, aconteceu este verão em Pencahue, quando vi tantos casais novos de experiência antes do compromisso, tanto adulto a falar comigo para perguntar como era possível voltar ás águas passadas, furtadas pelo agir do saber que eles não entendiam. Ou esse rapazes de Vilaruiva, a pôr em questão às suas mães num debate público sobre sexualidade, em Julho deste ano: tua não me deixas, tu queres mandar e eu quero ser autónomo, seria a síntese dessa discussão. Debate de meninas de 19 anos às mães de 40. Questão nunca pensada pelas santas senhoras a congeminarem na vida na qual foram criadas, elas próprias e as suas santas mães, algumas delas, já anciãs. Pais a temerem pela castidade da sua descendência, essa que nem diz nem conta, mas não ouve a homilia que desde Roma ou Fátima se tenta inculcar. Homilia a cair em ouvidos em transição, ouvidos sem tímpanos para entenderem o som da melodia de dançar de melopeia que perdura pelos passeios das ruas que o grupo social cruza ao partilhar um saber universal. Os pais a saberem que continuam vivos como seres, mas mortos como autoridades; sem saberem que, dentro de cada pequeno, esse adulto ficou quando a pequenada era menina e quando, já na puberdade, esse adulto soube entender que a vida era muito diferente à vida que ele próprio teve quando jovem e pequeno.

4. Epílogo.

O crescimentos das crianças é a lenta morte dos pais. Mais entendem, sabem e fazem os novos, menos pais e mais amigos ficam os adultos. Quase da mesma geração se conseguirem não mandar o que não entendem. E entenderem a nova era que hoje se vive. A seguir à clonagem do genoma, a sua analise, a mudança dos dogmas das Igrejas. Todas a mudarem para se ajustarem ao avanço do que, no Século XIV, o frade franciscano de Oxford, Guilherme de Occam, já denominara como ciência: a prática das pessoas, válida pela dinâmica que a sua experimentação traz na interacção humana, bem mais avançada que a Teologia do Vaticano, é capaz de definir. A lenta morte dos pais deve ser aceite pelo ser humano, jovem e adulto, para continuarem a viver em paz e felicidade. Ou, pelo menos, em compreensão. Como a desses pequenos de Pencahue que me deram uma festa de dança e flores, por eu ter falado deles nos meus livros. Amor com amor se paga, foi-me dito. Amor com amor, faz da lenta morte dos pais, uma transição do tratamento de adulto para adulto. Esse que nunca deixa o ninho vazio, que o faz crescer enquanto os novos ninhos aprendem amor como desejo e esquecem a paixão já apagada nas práticas da adolescência e da primeira, da segunda e terceira juventudes. Conceitos até hoje usados apenas para o fim da vida: a terceira e quarta idade. Conceitos que devem ser transferidos às novas formas de vida que incrementam a cronologia da juventude bem como alongam as idades da vida. Enquanto crescem as crianças, morrem os pais, mas ficam, juntas e em convívio, as pessoas. A ciência deve-nos obrigar a mudar os conceitos, tal como a vida tem mudado da reprodução para a transição: de agir por sentir e pensar, para agir o sentir com disciplina. Tal como a juventude de hoje deve fazer para transitar entre alternativas.

Raúl Iturra
Instituto Superior de ciências do trabalho e da Empresa (ISCTE) /Lisboa

Bibliografia.

  • Catecismo de la Iglesia Católica, 1992, Asociación de Editores del Catecismo, Madrid. A versão portuguesa é de 1993.
  • Iturra, Raúl, 2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te, porque te amo. Afrontamento, Porto.
  • A Página da Educação, Nascer, morrer, crescer: a persona é transição, Julho de 2000. Porto-
  • Miller, Alice, (1970) 1994: El drama del niño dotado. Tusquets Editores, Barcelona.
  • (1980) 1983: For your own good. The roots of violence in child -rearing. Virago, Londres.
  • (1988 a) 1990: El saber proscrito. Tusquets Editores, Barcelona.
  • (1988b) 1991: La llave perdida. Tusquets Editores, Barcelona.
  • Occam, Guilherme de, (1319) 1985: Principios de filosofía. Sarpe Editora, Madrid.
  • Valcuende del Río, José Maria, 1998: Zalamea la Real: la tierra y la mina. Cambios socio-económicos, relaciones de poder y representaciones colectivas. Diputación Provincial, Huelva.
  • Vega e Carpio, Lope de, c. 1580: Si tu pensas. Monserrat Figueras, Jordi Saval, Hesperión XX. Astrée, Berlim 1987.

  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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