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Agostinho Ribeiro em Entrevista a "a Página"

Seria muito proveitoso se as famílias
soubessem mais de educação de crianças

Num número cujo o "Em Foco" é dedicado à educação pré-escolar, decidimos entrevistar alguém com uma vasta experiência educativa e cujos contributos nos pareceram importantes para analisar o actual momento deste "parente pobre" do sistema educativo.
É ele Agostinho Ribeiro, licenciado em Ciências da Educação pela Universidade de Lovaina, na Bélgica. e doutorado em Ciências da Educação pela mesma universidade, com área de especialização em psicopedagogia. Foi professor em duas escolas de formação de Educadores de Infância. Foi também professor na Universidade do Minho na área de formação de professores. Actualmente, é professor na Faculdade de psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto nos cursos de Ciências da Educação. É igualmente autor de diversas publicações e de projectos de investigação-acção no domínio da educação de infância e articulação com a escola básica, prestando também apoio pedagógico a jardins de infância.

Pode falar-se da existência de uma rede nacional de educação pré-escolar?

O conceito de rede nacional é um tanto ambíguo. Na legislação actual considera-se que o sector público e o sector privado constituem, conjuntamente, uma rede única. No meu entender, a rede tem lacunas exactamente por isso, porque não é homogénea. Se houvesse uma rede pública de educação pré-escolar, poder-se-ia falar de rede. Podia não estar ainda completa nem abranger o país todo, mas era uma rede nacional.

Que impacto teve a lei quadro na tentativa de unificação dessa rede?

Na lei-quadro considera-se a educação pré-escolar como "a primeira etapa da educação básica" e aponta-se como objectivo da chamada rede nacional "contribuir para a igualdade de oportunidades no acesso à escola e para o sucesso na aprendizagem". Porém, pelo modo como os princípios são transpostos para o terreno, tem-se a impressão de que este objectivo não está a ser procurado, e muito menos atingido.
E porquê? Porque não havendo uma rede pública que ponha à disposição de todas as famílias e das suas crianças um jardim de infância que não esteja sujeito a uma orientação particular de uma qualquer entidade, esse princípio da igualdade de oportunidade, que é fundamental, não pode ser conseguido.
Para além disso, o termo utilizado na lei quadro é "contribuir para" quando, no meu entender, o Estado deveria "responsabilizar-se por". Ou seja, recuou em relação àquilo que no passado o Estado português e os outros estados europeus fizeram em relação à educação em geral.
Na altura em que se oficializou a escolaridade mínima obrigatória, surgiram, provavelmente, as mesmas objecções que aparecem agora em relação à possível obrigatoriedade da educação pré-escolar. A legislação afirma que a educação pré-escolar "é complementar da acção educativa da família".
Claro que quando se tornou obrigatória, a educação escolar era também entendida como complemento da acção educativa da família, mas entendeu-se que a família não conseguia assegurar às crianças esse complemento educativo de que elas precisavam. Ou seja, se entendermos que a fase pré-escolar é igualmente fundamental para a criança e considerarmos que a família não dá, em geral, a educação que a criança precisa, chegamos à conclusão que o Estado deveria assegurar essa educação.
Há quem diga que a educação pré-escolar não deveria ser tornada obrigatória, devendo começar-se por um processo de auto-consciencialização dos pais em mandar as crianças para o jardim de infância. Eu concordo, mas não creio que isso se possa conseguir nas próximas gerações para todas as famílias.
E, neste sentido, podia estabelecer-se um paralelo com certas decisões dos tribunais relativamente ao poder paternal. Às vezes, no caso de maus tratos físicos, nomeadamente, é retirado aos pais esse poder. Mas eu pergunto-me se uma má educação ou a falta de educação, seja por ignorância ou por descuido, não será igualmente uma forma de mau trato... É por isso que considero que o Estado deveria assumir supletivamente esse dever, de forma a garantir às crianças o direito a uma educação cabal.

Mas pensa que o princípio orientador da lei quadro funcionou ou não no sentido de uma unificação?

Há cerca de seis anos - penso que até num artigo da Página - questionava ironicamente o porquê de o Estado, até essa altura, ainda não ter posto a mão na educação pré-escolar e o porquê de a educação pré-escolar continuar a ser um óasis de liberdade. Reflectindo sobre estas questões, cheguei à conclusão que uma das razões seria para não mexer no "direito das famílias", ou, se calhar, - e esta é provavelmente a razão mais válida - porque isso ficaria caro.
Respondendo à sua pergunta, penso que não funcionou, porque a pretexto de salvaguardar o princípio de que "cabe primeiramente à família a educação dos filhos", o Estado desobriga-se de instalar uma rede pública que cubra, de facto, o país, e de assegurar a todas as crianças a frequência do jardim de infância.

Abordando a lei quadro sobre uma outra perspectiva: ela veio criar condições de igualdade para o desempenho da profissão entre os educadores do sector privado relativamente aos do público?

Não sei, concretamente, em que condições trabalham os educadores nos estabelecimentos de ensino particular e cooperativo. Talvez não esteja habilitado para responder a essa questão.

