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Romances que se Lêem no Metro

A cultura de um povo pode ver-se em pequenas coisas. Por exemplo, na relação que as pessoas estabelecem com a leitura. Apesar de já me ter habituado a ver, ainda me faz muita confusão a forma como muitos londrinos aproveitam todos os minutos que viajam no metro para ler. Muitas vezes fazem-no nas condições mais adversas: de pé, com o passageiro do lado a espreitar por cima do ombro e com o outro a empurrar para sair na próxima paragem. Mas estes são leitores persistentes, indiferentes a tudo.

Já observei muitos desses leitores em pormenor. Entram no metro e automaticamente tiram o livro da mala, da pasta ou mesmo do saco de plástico e começam a ler. Parecem programados para desempenhar uma qualquer tarefa que assumem como fundamental para uma qualquer missão. Levam a leitura daquele livro realmente a sério. Como se tivessem que o fazer em troca de algo profundamente importante. Estão compenetradíssimos e nada os perturba. Parece que têm tudo cornometrado. Sem olhar para o relógio, guardam o livro cinco segundos antes de chegarem ao seu destino. E saem com passo seguro, com a sensação de que aquela viagem serviu para mais qualquer coisa do que simplesmente para os fazer chegar a um destino.

São pessoas de todas as idades, com as mais diversas aparências. A única coisa que têm em comum é que usam o metro e que aproveitam o tempo que nele passam para ler. Imagino quantos livros lerão numa longa viagem de avião. Imagino quantos livros lerão ao longo da vida. Pergunto-me que diferença é que aquilo que lêem fará nas suas vidas, na forma como se relacionam com os outros e nas opções que fazem. Ou se, pura e simplesmente, esquecem a maior parte do que lêem logo a seguir, tendo usado os livros só para esquecer o tempo que perdem nos transportes públicos.

O tempo que eu passei a observar estas coisas já dá para concluir que a maior parte dos livros que são lidos nestas circunstâncias não passam de romances cor-de-rosa. São quase sempre os chamados livros de bolso, fáceis de transportar porque são leves e maneirinhos. As capas parecem feitas para repelir mas, pelos vistos, atraem. Muitas fazem lembrar aquelas imagens das fotonovelas, com raparigas de longos cabelos deitadas na praia com ar de abandonadas ou então casais que se beijam. Ainda há a alternativa da flor vermelha com fundo negro. Há sempre qualquer coisa de nostálgico misturado com cores garridas e letras douradas. São livros publicados agora com conceitos criados nos anos 70.

As prateleiras das livrarias estão cheias destes livros, mesmo as mais conceituadas. Os Top 10 das livrarias têm sempre exemplares desta literatura de emoções (fracas, diria eu). Os títulos são fáceis de adivinhar: "Nunca é tarde de mais", "Um amor impossível", "O príncipe das marés", "Um sonho de Verão" e outros que tal. Nenhum destes títulos me atrairia. Provavelmente, porque desenvolvi um preconceito um relação a este tipo de títulos, assim como em relação à apresentação deste tipo de livros. Aliás, assumo que teria vergonha de tirar da minha mala um livro deste género num qualquer transporte público. Como se ler este tipo de livros me conotasse com qualquer coisa de desprezável. E a verdade é que já me foi garantido, por uma pessoa que fez um doutoramento em literatura feminina, que muitos destes livros têm qualidade. Interessada, comprei um livro sugerido por essa pessoa ? o tal de capa negra com uma flor vermelha. Mas não consegui passar da página 18. Fora do tempo do estudo, preferi ler um livro sobre História do Século XX. Parece-me mais útil...

Mas respeito, admiro até, as pessoas que lêem qualquer coisa em qualquer circunstância. Porque desenvolvem uma capacidade de concentração invejável e porque conseguem alhear-se de uma realidade que ? pelo menos no metro de Londres ? é quase sempre feia e muitas vezes degradante. E porque sabem gerir o tempo que têm sem desperdícios, não interessando se aprendem ou não com o que lêem. Pelo menos, durante aqueles minutos, essas pessoas estiveram noutro ambiente e eu estive só no escuro metro de Londres. As minhas expressões não se alteraram porque nenhum dos meus sentimentos foi estimulado. Enquanto isso, essas pessoas vivem outras emoções. Fracas ou fortes, não interessa.

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester / UK


  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

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