Analisando-a de uma forma mais global, pensa que a profissão é valorizada?

A nível de formação sim, na medida em que se exige uma licenciatura, o que não acontecia há uns anos atrás. Em termos de prestígio, e não pretendendo fazer comparações, os educadores de infância sempre foram prestigiados, não sei se em alguns casos por razões de estrato social, mas sobretudo pela sua competência pedagógica. As escolas de formação de educadores de infância nasceram com uma pedagogia nova que não existia na larga maioria das escolas normais. Porém, actualmente, o estatuto das pessoas mede-se também em função do estatuto sócio-económico...

Quanto à autonomia pedagógica dos educadores de infância: pensa que hoje estão criadas as condições para ela se afirmar?

Em todas as ocasiões que falei com educadores de infância, seja enquanto professor, seja como participante em encontros, sempre lhes disse que me tinham a seu lado para defender a liberdade pedagógica que eles devem usufruir. Mas as orientações curriculares para a educação pré-escolar são um pouco ambíguas a esse respeito: por um lado afirmam respeitar essa liberdade, apresentado-se como meras "orientações", um "quadro de referência", que permite diversas opções; mas por outro lado impõem-se com "carácter vinculativo."

Em que posição é que essa ambiguidade deixa os educadores?

Não tenho tido conhecimento das suas posições, mas na altura em que apareceram as orientações curriculares fiquei com a impressão de que os educadores receavam que elas trouxessem implicitamente algum tipo de avaliação. Isto, porque se as orientações têm um carácter vinculativo, então haveria uma inspecção para verificar se aquela orientação vinculativa estaria a ser seguida. E isso iria determinar que alguns educadores tivessem de ajustar-se àquelas orientações quando tinham um credo pedagógico diferente.
Uma vez, num artigo escrito para uma revista editada pelo ministério da educação, eu punha em causa uma das opções das orientações curriculares - que elas de facto impõem, sem o reconhecerem: a da organização das actividades do jardim de infância por áreas de conteúdo, por oposição a um currículo por áreas de desenvolvimento. Curiosamente, as orientações curriculares fazem a opção definitiva por áreas de conteúdo, mesmo admitindo que algumas pessoas considerem mais adequado fazê-la por áreas de desenvolvimento. Posto que existe uma dúvida razoável, e não havendo nenhum argumento contra, deviam deixar liberdade de escolha.

Nesse sentido, que avaliação faz das orientações curriculares?

Fiquei com a impressão de que as orientações curriculares foram feitas por alguém que tinha alguma ou bastante informação pedagógica e que, ou por imposição ou por receio de algum confronto com os legisladores, ficou um bocadinho a meio termo. A pessoa ou pessoas que redigiram o documento tinham certas convicções e provavelmente prescindiram um pouco dessas suas convicções para estarem mais de acordo com as orientações de uma legislação mais impositiva, como é a lei quadro e outros documentos.
Como sabe, a lei quadro insiste bastante na articulação da educação pré-escolar com o ensino básico, ao contrário da LBSE, que previligia a articulação com a família. A articulação com os níveis superiores do sistema educativo deve fazer-se, mas deve pensar-se de que forma e, nesse sentido, merecia um pouco mais de discussão.

Então, que sequencialidade deve existir entre a educação pré-escolar e os níveis de ensino subsequentes?

Essa sequencialidade exige uma articulação vertical. Mas, já que citei a Lei de Bases, deixe-me que comece por lembrar que também faz sentido uma articulação horizontal. Imagine-se um jardim de infância - ou um agrupamento de escolas - que elabora o seu projecto pedagógico, e o implementa , em diálogo e cooperação com as famílias e outras instituições da comunidade.
É claro que a articulação com a família deve fazer-se no diálogo, mas não subordinando a orientação do jardim de infância àquilo que os pais ou uma associação de pais, ainda que de projecção nacional, pensam. Os jardins de infância têm técnicos especializados em educação de infância e, portanto, têm obrigação de saber mais do que os encarregados de educação.
Certa vez afirmei num encontro promovido por escola superior de educação privada, perante elementos do ministério da educação, que uma tarefa interessante para as escolas superiores de educação seria a de formar os educadores pais, promovendo acções de formação para as famílias e para os casais. E isso é uma questão que deveria ser pensada em larga escala. Isto, para dizer que a articulação - ou o diálogo - com as famílias seria bem mais proveitoso se as famílias soubessem mais de educação de crianças.
Quanto à articulação vertical do jardim de infãncia com a escola básica, o meu receio - e já o transmiti a diversos grupos de educadores - é que, sendo feita com um nível imediatamente superior, este pressione os educadores a "afunilarem" a acção educativa de forma a responder àquilo que a escola espera. E é neste sentido que não me agrada a designação pré-escolar, porque a palavra pode dar a impressão de que serve para preparar para a escola. O termo é aceitável, mas pode insinuar essa ideia.
E temo que não apenas insinuá-la, já que os agentes que estão em níveis superiores podem tentar impôr - ou por serem em maior número ou por estarem num nível superior - algum tipo de orientação aos níveis inferiores, neste caso o pré-escolar. É um risco.
Mas há ainda um outro risco, de ordem pedagógica-metodológica. Os métodos de ensino tradicionais da escola primária podiam acabar por impor-se, até por uma questão de necessidade de desenvolver um currículo que convenha à escola. E o clima de liberdade dos jardins de infância que eu há pouco referia, pode tender a desaparecer, perante a suposta necessidade de uma "disciplina" que tem tradição na escola.

De que forma então se pode operar essa sequencialidade? Ou o pré-primário deve continuar, de certa forma, estanque em relação aos restantes níveis de ensino?

Eu não acho que deva ser estanque, mas quando se fala de sequencialidade - e bastantes pessoas têm feito esta distinção - há uma que se pode operar a partir de baixo e outra a partir de cima. E o nosso sistema educativo está muito organizado de cima para baixo, isto é, no sentido de o critério para a transição de ano ou de ciclo, até à universidade, ser definido em função dos requisitos do nível superior. Daí o meu receio de que o jardim de infância acabe por fazer aquilo que a escola quer, que o educador tenha a preocupação de preparar as crianças para "entrarem bem" para a escola.
Na minha opinião, a sequencialidade devia construir-se a partir de baixo, porque a criança constrói-se como ser humano desde a nascença. E neste sentido, todos os educadores, incluindo os pais, deviam ter formação para ajudar a criança a auto-construir-se a partir das suas próprias potencialidades.
A formação dos educadores de infância tinha essa perspectiva desde o início. A educação devia começar pela família, continuar pelo jardim de infância e os professores deviam estar preparados para continuar na escola essa construção.

Mas isso implicaria uma mudança no esquema de formação dos professores e no próprio sistema educativo...

Julgo que sim. Eu volto a dizer que não sei, em concreto, como as escolas superiores de educação estão a formar os professores do ensino básico e os educadores. Mas sei, isso sim, que todos os professores, em qualquer nível do sistema, deviam saber o que foi construído antes e continuar essa construção, e não fazer o que eles próprios querem, acusando os colegas dos "andares de baixo" de não terem feito o que deviam.

Os jardins de infância assumem uma componente pedagógica e social. Porém, os jardins de infância da rede pública previlegiam particularmente a componente pedagógica e os da rede privada a componente social. De que forma acha que a rede pública poderá dar resposta à procura da componente social sem prejuízo da componente pedagógica?

Começou a implementar-se recentemente na rede pública o conceito de componente sócio-educativa, discutindo-se actualmente qual a melhor forma de ela ser introduzida. Nesse sentido, há uma questão para a qual eu gostaria de chamar a atenção, que é o facto de algumas crianças poderem ficar "presas" ao jardim de infância um dia inteiro. É muito tempo.
Esta componente sócio-educativa podia ser algo diferente do que se faz no jardim de infância, sendo igualmente válida enquanto processo pedagógico. Penso que pode ser uma oportunidade para estas crianças alargarem o âmbito da sua formação, do seu desenvolvimento, alargando as suas potencialidades.
Quando me pergunta como isso deve ser feito, penso existirem muitas soluções possíveis. Parece-me, definitivamente, é que ela não deve passar por acrescentar apenas algumas horas ao jardim de infância, no mesmo sítio, com as mesmas actividades e, eventualmente, com os mesmos educadores. Acho que se devia procurar variar as experiências.
Inclusivamente, não recuso a ideia de algumas dessas actividades se realizarem em digressão pelo meio. Porque não? As crianças têm uma experiência muito limitada, algumas não fazem mais do que o percurso diário casa-jardim de infância. Acho que há inúmeras possibilidades e eu não me considero capaz de definir um esquema único. Depois, há outra questão importante: Era necessário que as pessoas que iriam estar encarregues dessa tarefa tivessem uma preparação adequada.

Aceita a ideia desses complementos sócio-educativos, mesmo tendo em conta que a maioria dos especialistas afirma que uma criança não deva estar mais do que cinco horas no jardim de infância?

Claro que a maior parte crianças têm necessidade de alguém que tome conta delas - porque parte de uma necessidade dos pais -, mas se houver um esquema estatal que responda melhor do que a avó, o vizinho ou a rua, melhor. Também acho que as crianças não devem permanecer no jardim de infância para além de cinco horas. Por isso acho que nas horas da componente sócio-educativa eles deviam sentir-se mais "livres", mesmo numa actividade "educativa".
O importante era garantir-se a qualidade dessa acção educativa. Não me repugna que alguns educadores queiram dedicar-se a isso. Duvido é que um educador com horário completo tenha ainda disponibilidade para mais essas horas, respondendo com a mesma qualidade pedagógica. Essa tarefa competeria às escolas superiores de educação, que formariam pessoal competente para estas actividades - chamemos-lhes de "complemento curricular".

Entrevista: Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Agostinho Ribeiro
Fac. de Psicologia da Universidade do Porto
Agostinho Ribeiro
Fac. de Psicologia da Universidade do Porto

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